Bibliô #03

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Boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP

Agosto de 2013

 

BIBLIÔ REFERÊNCIAS #003

SEGUNDA PARTE

O OUTRO: DA FALA À SEXUALIDADE

 

CAPITULO V – TOPOLOGIA DA FALA

TEMA 1- DA VIA DA LÓGICA DOS QUATRO DISCURSOS AOS SENTIDOS DA ESCRITURA

É no Seminário 17, “O avesso da psicanálise” (1969-70), que Lacan desenvolve o que seriam os 4 discursos: o discurso do mestre, do universitário, da histérica e do analista. Ao mesmo tempo, podemos pensar em que a topologia do discurso se repousa: sob a função dos quatro termos da réson de ser (S, S1, S2, a), em relação ao que se poderia, em seguida, atribuir sentido, ou seja, os quatro lugares do matema do discurso que Lacan apresenta em quatro termos: verdade; semblante; gozo e mais-de-gozar.


Podemos pensar, como nos sugeriu François Regnault, acerca dos quatro pontos cardeais da topologia do discurso com os Quatro sentidos da Escritura. Ou seja,os quatro níveis de leitura que propõem, tanto o judaísmo, quanto o cristianismo dos textos sagrados. Isso responderia, de uma certa maneira, à pergunta “de onde viria o sentido”? Na tradição católica, p. ex., os quatro sentidos se dividem entre o que é literal (o sentido literário ou histórico), e o que é espiritual, o que se interpreta e se reparte em três: alegórico (sentido espiritual que se refere à igreja), tropológico (sentido espiritual em referência à alma), anagógico (faz com que se pense aos céus, às coisas divinas).


Segundo Jacques-Alain Miller, é na interpretação da Escritura que se formou a distinção do significante e do significado. Desde a Idade Média, a interpretação da Escritura foi ensinada a partir do quarteto, da distinção dos quatro sentidos – consagrados desde o século VII.


Esta tradição remonta aos estoicos, quando já se fazia o uso do duplo sentido, do literal e do espiritual. São Jerônimo, padre e apologista cristão ilírio e tradutor da Bíblia do grego e do hebraico para o latim, repartia o sentido entre a letra e a significação. Ferdinand de Saussure, aliás, se serviu, inicialmente, desta tradição renovando-a – tanto a partir de São Jerônimo quanto de Santo Agostinho que sintetizam a exegese medieval numa renovação de São Paulo de que “a letra mata (i. e. a letra morta das sinagogas hebraicas e que não reconhecem a encarnação do espírito quando ele se manifesta), enquanto que o espírito eleva”.
À guisa de exemplo, podemos dizer que a interpretação analítica é uma interpretação literal, ao passo em que a interpretação da psicologia analítica de Carl Jung se aproxima dos métodos da exegese medieval, a partir, e.g., dos traços presentes na interpretação arquetípica.


Miller lembra que, mesmo que Lacan não tivesse procurado suas referências a respeito da interpretação na exegese cristã, ele cresceu dentro desse meio e sempre estimou, aliás, os jesuítas que pertenciam em sua Escola e que eram da época do cardeal Henri de Lubac – um dos grandes nomes da teologia jesuíta francesa e que realizou importantes estudos sobre a exegese medieval. Em relação à psicanálise, Lacan encontra suas referências na tradição de Freud e a relação particular desta à letra quando, então, fundou sua interpretação sobre a psicanálise a partir da leitura que ele fez da obra de Freud – levando em consideração as bases do estruturalismo estabelecido, e. g., por Lévi-Strauss e os estudos dele sobre a combinatória dos mitemas que, em si mesmo, são uma interpretação, dentro do campo da antropologia, mas da linguística estrutural de R. Jakobson e F. de Saussure.


A partir dessa leitura cruzada de referências, podemos afirmar, com Miller, que o significante da fala no Outro S(?), pode ser lido como o significante da alegoria barrada.

 

Autores citados:

Henri Sonier de Lubac foi um jesuíta, teólogo católico e cardeal francês.

