Procrastinação, autoerótica e depreciação: sintomas dos jovens com relação ao saber*(1)

No texto Em direção à adolescência, de Miller (2015) – uma proposta de orientação para os trabalhos preparatórios para a 4a Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança(2) –, encontra-se a indicação de pontos cardeais para um estudo da adolescência. A leitura desse texto permitiu-me elaborar um comentário que se compõe de duas grandes partes, que designei, respectivamente, “Aspectos clínicos da adolescência” e “A adolescência na clínica do parlêtre” (SANTIAGO, 2015). Ressaltei, nesse comentário, que os aspectos clínicos da adolescência devem ser lidos partindo dos sintomas que os jovens revelam. Na mesma perspectiva, no referido texto, após breve exploração do que é a adolescência para a psicanálise, Miller busca apresentar novas teses propostas por psicanalistas que, na prática clínica com jovens, puderam isolar impasses tipicamente contemporâneos. Para introduzir a questão dos sintomas relativos ao saber, lembro, inicialmente, que a adolescência é um significante do Outro que designa um momento particular da vida: a saída da infância. Contudo, cada jovem atravessa esse momento de maneira bastante singular, em tempo lógico próprio. Para entender esse tempo específico a cada sujeito é preciso considerar que adolescência se diferencia de puberdade. No curso do desenvolvimento biológico, a puberdade é a fase em que um real afeta o corpo humano, impondo-lhe transformações físicas nos órgãos sexuais. Para todo sujeito, ela sobrevém em determinado momento, o que permite dizer que é programada. A adolescência, por sua vez, concerne a efeitos que decorrem dessa incidência do real da puberdade sobre o corpo e promovem verdadeira metamorfose no plano da subjetividade. É, portanto, única para cada sujeito, que, com o advento da puberdade, tem diante de si a tarefa de encontrar uma maneira de se haver com as consequentes transformações que vão acometê-lo. Freud, em seu terceiro ensaio sobre a teoria da sexualidade, dedica-se a esclarecer as transformações desse

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Entrevista: Adolescência e escrita*

Isabel do Rego B. Duarte: Podemos dizer que a marca de sua diretoria da EBP tem sido o resgate – em ato – do termo “Ação Lacaniana”, proposto por Miller há alguns anos. Nesse contexto, em que procuramos levar a sério o aforisma de Lacan “o inconsciente é a política”, e ainda com a inspiração do recente texto de Miller “Em direção à adolescência”, trazer a adolescência à tona como tema do Encontro Brasileiro tem uma incidência não apenas clínica, mas também, inseparavelmente, política. De que modo o tema da adolescência está em consonância com a proposta da Ação Lacaniana? Ana Lucia Lutterbach Holck: Este tema é um tema político e, portanto, está estritamente relacionado com a “Ação Lacaniana”. Trazer a adolescência e colocar em primeiro plano os impasses atuais de um outro ponto de vista. Do ponto de vista daquele que acaba de chegar e não encontra mais adultos que possam dar uma direção. Nós, os adultos, estamos diante de impasses para os quais a tradição não tem resposta. Escutar os jovens e suas invenções é uma posição política. E a Ação Lacaniana se interessa por isso. Queremos saber sobre soluções encontradas, queremos partilhar de seus impasses e saídas e, ao mesmo tempo, contribuir para isso. Isabel do Rego B. Duarte: Philippe Lacadée, em seu livro O despertar e o exílio, diz: “o recurso à carta e à escrita de um diário pode ajudar a fixar o gozo a mais. Para alguns, esse recurso na adolescência ocupa o lugar de uma resposta sintomática. Representa então a tentativa de circunscrever a relação com o mundo e com o gozo, vindo no lugar do furo no saber deixado pela relação sexual que não existe” (pág. 120). É comum lermos referências da relação entre a adolescência e a escrita, inclusive por meio

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Infância e adolescência: impasses e saídas*

