Relatório do Cartel do Passe F9 da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) – 2019-2020
Redigido por Sérgio Laia (Mais-um)
O Cartel do Passe F9 se compôs pelo mais-um do Cartel que o antecedeu, três Analistas da Escola (AE) em atividade no momento de sua criação e duas analistas que já haviam sido AEs (sendo uma da Escuela de la Orientación Lacaniana, EOL), isto é, respectivamente, por Rômulo Ferreira da Silva, Maria Josefina Sota Fuentes (Secretaria do Passe/EBP), Sandra Grostein, eu, Angelina Harari e Silvia Salman. Neste Relatório, procurei, como mais-um escolhido pelo Cartel F9, recolher, apresentar e formalizar a elaboração coletiva de nossa experiência ao longo dos dois últimos anos.
Seguindo uma orientação estabelecida desde o biênio 2017-2019, funcionamos na modalidade de Cartel do Passe Ampliado porque a Secretária do Passe foi incluída entre seus membros. Essa inclusão da responsável pelo acolhimento das demandas de passe se faz ao modo do que Maria Josefina Sota Fuentes evocou-nos como “uma extimidade”: por um lado, a Secretaria do Passe não é dissolvida no Cartel porque, por exemplo, mantém, sem a participação deste último, “o contato frequente com a Secretaria do Passe da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)”, para discussão de questões específicas de suas funções; por outro lado, como um dos membros do Cartel, a Secretária do Passe não fica, como uma espécie de “supra-instância”, alheia às discussões e ao trabalho intrínseco ao passe.
O funcionamento e o imprevisto
Segundo as informações recolhidas por Maria Josefina Sota Fuentes, o Cartel F9 trabalhou, no biênio 2019-2021, com “quatro demandas de passe” que não foram abordadas pelo Cartel F8 porque este último se ateve a “oito demandas de outros passantes e sua permutação ocorreu em abril de 2019”. Esse acolhimento de demandas de passe endereçadas em período prévio ao da vigência de um Cartel é pertinente, na medida em que as estimamos visar ao dispositivo do passe e não a um Cartel específico. Trata-se, então, de uma aposta no dispositivo do passe e de sua própria sustentação. Afinal, essa passagem e o trabalho assim realizado, evocam-nos – e renovam! – o que Lacan, no momento de dissolução da École Freudienne de Paris, apresentou com uma mescla de decepção e aposta: “eu não aguardo nada das pessoas, mas alguma coisa do funcionamento”[i].
Temos verificado o quanto essa aposta de Lacan no funcionamento ganha vida nas Escolas da AMP, o que é bem diferente do tom de decepção que permeava sua avaliação do passe por ocasião da “Dissolução”: de um Cartel a outro, constatamos a existência mesma do passe, é isso que se passa porque temos dado provas de poder acolher – no âmbito do próprio funcionamento do dispositivo do passe – o imprevisto que muitas vezes, por exemplo, descompassa as relações entre o tempo das demandas dos passantes e o tempo do trabalho de um Cartel do Passe.
Entre as quatro demandas de passe concernentes ao biênio 2019-2021, uma resultou na nomeação de uma Analista da Escola (AE) e concluímos pela não-nomeação de três passantes. Quanto a novas demandas, nenhuma nos foi endereçada. Estimamos que, além do ritmo singular e imprevisível próprio a cada fim de análise e a cada decisão para se fazer o passe, a coincidência de boa parte da vigência do Cartel F9 com o período, ainda em curso, da pandemia do Coronavírus, pode ter contribuído para essa ausência de novas demandas de passe. Por sua vez, de acordo com informações fornecidas pela Secretaria do Passe da EBP, a lista de passadores foi acrescida de “três novas indicações”, realizadas, conforme prevê o Estatuto do Passe, por Analistas Membros da Escola (AMEs) que podem indicar “passadores a qualquer momento” e, diferente do que “ocorria antes de 2017”, essas indicações são acolhidas “sem a necessidade de consulta prévia a um êxtimo”, referendando ainda mais a “autoridade do AME” para realizá-las e, portanto, através dessa sua incidência no passe, a ligação entre a garantia e o passe.
As demandas de passe trabalhadas pelo Cartel F9, bem como os novos passadores indicados e, ainda, o reinício (a partir do final do ano passado) dos testemunhos dos AEs (embora ainda de modo virtual, mas amplamente seguido por nossa comunidade analítica de trabalho) mostram-nos, portanto, o vigor e a vivacidade do funcionamento do passe entre nós. Por fim, se esse funcionamento acabou por ser, aqui e ali, afetado pelo imprevisto da pandemia do Coronavírus, esse impacto se deu pelo que o passe implica quanto aos corpos e não, para evocar aqui mais uma vez a célebre formulação de Lacan, às pessoas.