Roman Jakobson foi um pensador russo que se tornou um dos linguistas mais influentes do século XX e considerado um dos primeiros da análise estrutural da linguagem, da poesia e da arte. Suas proposições a respeito dos dois eixos da linguagem, eixo sintagmático e eixo paradigmático, influenciaram profundamente o estudo das afasias, assim como o estudo das figuras da retórica – principalmente no que tange à polaridade da metáfora e metonímia – e de onde Lacan os extrairia da retórica enquanto que mecanismos pertencentes à mecânica da linguagem, depois da leitura realizada por Lévi-Strauss com a sua antropologia estrutural: distinguir as relações de parentesco e as relações de sucessão, tal como Jakobson tivera ordenado os fonemas.

 

Referências:

Carl Jung. Métamorphoses de l’âme et ses symboles (1912), Coll. Références, 1950.

Aula de 27 de março de 1985 do curso “1, 2, 3, 4” de J.-A. Miller quanto à articulação do significante da falta no Outro S(?) e com a interpretação analítica.

Henri de Lubac. Exégèse médiévale, les quatre sens de l'écriture, Paris, 1959-1964.

Lévi-Strauss. Antropologia estrutural, Ed. Cosac Naify, 2008.

Roman Jakobson. Essais de linguistique générale (1 et 2), Éditions de Minuit, 1963.

  • A discussão em torno da origem da linguagem:

Autores citados:

Jean-Jacques Rousseau foi um escritor francófono, filosofo e músico suíço. Ele entra na história das ideias sobretudo com seus curtos ensaios “Discurso sobre as ciências e as artes” (1750) e “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1755), além do “Contrato social” (1762). Ele defendeu a oposição do estado de natureza, que traria a felicidade da humanidade, ao estado social, fonte de insatisfações generalizadas. É um dos maiores filósofos do Iluminismo e uma influência intelectual reconhecida em relação à Revolução Francesa.

 

Referências:

Jean-Jacques Rousseau. “Ensaio sobre a Origem das Línguas” (1781). Tradução de Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, 198pp.

  • Fala, dizer e ato.

Uma das múltiplas referências implícitas no ensino de Lacan relaciona-se à teoria dos atos de linguagem, considerados como atos performativos.
Um dos pontos fortes desse “encontro” se dá justamente quando Lacan desenvolve, em 1967-68, a temática do ato do analista, à passagem do analisante a posição de analista, durante o seu Seminário O ato analítico. O ato analítico, tal como Lacan o desenvolveu, é subordinado ao discurso analítico e se encontra numa perspectiva crítica dos atos de linguagem de John Austin.


Pode-se pensar o estatuto do dizer como se estivesse no centro do ato analítico e em relação à ideia de que é o analisante que interpreta. O analisante sustenta seu discurso a partir da garantia do sujeito suposto saber – atrelado ao seu efeito de verdade. Essa passagem do analisante ao analista seria justamente o lugar de um dizer que se sustentaria sem garantias do Outro. O doravante analista se encontraria no ponto onde ele se sustentaria de um dizer enquanto tal. Ou seja, de um dizer performativo e que inscreve o ato analítico como um modo de performativo: um ato de puro significante, em que algo se realiza, toca o gozo e o modifica.
No capítulo V do Seminário XIX vemos, mais uma vez, como Lacan se utiliza da concatenação de Austin quando afirma que “uma fala que funda o fato, é um dizer”, logo, ato de linguagem.
No seu texto “O aturdito”, Lacan resume, em uma única frase, a relação entre o dizer, fazer e o lugar da enunciação: “que se diga resta esquecido por trás do que se disse no que se ouve”.

 

Autores citados:

John Langshaw Austin foi um filósofo inglês nascido no início do século XX e um dos maiores expoentes da filosofia analítica. Um dos principais temas que ele trabalhou relaciona-se ao sentido em filosofia. Um dos maiores representantes da filosofia da linguagem ordinária (corrente de pensamento inspirada, sobretudo, no trabalho de Ludwig Wittgenstein), a sua teoria dos atos de linguagem foi um grande marco na sua elaboração teórica. Posteriormente, ela foi retomada sobretudo por John Searle.

 

Referências:

Cf. a intervenção de Eric Laurent no curso de J.-A. Miller “Coisas de fineza em psicanálise”, aula de 25 de março de 2009.

John L. Austin. “Quando dizer é fazer”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

Jacques Lacan. O Aturdito, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 448 – 497

  • Função da fala, estrutura da linguagem...

