“Quanto a esse mesmo ponto, convém indagar se a mediação fálica drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher, notadamente toda a corrente do instinto materno. Por que não dizer aqui que o fato de que tudo o que é analisável é sexual não implica que tudo o que é sexual seja acessível à análise?“[1]
Essa citação de 1960 nos traz uma lição importante. Sobre a sexualidade feminina, claro, mas também sobre a evolução do ensino do próprio Lacan. No conjunto, ela anuncia alguns pontos essenciais do seu último ensino, que Lacan extrairá do encontro com o texto de Joyce e com as análises de mulheres, que, apesar de não saberem falar sobre o seu “excedente sexual” (a expressão freudiana na qual Miller reconheceu o objeto a), não deixam de mostrar com seus sintomas (e nas suas análises) qual o limite além do qual já não se trata simplesmente de significar a falta fálica.
1- A mediação fálica não drena todo o pulsional na mulher: algo resta. Ou excede.
É esta a afirmação central da citação. Significa que o pulsional na mulher é em parte imediato, no sentido literal de que não passa inteiramente pelo cotejamento do objeto materno com o falo.
Gostaria de me deter um pouco na expressão “mediação fálica”. Como o nome indica, ela se refere a uma posição terceira, central para Lacan já no seu primeiro seminário, onde situa a fala (parole) nesse lugar e nessa função. Mais adiante, três anos mais tarde, o termo mediação pôde ser atribuído à função do pai do pequeno Hans ou ao seu substituto metafórico, o cavalo. Diante do precipício representado pela demanda materna, dizia grosso modo Lacan, a criança pode contar com um recurso da linguagem que relativiza a demanda, vivida como uma ameaça que se dirige ao corpo.
Como órgão diferente do pênis, o falo é também aquilo que falta aos dois sexos, como a clínica das neuroses nos mostra todos os dias. E é como faltante que o falo é objeto de desejo, de forma diferente segundo cada sexo e cada estrutura sintomática. À falta de um exato correspondente anatômico, portanto, o falo ocupa o lugar de “falta fundamental necessária para introduzir meu desejo no significante”[2], como se expressa Lacan no seminário sobre as Formações do Inconsciente, e que indica igualmente o desencontro – também fundamental – entre os sexos.
2- A mediação fálica não esgota o que se pode dizer do instinto materno.
Em consequência, a equação simbólica – segundo a qual a chegada de um bebê de certa forma “indenizaria” a mulher da ausência de pênis, como último elemento de uma sucessão metonímica de equivalentes – não diz tudo sobre a sexualidade da mulher.
Justamente: é que, literalmente, não há tudo a dizer. Há algo no confronto entre o pulsional e as palavras que ultrapassa o simbólico. Neste sentido, a citação de Lacan antecipa algumas conclusões sobre a sexualidade feminina que só surgirão na década seguinte, tais como a mulher é não-toda fálica, ou há sempre nela algo que escapa ao discurso, e que situam as mulheres, segundo Jacques-Alain Miller, como “mais amigas do real.”[3]
3- Se nem tudo que é sexual é accessível à análise, é porque há algo de suplementar no sexual, algo que escapa à dimensão do analisável.
Com o avanço do ensino de Lacan, foi se tornando mais compreensível a ideia de que há uma dimensão do gozo que vai além do sexual – se me permitem, do sexual “strictu sensu” -, e isso nos permite responder como analistas a novas demandas de sujeitos que, mesmo marcados pelo sofrimento, não conseguem estabelecer a ponte, tão própria da neurose freudiana, entre as pulsões e os significantes, que no seu primeiro ensino Lacan descreve em detalhes, por exemplo, na explicação da fobia do Pequeno Hans[4].
Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)