Estamos reunidos sob a orientação lacaniana em direção ao tema da adolescência que teve como inspiração o texto de Jacques-Alain Miller “Em direção à adolescência”(1). Para a psicanálise, a adolescência não existe como conceito, mas devemos estar abertos aos significantes da cultura da nossa época e deles nos servirmos para que seja mantido o corte que a psicanálise proporciona nos discursos ditos naturais. O discurso que introduzimos no mundo não é natural. Ele se pauta na relação extraterritorial do sujeito que fala, confrontando-o com aquilo que não é apreensível pelo universo da palavra. A palavra é nosso veículo, porém, é do real incontornável que devemos nos ocupar. Cada vez mais, o imaginário se apresenta como possibilidade de que possamos atingir o inexorável de cada um e a adolescência se apresenta como terreno propício para o aprofundamento de nossas inquietações. A questão é se essa imagem, que pode tecer o real, relança ao laço social. A adolescência é uma ruptura do que está posto, o surgimento do novo, ao mesmo tempo em que é também um apelo por reconhecimento e agrupamento em torno imagens, visuais ou sonoras e intervenções envolvendo o corpo próprio. É interessante notar que as gírias e maneirismos de linguagem, tipo assim … uma certa forma de incluir o outro em sua fala, tá ligado?, envolve o enorme contingente que habita nosso mundo, independentemente da idade cronológica. A adolescência se apresenta como uma espécie de paradigma em nossos tempos. Por um lado, é cada vez mais precoce e, por outro lado, se prolonga indefinidamente. Verificamos o apagamento entre o púbere e o adolescente e também, uma enorme diminuição da diferença entre o adolescente e o adulto, não só em relação ao adulto jovem. Em nossa concepção e acolhendo esse significante da cultura, a entrada na adolescência caracteriza-se pela

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Por que “A QUEDA DO FALOCENTRISMO” como tema do nosso Encontro?*

A proposição de nos debruçarmos sobre a “queda do falocentrismo” diz respeito a um para além do que consideramos como a significação fálica decorrente da instalação do Nome-do-Pai, desde a concepção clássica da neurose em Lacan. Miller aponta para o momento do desencadeamento da psicose de Schreber, no qual, a separação dos três registros se torna evidente. Há irrupção do real e a reconstituição imaginária se coloca sem “o gozo fálico do qual (Schreber) logo se despedirá” [1]. Isso nos esclarece que mesmo que não ocorra a significação fálica na constituição do sujeito, é facultado a ele servir-se do falo para estabelecer um certo laço social e dele gozar. Schreber serviu-se do poder da palavra para garantir seus direitos como cidadão com a capacidade de gerir seus bens materiais. O falo denota o que da junção do significante com o imaginário possibilita um semblante que é capaz de enlaçar o outro. É importante, portanto, fazer a diferença entre a utilização do falo e a significação fálica. Essa última, está articulada à castração. A significação fálica é constituída a partir da operação da metáfora paterna que indica que o sujeito consentiu na castração, na perda de gozo auto-erótico, para fazer parte do mundo ordenado pelo simbólico. Trata-se de ser ou não ser livre das amarras significantes. A significação fálica opera como um “fazer crer” ao sujeito de que ele se constitui como uma unidade. Ele crê que há uma ordem na junção mais íntima com seu corpo, com o outro social, com as ideias que se lhe apresentam, e com a sexualidade. Lacan nos provoca ao afirmar que o sujeito pensa que tem um corpo. Ele não o tem. O corpo permanece Outro. Pelo fato de a significação fálica estar atrelada ao falo, denuncia-se a ineficácia da operação neurótica em garantir uma

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Comentário textos freudianos*

1) “Ao mesmo tempo, a característica principal dessa ‘organização genital infantil’ é sua diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, estar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo.” (p. 180) 2) “Parece-me, porém, que o significado do complexo de castração só pode ser corretamente apreciado se sua origem na fase da primazia fálica for também levada em consideração.” (p. 182) Freud, S. ______. (1923) A organização genital infantil. v. XIX, pp.175-184. Comentário textos freudianos Considerando o título do XXII Encontro e, dando destaque à segunda parte do mesmo, “Consequências para a psicanálise”, a questão da queda do falocentrismo me remete aos efeitos do discurso de gênero nesta contemporaneidade e à construção de uma posição da psicanálise da Orientação Lacaniana, diferenciada do binário natureza x cultura. Não são poucos os colegas psicanalistas aos quais o debate com os estudiosos do gênero põe ao trabalho. E digo isto resgatando a ruptura com o determinismo biológico que implicaram os gender studies, acima de tudo com relação ao lugar da mulher na cultura. Porém, um setor destes estudiosos insiste em atribuir à psicanálise a função de guardiã do falo e, como se não bastasse, também da tradição dos lugares sociais de homem e de mulher, ignorando, por exemplo, os detalhes considerados neste primeiro recorte do texto freudiano: para os dois sexos uma única significação, a fálica, que não devemos confundir com o pênis, e que nomeia um gozo parcial, contabilizável e localizável. Com Lacan podemos dizer que para qualquer outro gozo, também o feminino, corresponde o vazio de símbolo e de significação, S(A barrado) quer dizer, gozo possível de ser experimentado por alguns seres falantes, mulheres e homens, mas impossível de se sustentar pelo