Lacan, no capitulo XV “A presença do analista”, do Seminário XI, fala da nova aliança entre a função da fala e a estrutura da linguagem, que trata do gozo como impossível a se negativizar: o falo simbólico, significante do gozo e que se encontra para-além da castração. Ou seja, a função da fala se encontra ligada à estrutura da linguagem mas também à substância do gozo. Esse tema da presença do analista, certamente foi evocado por Lacan como uma crítica ao então recente livro de Sacha Natcht “La présence du psychanalyste”.

Autores citados:

Sacha Nacht foi um psicanalista francês e antigo presidente da Société Psychanalytique de Paris (SPP) em 1949. Outrora amigo muito próximo de Lacan, Nacht foi um dos principais personagens que combateu Lacan e o que ele considerava “os desvios da sua prática e da sua formação”.

Referências:

Cf. Jacques-Alain Miller. Coisas de fineza em psicanálise”, aula do dia 6 de maio de 2009.

Jacques Lacan. Sobre a questão do rabisco analítico em que se podem ler todos os sentidos que se quiser até o mais arcaico, pode-se ler com proveito o Seminário, Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, capítulo XIX “Da interpretação à transferência”, onde Lacan afirma que a interpretação não é aberta a todos os sentidos. A interpretação é uma via que faz surgir um significante irredutível e que o sujeito está sujeitado.

Sacha Nacht. La présence du psychanalyste. Paris, PUF, 1963.

  • … função fálica, referência, denotação, existência

Lacan, ao desenvolver, nesse capítulo, a função fálica, ou seja, o fato de que o falo denota o poder de significação (ou homem ou mulher), isto tem direta relação com seu texto de 1958 “A significação do falo”. Lembremos, aqui, que o termo Bedeutung, que se encontra no título da “Significação do falo”, é uma alusão ao termo de “referência” em Frege – e desenvolvido sob os auspícios da denotação em Russel.

 

Autores citados:

Os principais pontos da teoria de G. Frege são: a formalização sistemática; a análise de frases complexas; a análise de quantificadores; a teoria da demonstração e da definição, assim como a análise dos números.
Enquanto que um dos criadores da filosofia analítica, tem, como principais textos: “O que é uma função?” (Onde ele explica o que denota uma função: a noção de expressão de cálculo e a noção de variável), “Função e conceito” (um conceito é uma função cujo valor é um valor de verdade) e “Sentido e Referência” (Über Sinn und Bedeutung). Este último texto é considerado como um dos textos fundadores da filosofia analítica.
A Bedeutung se traduz, então, por referência, ao que se denota, ao que se aponta em relação a uma existência, e que se encontra em relação ao real.
Já o Sinn é efeito de sentido, a significação, o que é da essência, o que outorga atributos a alguma coisa.

Bertrand Russell foi um matemático, lógico e filósofo. Ele é considerado um dos mais importantes filósofos do século XX. Juntamente com Frege, Russel é um dos fundadores da lógica contemporânea. Seu texto “Da denotação”, é considerado como um dos artigos mais influentes de todo o século XX, onde ele tenta, de acordo com J.-A. Miller, extrair, de todo o enunciado, o ato referencial.

Referências:

Bertrand Russell. Os pensadores. Ensaios escolhidos. Da denotação (1905). Abril Cultural, 1978. (pp. 03 - 14).

Gottlob Frege. “Sobre o sentido e a referência” (1892). In: ALCOFORADO, P. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cutrix, 1978, 160 p.

Jacques Lacan, O Seminário, livro XVIII, De um discurso que não fosse semblante, capítulo IX “Um homem e uma mulher e a psicanálise”.

Cf. também a esse respeito o curso de Jacques-Alain Miller « L’Un-tout-seul », sobretudo a aula de 16 de março de 2011, na qual Miller diz que o que está como referência em Frege, denotação em Russel, para os analistas está a existência.

Eric Laurent. « Trois énigmes : le sens, la signification, la jouissance ». La Cause freudienne, 02/1993, n°23. - pp. 43-50.

 

TEMA 2 –  ESCRITA CHINESA E SEXUALIDADE

Segundo Dr. Severino Cabral, professor-pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos de China Ásia-Pacífico (IBECAP), Robert Van Gulik foi um diplomata holandês, conhecido como grande erudito em questões sinológicas e se tornou celebre como autor das “Enquêtes du juge Ti”, quando era embaixador no Japão em 1949.


