Alberto Murta
No contexto da fundação da Escola Brasileira de Psicanálise, Jacques Alain-Miller nos convocava a revigorar o movimento da EBP, por meio do estatuto do Um. Ainda hoje, passados 27 anos, estamos atravessando momentos que dizem respeito aos efeitos da fragilidade do UM no interior da EBP. Quero dizer que não se pode passar despercebido em relação às pontuações, às interpretações, que foram arroladas no encontro marcado com o Passe, sob os auspícios da AMP, e que têm incidências no funcionamento da Escola Brasileira de Psicanálise. Afinal, por que o Um da EBP continua frágil? De qual Um Miller nos interpreta quando diz: “O Um da Escola é frágil e será bem-vindo tudo o que venha reforçá-lo com uma condição – que o Múltiplo o aceite de bom grado”[1]?
Miller, em uma lição de março de 2011, aborda o gozo do desaparecimento, mediante o apagamento do UM. Tendo constatado a fragilidade do Um frente ao múltiplo na EBP, será que podemos abordá-la como uma modalidade de apagamento do Um? Desdobro minha questão: será que esta fragilidade do Um tem incidências nas nomeações de AE pelo Comissão do passe na EBP, já que o AE pertence à Escola Una? Como fazer torções entre o Um e o Múltiplo quando o próprio Lacan nos adverte que não podemos promover deslizamento do Um ao Ser e, com isso, testemunhar o que ele chama de uma certa impotência?
Tomemos de empréstimo a proposição lacaniana presente no “ato de fundação da EFP”, quando deparamos com um certo ressoar do Um, somente só: “Fundo – tão sozinho como sempre estive em minha relação com a causa analítica – a Escola Francesa de Psicanálise”[2]. Vou me deter a um pequeno questionamento relativo ao início da primeira frase: “Fundo – tão sozinho como sempre estive”. Qual é a modalidade de estar só que se encontra presente nessa frase e que impele Lacan a manter viva sua relação com a causa analítica? Posso adiantar que este novo laço social, desembaraçado das obscenidades grupais, não é aquele da comunidade analítica regida pela ordem fálica, pelo universal fálico.
Lacan, à luz desse contexto, apresenta-se parceiro dele-mesmo. No fundo, ele recai numa das referências psicanalíticas que diz respeito ao momento conclusivo de uma análise e, portanto, à parceria de um psicanalista com o funcionamento do sinthoma, isto é: a escrita a vir de S1, S1, S1, (…), etc, como letra. Só, e somente só, como sempre esteve no Ato de fundação – 21 de junho de 1964.
O ato da fundação da escola lacaniana faz valer no seu movimento a orientação do Um. Na Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan já sinalizava que uma Escola não pode ser regida pelos sábios, nem tão pouco por alguns discursos que apregoam a bondade. Nesse sentido, o sozinho, aludido por ele, ressoa em muito as condições da infiltração singular da função exercida pelo psicanalista.
Insisto um pouco mais: a emergência da Escola Francesa de Psicanálise é um ato? Sendo sim, é impossível dissociá-lo de suas consequências. Por exemplo, uma das consequências que vigora no momento presente é esta abertura aos membros, promovida pelo Conselho da EBP, para escrever um pequeno texto ao Blog do Passe.
Sublinho o que Lacan diz sobre o ato psicanalítico na seguinte passagem: esse “ato (puro e simples) tem lugar por um dizer, e pelo qual modifica o sujeito”[3]. Logo, o ato passa a ser modulado/enquadrado por um dizer que toma corpo numa função existencial e, por conseguinte, esse dizer não vem do simbólico. Ele indaga: “Será que o Um-dizer, por se saber Um-sozinho, fala sozinho?”[4]. É desejável levarmos em conta esse Um-dizer na experiência psicanalítica, na medida em que ele ocupa uma posição existencial.
Dito isso, Miller nos convoca a praticar uma leitura da escola proposta por Lacan que seja disjunta da vida de grupo. Como sabemos, a vida de grupo esquece o discurso analítico. É preciso não só aceitarmos o desconforto inerente ao grupo, mas também sabermos aguardar que “o importante não está aí” nesse momento do presente[5]. Parece-me que o cursor, nesse contexto, torna-se mobilizado pelo ato. O ato emerge como um cursor que porta uma ética. Esta ética do ato psicanalítico é dirigida por Lacan, em 1969, nos termos que se seguem: “a lógica manda, isso é certo, por nela encontrarmos seus paradoxos”[6]. Desde já, fica evidente, que as normas não podem comandar a ética em jogo no ato psicanalítico, pois ele é comandado por uma lógica.
Afinal, o que é o ato psicanalítico? De imediato, apropriamo-nos da questão e da resposta de Lacan, isolada por Miller no texto “O ato entre intenção e consequência”[7]: “Ele é ato? É o que depende de suas consequências”[8]. Ora, ele sinaliza que o ato seja inferido pelas suas consequências, que o ato seja avaliado pelo que só emerge num tempo depois da sua entrada em atividade. Operou-se, então, o cruzamento do Rubicão!
Há um tanto de água no moinho da conversa com colegas sobre a questão do passe conclusivo e sua incidência no modus operandi de alguns AEs. Dentre os pontos sinalizados por essa questão, emerge um que engloba certa negligência perpassada pelo laço que eles estabelecem com a Escola. Nessa perspectiva muito atual, que abrange a questão da formação do psicanalista, é denunciado o regime de castas que eles habitam. Será que esses analistas se encontram num certo ponto sublime que lhes permitem realizar interpretações endereçadas à Escola?