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A anatomia e seus destinos*

Há muitos pontos em comum entre o que se destaca no período que convencionamos chamar de adolescência e no debate em curso na cultura com relação ao tema dos gêneros: a ênfase em metamorfoses exuberantes, por exemplo, na reconfiguração identitária, ou ainda nos embaraços e conquistas com relação à sexuação. Quero me concentrar nas questões que a explosão dos gêneros nos coloca, a nós analistas. Que explosão? São 56 opções para definição de gênero de alguém que se inscreva hoje no facebook americano, 17, no brasileiro. A ideia é que haja gêneros para todos os gostos, desde os clássicos, até gênero “fluido”, “pangênero” ou ainda o gênero “questionando o gênero”.(1) Sentimos o quanto estamos diante de uma catalogação instável e em proliferação descontrolada, mas como abordá-la? Parto de uma premissa essencial a essa proliferação: a anatomia não é destino. Essa premissa tem uma materialização já clássica, dita transexual. Ela exibe seu desacordo entre sexo e gênero e exige correção, como no clichê: “sou uma alma de mulher, num corpo de homem”. É uma posição dita trans-binária, pois se mantém referida ao par masculinofeminino. Há uma posição “trans” bem mais radical, para a qual não apenas a anatomia, mas o próprio binarismo deve ser superado como forma única de identidade e sexualidade. O binário hetero seria apenas uma matriz possível entre outras, a de um modo de vida straight. Neste plano, nem a anatomia, nem o binário são destinos obrigatórios. É a posição dominante nos estudos queer.(2) Tanto uma posição quanto a outra parecem diametralmente opostas à célebre frase de Freud: a anatomia é o destino.(3) A anatomia de Freud A frase, tomada de forma isolada, parece indicar que a anatomia sustentaria uma diferença natural, original e, portanto, intransponível entre homem e mulher. Ora, no contexto em que se apresenta, uma

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Quando o jovem não pode se valer da fantasia*

Em “A linguagem aparato do gozo”(1), Miller aponta as distinções quanto à produção das condições que determinam “o encontro do objeto na puberdade” em Freud e em Lacan. O que Miller postula é que em Lacan o conceito de sexualidade ganha novos matizes, pois, se para Freud o encontro com o objeto encontra-se determinado pela “condição do amor”, para Lacan, a ênfase é posta na “condição do gozo”. Assim, se Freud parte do sexual para universalizá-lo, Lacan deslocará o que é propriamente sexual para o corpo a corpo, para a construção do parceiro sexual(2). Como destaca Miller, para Freud a pergunta que fica em aberto com a puberdade refere-se ao que ele circunscreve no campo pulsional: “como pode a pulsão que é auto-erótica por definição, abrir-se para dirigir-se ao Outro enquanto tal?”. Enquanto que, para Lacan, a pergunta recai no campo objetal acerca de qual será o parceiro do sujeito nesse encontro com o Outro corpo enquanto sexuado, já que Lacan indica com precisão que o verdadeiro parceiro do sujeito é o objeto a, em sua função de separação para o sujeito. Por caminhos distintos, o que Freud e Lacan demonstram é que o real em jogo na puberdade apresenta-se sob a forma de um enigma que “não cessa de não se inscrever” e gerar culpabilidade frente a desejos contraditórios diante dos quais o jovem é pressionado a fazer escolhas, numa espécie de suspensão temporal entre a criança que ele foi outrora e sujeito responsável que deverá advir imediatamente(3). Desse modo, a teoria psicanalítica permite-nos situar a encruzilhada universal a ser atravessada pelo sujeito, no paradoxo revelado em um ponto crucial: a maturação torna possível a realização de um ato inédito, o ato sexual, no momento mesmo em que o sujeito desperta para o impossível da relação sexual, fazendo com

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Idade do desejo*(1)