Nesse período, ele descobriu, num antiquário em Tóquio, os clichês originais de um álbum de desenhos representativos da arte erótica da época Ming. Publicou-a numa edição especial, limitada aos especialistas, acompanhada de um prefácio de sua autoria, em 1951, com o título de “Estampes érotiques en couleurs de la période Ming, avec un Essai sur la vie sexuelle des Chinois de la dynastie Han à la dynastie Tsing, 206 av. J.-C.-1644”, em 3 volumes.


O interesse despertado pela obra e as questões que suscitaram entre os orientalistas, principalmente Joseph Needham, levaram Van Gulik a estender o seu estudo da cultura erótica ao conjunto da história chinesa, desenhando um amplo quadro sociológico e antropológico. O livro resultante desse estudo foi publicado em inglês, no ano de 1961, com o título de "Sexual Life in Ancient China: A Preliminary Survey of Chinese Sex and Society from ca.1500 B.C. till 1644 A.D". Leiden, Pays-Bas, E.J. Brill. Posteriormente, ele foi traduzido para o francês e publicado pela Gallimard na "Bibliothèque des Histoires", em 1971 e, em 1977, na coleção Tel da editora Gallimard, com o título de “La vie sexuelle dans la Chine ancienne”.


Seu estudo tece considerações sobre a cultura erótica chinesa e a influência do confucionismo, taoísmo e budismo – que foram amplamente tratadas nas várias épocas da história chinesa.


Fascinado pelos costumes sexuais dos povos que ele estuda, Van Gulik retraça o histórico da literatura erótica chinesa desde os primórdios assim como sua evolução ao longo da história. A literatura erótica começa com os manuais de educação sexual, depois com os livros de conotação médica para, finalmente, durante a era Ming, desembocar com o desenvolvimento da literatura e das estampas eróticas e pornográficas.
Por exemplo, uma das diferenças fundamentais entre a concepção ocidental da sexualidade e a antiga concepção chinesa é de que esta última considera o ato sexual oriundo de uma mística: união entre o céu e a terra, dualidades cósmicas, harmonia universal pela fusão dos contrários, dos elementos masculinos e femininos (como presente no “Livro das Mutações”, no Yi-King e sua concepção da interação do yin e do yang tendo como resultante o Tao – A Via ou a Ordem suprema) etc.

 

Referências:

Jacques Lacan. Cf. O Seminário, Livro XVIII, De um discurso que não fosse semblante. Sobretudo os capítulos III, IV e V nos quais aborda questões relativas à escrita, fala e verdade.

Robert Hans Van Gulik.La Vie sexuelle dans la Chine ancienne, trad. Louis Évrard, Gallimard, « Bibliothèque des histoires » no 3, 1971, rééd. Coll. « Tel ».

  • André Gide: sexualidade e perversão

Referências:

Jacques Lacan. A juventude de Gide. In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Jacques-Alain Miller. Curso a Orientação Lacaniana, “Sobre o Gide de Lacan”:

- Rumo a um significante novo; Orientação lacaniana: Sobre o Gide de Lacan; Direitos humanos ... / COLLECTIF. Opção Lacaniana /Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 08/1998, n°22. - 106 p.
- Algumas reflexões sobre o Ego; Orientação lacaniana: Sobre o Gide de Lacan; O mal - estar da civilização ... / COLLECTIF. Opção Lacaniana /Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 06/1999, n°24. - 77 p.
- Acerca del Gide de Lacan: fragmento de un seminario de lectura. Malentendido / Revista en el Campo Freudiano, 06/1990, n°7. - 89 p.

Philippe Hellebois. Lacan lecteur de Gide. Editions Michèle, 2011, pp. 155.

  • Objeto a e causalidade

Sobre o objeto a como causa do desejo, o leitor poderá ler com proveito a teoria aristoteliciana da causalidade. Para-além do que precederia o efeito, a causa, segundo Aristóteles, é uma noção metafísica complexa e que se distingue em quatro tipos: causa material; causa formal; causa motora ou eficiente e causa final. Lacan designa, a cada termo, o campo da psicanálise, da ciência, da magia e da religião respectivamente.
Cf. o queRené Descartes desenvolve, na sua terceira Meditação, é o princípio de causalidade e a prevalência da causa eficiente – e que inscreve uma descontinuidade entre a causa e o efeito. Isto servirá a Lacan para opor a causa e a lei.

 

Referências:

Cf. Jacques Lacan. “A ciência e a verdade”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

 

TEMA 3- A clivagem do muro

 

Autores citados:

Sobre a clivagem do muro: {discurso, fala e linguagem | ciência, números, função e topologia}, mais uma vez o leitor poderá se reportar com proveito ao curso de Jacques-Alain Miller e a distinção que ele desenvolve entre o ser e a existência e sua relação com a entrada do Um.

René Thom foi um matemático francês, fundador da teoria das catástrofes. Recebeu, em 1958, a medalha Fields, prêmio Nobel das matemáticas. Lacan o cita em relação ao uso que ele faz das superfícies matemáticas – a exemplo da dobra.

Chaïm Perelman é considerado o fundador da “Nova Retórica”. Nascido na Varsóvia, ele emigrou para a Bélgica em 1925. Até 1978, ele ensinou lógica, moral e metafisica na Université Libre de Bruxelles. Suas pesquisas se inscrevem, majoritariamente, no âmbito do direito, da retórica e da argumentação. Ao renovar com a retórica aristotélica, Perelman apresenta o seu texto mais célebre, na sua obra “Tratado da Argumentação” (1958), escrito em conjunto com Lucie Olbrechts-Tytec.
Este retorno à retórica argumentativa coincide com a volta do interesse pelas figuras ou tropo – que suscitou o nascimento de uma “nova retórica” das figuras, ao nível do desenvolvimento da poética e da semiótica como, por exemplo, em Roland Barthes.
Esta referência a Perelman está presente no ensino de Lacan desde o seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Segundo Jacques-Alain Miller, pode-se entender a argumentação de Lacan durante seus Seminários, não apenas como uma argumentação lógica, mas, sobretudo, como uma argumentação de orador (rhéteur), como defendida por Perelman.

 

Referências:

Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996.

A respeito da dobra, cf. Gilles Deleuze “A dobra. Leibniz e o barroco”, Papirus, 2011.

 

 

CAPITULO VI – PE?O A TI QUE ME RECUSES O QUE TE OFERE?O

TEMA 1- DEMANDA, RECUSA E OFERTA:

Peço-te que me recuses o que te ofereço, título estabelecido por Jacques-Alain Miller, nos orienta, ao longo do presente capítulo, no que tange à relação que Lacan estabelece entre demanda, recusa e oferta. Sabemos, porém, que tal tema é central no ensino de Lacan, mas poderíamos pontuar justamente sua articulação, retomada por Lacan neste capítulo, com o nó borromeano. Ora, Lacan inicia tal capítulo com sua formulação: carta de (a)muro, lettre d’amur, articulando-a com demanda, recusa e oferta.

  • A verdadeira carta de (a) muro

Lacan afirma que é precisamente: “peço-te que me recuses o que te ofereço”, e acrescenta “porque não é isso”. Neste sentido, Lacan nos indica que se deveria escrever: “Peço-te que me recuses o que te ofereço por que: não é isso”. Dentro disso, Lacan isola cada nível verbal e articula, ao longo do capítulo, demanda, recusa e oferta, pontuando o efeito desse (des)nodamento.Tal articulação nos remete ao gráfico do desejo desenvolvido por Lacan em seu Seminário Livro V “As formações do inconsciente” (1957-1958), porém, aqui estariam presentes algumas formulações amplamente desenvolvidas posteriormente, como o nó borromeano, em seu Seminário Livro XXII “R.S.I”.

  • Lacan ressalta o trabalho de Roman Jakobson referente a Boetius Dacus e às suas suppositiones

Neste sentido, Lacan sublinha a questão do significante e, partindo da análise linguística, articula demanda, recusa e oferta especificando, assim, o estatuto e as funções dos verbos pedir, recusar e oferecer. Assim, ao isolar o “não é isso”, Lacan se refere, paralelamente, aos trabalhos dos filósofos Ludwig Wittgenstein e Alexandre Kojève e suas respectivas asserções: “o que não pode ser dito, não falamos”. Ora, Lacan ressalta justamente a importância do “não é isso”, reservando-lhe um lugar essencial no próprio enunciado como aquilo que não podemos falar. Neste contexto, Lacan formula: “porque não é isso, o que? Que eu desejo”, e evoca, por conseguinte, o discurso do analisando e aquilo ao qual o analista (não) responde. Poderíamos articular tal pontuação ao que Lacan desenvolverá posteriormente no final de seu ensino, em seu último Seminário Livro XXV “O momento de concluir” (inédito) em sua lição de 15 de novembro de 1977, a saber: “O que define a demanda é que a gente somente demanda através daquilo que a gente deseja – quero dizer, passando por aquilo que a gente deseja – e aquilo que a gente deseja, a gente não sabe”. Aqui, não deixa de ser interessante a referência de Lacan ao desejo do analista e ao sujeito suposto saber e o retorno, nessa mesma lição, ao nó borromeano.