Obrigada a Sampa pela oportunidade de dizer umas breves palavras deste assunto que está suscitando tantas, e por tantos lugares por onde a EBP ronda. Estamos atrás dos invariantes e das variações da adolescência, assunto que goza de péssima imprensa desde que fora inventado. Finais do século XVIII, início do XIX, inventa-se junto às outras idades da vida: a infância e a velhice. Antes da Declaração dos direitos do homem e do cidadão o espírito classificatório se servia de outros recursos para distinguir: títulos de nobreza, hierarquias sanguíneas, militares, eclesiásticas. Rousseau com seu Emilio e Buffon com sua História natural do homem, são protagonistas da concepção da adolescência como perigo, um duplo perigo: para o próprio púber e para a sociedade toda. Idade crítica. Idade do desejo. Na maravilhosa L’Âne de 1985, n.22, dedicada à puberdade e editada por Judith Miller, podemos ler como entre 1780 e 1840 centos de páginas se escreveram sobre a adolescência como fermentação surda que adverte a aproximação do perigo, como o rugido do mar se antecipa à tempestade. O sintoma e os tratamentos possíveis. Narcisistas em busca de uma identidade sexual e moral não muito longe dos espelhos. Não sacrificam seu prazer a nada. O jovem acha ser o Único disse Max Stirner, corolário da ideia de Rousseau de que em algum sentido nascemos duas vezes: uma para existir, para a espécie e a outra para viver, para o sexo. Por outro lado, em relação à sociedade, a desintegram. Durkheim e seus suicídios. Vagabundos natos. O apetite sexual os inclina a violência e ao crime. Somos herdeiros dessa demonização(2). Quando Lacan era adolescente não se tatuava. Desenhou a ética de Spinoza na parede do seu quarto. Soube ler aí as diferenças entre a Vontade (Voluntas), o Apetite (Appetitus) e o desejo (Cupiditas). Como podemos

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Amor e Loucura*

​​​​O amor cortês é uma poética inventada para “Cantar as Mulheres” na idade média. Lacan se interessou pelo caráter inédito de uma encenação que exige gestos e palavras refinadas. Momento de separação entre as funções femininas e maternas sustenta a impossibilidade do objeto amado. O trovador aspirante a amante deve cumprir etapas e suplicar humildemente antes de ousar formalizar o pedido. ​ O fazer-se desejar sem piedade pelo sofrimento do aspirante é a posição da bela indiferença, comparável às preliminares do ato sexual. No Seminário 7 Lacan sublinha a elevação da Dama à posição de A Coisa em dois níveis: como significante, precisa ser conquistada pela arte, canto, poesia, em uma sublimação forçada; e na outra face a Dama como real sem sentido, impossível de decifração. Desse modo, transforma-se o impossível da relação sexual pela interdição que tenta fazê-la existir, troca o impossível pela incapacidade pessoal. A Dama é fiel ao recado que hoje ainda as mães aconselham às filhas: “tem que se fazer desejar”. Conselho que põe no centro a grande questão da mulher no lugar de objeto a, que chama o desejo, mas pede para ser amada, pede ao amor que vele o objeto a e produza um mais além. ​ No amor cortês a questão que se destaca é a organização de um ritual que permite e, ao mesmo tempo, delimita o gozo e trata a não relação sexual. ​ Mas o real não é mais aquele, os impasses da civilização nos enfrentam, mesmo sem saber, com a lacuna aberta entre o “Passado e o Futuro” que é o titulo de um livro de Hannah Arendt.​ De fato, o fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e que a organização burocrática das massas, baseadas no terror e na ideologia, criou novas formas

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Limites da drenagem do sexual pelo simbólico*

“Quanto a esse mesmo ponto, convém indagar se a mediação fálica drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher, notadamente toda a corrente do instinto materno. Por que não dizer aqui que o fato de que tudo o que é analisável é sexual não implica que tudo o que é sexual seja acessível à análise?“[1] Essa citação de 1960 nos traz uma lição importante. Sobre a sexualidade feminina, claro, mas também sobre a evolução do ensino do próprio Lacan. No conjunto, ela anuncia alguns pontos essenciais do seu último ensino, que Lacan extrairá do encontro com o texto de Joyce e com as análises de mulheres, que, apesar de não saberem falar sobre o seu “excedente sexual” (a expressão freudiana na qual Miller reconheceu o objeto a), não deixam de mostrar com seus sintomas (e nas suas análises) qual o limite além do qual já não se trata simplesmente de significar a falta fálica. 1- A mediação fálica não drena todo o pulsional na mulher: algo resta. Ou excede. É esta a afirmação central da citação. Significa que o pulsional na mulher é em parte imediato, no sentido literal de que não passa inteiramente pelo cotejamento do objeto materno com o falo. Gostaria de me deter um pouco na expressão “mediação fálica”. Como o nome indica, ela se refere a uma posição terceira, central para Lacan já no seu primeiro seminário, onde situa a fala (parole) nesse lugar e nessa função. Mais adiante, três anos mais tarde, o termo mediação pôde ser atribuído à função do pai do pequeno Hans ou ao seu substituto metafórico, o cavalo. Diante do precipício representado pela demanda materna, dizia grosso modo Lacan, a criança pode contar com um recurso da linguagem que relativiza a demanda, vivida como uma ameaça que se dirige ao corpo. Como órgão

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