 

Autores citados:

Roman Jakobson (1896-1982): pensador russo, pioneiro da análise estrutural da linguagem, poesia e arte. C.f. Jakobson, Roman. Linguística. Poética. Cinema. Tradução Haroldo de Campos et alii. Editora Perspectiva. São Paulo. 1970.
Boetius Dacus (470 – 524): filósofo romano do início do século VI e autor do célebre livro Consolation de la philosophie, uma obra néoplatônica. É considerado como sendo uma referência fundamental da filosofia medieval e da transmissão da lógica aristotélica.            

Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo austríaco, considerado um dos principais autores da filosofia analítica do século XX. O único livro de filosofia que publicou em vida, o Tractatus Logico-Philosophicus, de 1922, exerceu profunda influência no desenvolvimento do positivismo lógico.

Alexandre Kojève (1902- 1968): filósofo francês de origem russa, mestre e amigo de Lacan, tendo exercido grande influência sobre a filosofia na França no século XX, especificamente no que tange seus etudos sobre Hegel.

Jules Henri Poincaré (1854-1912): matemático, físico e filósofo que desenvolveu o conceito de funções automórficas a fim de utilizá-las para resolver equações diferenciais lineares de segunda ordem com coeficientes algébricos. Em 1895, publicou Analysis situs: um tratado sistemático sobre topologia.

Georges-Théodule Guilbaud (1912-2008): matemático francês e amigo de Lacan, conhecido por transmitir métodos matemáticos nos campos da economia e das ciências sociais.  Segundo nos indica Jacques-Alain Miller, G-Th. Guilbaut havia popularizado na França a teoria dos jogos no período pós-guerra.

 

Referências na obra de Lacan:

Sobre a carta de amor:
Jacques Lacan. Cf. - O Seminário Livro XIX “...ou pior”, lições de 3 de fevereiro de 1972 e de 9 de fevereiro de 1972; Seminário Livro XX “Mais ainda”, lição de 13 de março de 1973; Seminário Livro XXI “Les non-dupes errent” (inédito), lições de 15 de janeiro de 1974 e 12 de fevereiro de 1974.

 

Sobre a referência à Roman Jakobson na obra de Jacques Lacan:


C.f. Seminário Livro III “As psicoses”, lição de 2 de maio de 1956; Seminário Livro V “As formações do inconsciente”, lições de 6 de novembro de 1957 e 13 de novembro de 1957; Seminário Livro IX “L’identification (inédito), lição de 23 de maio de 1962; Seminário XII “Problèmes cruciaux pour la psychanalyse (inédito)”, lições de 2 de dezembro de 1964 e 28 de abril de 1965, Seminário Livro XIV “La logique du fantasme (inédito), lição de 1° de fevereiro de 1967; Seminário XIX “...ou pior”, lição de 9 de fevereiro de 1972; Seminário Livro XX “Mais ainda”, lição de 19 de dezembro de 1972.

 

 

CAPITULO VII – A PARCEIRA DESVANECIDA

TEMA I - LÓGICA DA SEXUAÇÃO: SUA GRAMÁTICA

Questão proposta por Lacan.


Como algo chega ao ser falante pela sexualidade, a pergunta é: “o ser falante é falante por causa de alguma coisa que sucede com a sexualidade, ou, essa alguma coisa que sucede com a sexualidade é porque ele é falante?”.


Neste capítulo, Lacan exercita, com maestria, o ‘seu estilo’ ao apresentar o famoso tema por ele introduzido na leitura de Freud da “não existência da relação sexual”.


A fórmula lacaniana, num dos seus momentos teóricos mais criativos, expõe toda a complexidade da questão para o Discurso Analítico ao invocar noções e conceitos da topologia e lógica matemática para definir a “lógica da situação” e “a natureza do gozo feminino como Não-todo”. E, ao exercitar uma radical desconstrução do mito do “segundo sexo” com a descoberta da singularidade do existir na discórdia do “hum” e da “uma”, a resposta, tornada possível pela linguagem, da pergunta sobre a relação do Universal homem, com o universal, mulher.

 

1ª. Não há relação sexual.


“A base do que venho expondo a vocês há algum tempo, mais exatamente desde o ano passado, é muito precisamente, que não existe segundo sexo”.  Não existe esse outro sexo a partir da entrada da linguagem, é a tese lacaniana e a chamada heterossexualidade se esvazia como ser para a relação sexual.
-E é nesse vazio, que de alguma maneira é oferecido à fala, que se instala o Outro, esse vazio será o lugar do Outro, ai onde se inscrevem os efeitos da fala.


2ª.  O gozo feminino como Não- todo.


A pergunta que se impõe é como universal homem se relaciona com o universal mulher, pelo fato de que existe a linguagem e, como no vazio deixado pela não relação se inscreve o Outro, Lacan acrescenta a ele um suplemento, a letra h para marcar esse Outro como vazio. Nesse sentido, acrescenta um h também ao Um, pelo que se deve compreender a dimensão do Hum (Hun).

 

B) 2ª Proposição:

 

1ª. O Um e a Uma: discórdia.
Se não existe relação sexual, é “que a experiência do discurso analítico assinala para a dimensão da função fálica”, o Hum não é redutível ao termo masculino. (cfr. p. 97).

 

2ª. O Universal só faz surgir para a mulher a função fálica da qual ela participa, ao querer arrebatá-la do homem ou ao querer lhe impor o serviço dela, no caso, ...ou pior, mas isso não universaliza a mulher. A raiz de não toda está no fato de ela encerrar o gozo diferente do gozo fálico, o gozo dito propriamente feminino que não depende do gozo fálico. Ela é não toda porque seu gozo é duplo, como o revelou Tiresias.


Tirésias: trata-se do profeta cego de Tebas, famoso por ter passado sete anos transformado em mulher. Certa vez ao ir orar encontrou um casal de cobras copulando e ambas voltaram-se contra ele. Ele matou a fêmea, e imediatamente tornou-se mulher. Anos depois, indo orar no mesmo monte encontrou outro casal de cobras venenosas copulando. Matou o macho e tornou-se novamente um homem. Por Tirésias ter se tornado tão ciente a respeito de ambos os sexos, ele foi chamado para decidir a questão levantada por ocasião de uma discussão entre Zeus e Hera sobre “se é o homem ou a mulher quem tem mais prazer na relação sexual”. Mas ele sabia que a sua decisão iraria sobre ele o deus derrotado. Hera dizia que o homem é quem tem mais prazer, Zeus dizia que é a mulher. Tirésias decidiu a questão: "se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma." Hera, furiosa por sua derrota, cegou Tirésias por vingança. Mas Zeus, compadecido e em recompensa por Tirésias ter dado a ele a vitória, deu-lhe o dom da previsão. Uma versão alternativa do mito de Tirésias conta que ele ficou cego ao ter visto Atena se banhando nua em uma fonte. Tirésias se faz presente no livro Édipo Rei de Sófocles, no qual ele descreve como é terrível deter o saber, quando este de nada serve a quem o possui. Há, ai, uma sábia e sutil revelação à Édipo, que, no desenrolar da história, saberá o verdadeiro significado nas entrelinhas dessas sábias palavras.

 

Autores citados:

Roman O. Jakobson (1896-1982). Pensador russo, tornou-se num dos maiores linguistas do século XX, pioneiro na análise da linguagem, sua influencia é significativa na teoria lacaniana e a encontramos em axiomas que marcaram o primeiro ensino de Lacan, como: “O inconsciente está estruturado como uma linguagem”, retomado em diversas épocas de seu ensino e assinalada tal influência por Jacques – Alain Miller na sua famosa formulação da Teoria do significante.

 

René Thom (1923-2002). Matemático e topologista francês, tratou especialmente da teoria da singularidade, tornou-se famoso na comunidade acadêmica e com o público em geral como fundador da teoria da catástrofe, que seria mais tarde desenvolvida por Erik C. Zeema.

 

Simone de Beauvoir (1908-1986). Escritora, filósofa existencialista e escritora. Escreveu romances, monografias sobre filosofia, política, sociedade, ensaios, biografias e uma autobiografia. “O segundo sexo” (Le Deuxième Sexe), escrito e publicado em 1949, é uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista, a autora analisa a situação da mulher na sociedade. O livro foi publicado no Brasil em dois volumes: "Fatos e mitos" é o volume 1e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. "A experiência vivida" é o volume 2 e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.

 

TEMA II – O ZERO E O UM: FUNDAMENTAÇÃO LÓGICA DA FUNÇÃO FÁLICA.

 

Na abordagem dessa temática, Lacan deu continuidade ao seu exercício lógico ao avançar na reflexão sobre a função fálica e sua estrutura, na forma topológica da linguagem, e na elaboração sobre o vazio presente na teoria do zero na lógica de Frege e na estrutura da língua chinesa.

 

 

1ª.- A linguagem, a função fálica e sua réplica. p.97
Lacan acrescenta um h ao Outro, o Houtro e, em consequência, um h ao Um, temos assim o Hum, de maneira que não há meios de a relação sexual vir a se escrever em termos de essência masculina e essência feminina. Pp. 97- 98

 

2ª.- O vazio da linguagem: o Yin e o Yang no pensamento chinês. p. 94; p. 98.
A escrita dessa relação que não se escreve, só pode ser escrita a partir de uma escrita muito específica, pela qual Lacan introduz a lógica e a topologia matemática. P. 98

 

B) As proposições aristotélicas.

 

Na lógica das Proposições, temos, em primeiro lugar, as quatro relações básicas que Lacan usa na formulação das relações entre o masculino e o feminino: negação; conjunção; disjunção e implicação.

 

Autores citados:
Aristóteles. Lógica.In: Obras.Aguilar Ediciones, Madrid, 1966 a 1969.

Apuleio. “O asno de ouro”.

Parménides. Platon, Diálogo. In: Obras completas. Aguilar Ediciones, Madrid, 1966 a 1969.

Referência na obra de Lacan:
No Seminário, Livro 8, A transferência, Lacan faz referência à agalma socrática com o que ela tem de tão sublime que foi capaz de atrair o amor de Alcibíades e, dessa forma, o sujeito Sócrates veio ao lugar do semblante, isso em razão desse Houtro. O que acontece entre ambos, não é a relação entre um e outro, senão mais bem o amor ele mesmo, o que entra em jogo. Não se trata da relação sexual porque ela não existe.

 

CAPITULO VIII - O QUE VEM A SER O OUTRO

TEMA I – FALAR DO UM: Há-um

 

Para falar do Um é necessário falar de um significante para barrar o Outro. A proposição que se apresenta, neste capítulo, é de pensar em lugar de optar pela proposição do Parmênides, se Um não é considerar que o Não - Um não é. Logo, o dois não existe, há-Um. 

 

Autores citados:

Descartes (1596-1650). Em seu “Discurso do Método” encontra-se seu famoso cogito ‘penso, logo êxito’ do qual faz uso Lacan para falar da existência do Um como tal.

Aristóteles. “Lógica”. In: Obras. Aguilar Ediciones, Madrid, 1964-1967. P.217

 

TEMA II – A COISA FREUDIANA

Lacan vê, na “Fenomenologia do espírito”, a ausência da mais-valia tal como extraída no gozo, no real do discurso do mestre, ausência que assinala que o Outro não tem correlato.

 

Autores citados:

Hegel, G. W. F. “Fenomenologia do espírito”. Coleção Pensamento Humano, Vozes, Petrópolis, 1992.

Henri Michaux. Entre centre et absence, Ed. Matarasso, 1936.

Platon.  Parménides o de las Ideas. In: Obras completas. Aguilar Ediciones, Madrid, 1966-1969.  Pp. 945-990.

 

Referências na obra de Lacan:

Des Nomes-du-Pére : Introdution. Editions du Seuil, Paris, 2005.
O Seminário livro 11 “Os quatro conceitos da psicanálise”, capítulo I: A Excomunhão. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979, p.23.

 

Pesquisa realizada por Patrick Almeida, Luciana Castilho de Souza e Mirta Zbrun.                        

  • Tradução nossa. Em francês: Ce qui définit la demande, c’est qu’on ne demande jamais que par ce qu’on désire – je veux dire, en passant par ce qu’on désire – et ce qu’on désire, on ne le sait pas.