Não nomear e nomear
Como formulou Silvia Salman em sua contribuição para este Relatório, consideramos a psicanálise como “a experiência de uma língua encarnada”. Assim, no passe, trata-se de transmitir e constatar essa encarnação de uma língua que – ao conjugar corpo e palavra, sendo específica de cada passante e não-toda conhecida dos passadores e dos membros do Cartel do Passe – é, como nos ensina Lacan, “feita de lalíngua”, ou seja, de “todos tipos de afetos que permanecem enigmáticos”, de “coisas que vão muito mais longe do que o ser falante (être parlant) supõe como saber enunciado”[ii]. No entanto, essa espessura enigmática e essa distância de tal saber não conferem ao passe um hermetismo, nem o fazem descartar alguma exposição sobre as tensões entre saber e verdade, sobretudo porque o passe exige que o passante nos transmita como a singularidade de sua experiência de impacto das palavras no corpo se diferencia de uma “elucubração de saber sobre lalíngua”[iii]. Por isso, no dispositivo do passe, temos uma transmissão sustentada e acolhida com palavras, mas – para a nomeação de AE – é decisivo que essas palavras tomem corpo e lastreiem uma verdade diferente tanto do saber que se enuncia quanto do saber que se elucubra, apresentando-se como uma enunciação inédita, impactante para os passantes, os passadores e os membros do Cartel do Passe.
Após termos trabalhado com quatro diferentes demandas de passe, contatamos que, nos relatos realizados pelos passadores (e, no Cartel F9, escutamos cada passador separado do outro), procuramos “captar”, segundo Silvia Salman, quais eram as “palavras vivas, tanto plenas de afeto quanto vazias de sentido”, marcantes “na vida do passante”, orientando-nos pelo que “se desvanecia do relato da história para agarrar”, nos “furos” provocados por esse desvanecimento, “o surgimento e a intensidade de um real”, elucidando “as contingências que deram lugar às séries de significantes e suas combinatórias”, mas também nos interessando pelo “pathos”, ou seja, pela dimensão pulsional conjugada ao isolamento de um “elemento lógico a ser lido nos circuitos” da vida e, sobretudo, da experiência analítica de cada passante.
Esse elemento lógico (ao qual, em um passe, as pulsões são conjugadas) se diferencia da lógica desencarnada pela qual se tenta, sempre em vão, experimentar o gozo restringindo-o à monotonia da fantasia. Mas, para chegarmos a uma nomeação de AE, foi decisivo que o passe desse mostras do quanto a dimensão pulsional presente na parceria com o sinthoma, embora se faça na vertente de uma identificação marcante do fim de uma análise, guarda alguma distância do arrebatamento que, como podemos notar na transmissão feita pelos passadores, toma, sem dúvida, o corpo de um passante. Envolvido, sem distância, nesse arrebatamento do sinthoma, um passante acaba por deixar de elucidar – frente ao Heteros[iv] evocado pelos passadores e corporizado pelo Cartel do Passe – como a experiência analítica lhe permitiu viver de outro modo (não mais tão secreto, hermético e elucubrado) a pulsão.
O sinthoma, sem dúvida, repara ou, dizendo melhor ainda, positiva, dá corpo ao gozo que, na lógica da fantasia, fica sempre negativado como plus-de-jouir, segundo a dupla acepção permitida pelo plus francês, ou seja, um mais que não chega, não basta e, portanto, acaba por negativar-se restringindo o falasser (parlêtre) à condição mortificada de sujeito dividido ($) e às promessas (fracassadas) do gozo limitado ao objeto a como mais-de-gozar. Porém, Lacan não promove apenas uma leitura acolhedora do sinthoma, como se ele fosse uma solução incontornável e frente a qual os analistas deveriam se curvar e simplesmente consentir. Afinal, Lacan situa “o equívoco como arma contra o sinthoma”[v], demarcando, ao nosso ver, que até do sinthoma – por melhor solução que ele seja – é decisivo se ter alguma distância, fazer-lhe alguma contraposição para que o arrebatamento no qual o sinthoma convoca o falasser não faça um passante malograr a transmissão da satisfação a que o fim de sua análise o conduziu.
Sem essa distância, esse contraponto, a transmissão que poderia provocar a nomeação de um AE se turva, mesmo quando momentos de passe, como pudemos constatar no Cartel F9, são demarcáveis ao longo de uma experiência analítica. Assim, de formas diferentes, na matéria apresentada por cada uma das três passantes que não pudemos nomear, encontramos mutações da satisfação pulsional promovidas por seus diferentes percursos analíticos, mas não nos foi possível localizar propriamente a transmissão dessa “satisfação” que, segundo Lacan, “marca o fim da análise”[vi].
Portanto, experimentar e constatar que o corpo vive de outro modo a satisfação pulsional não é, necessariamente, transmitir essa satisfação marcante do fim de uma análise. A matéria escutada e trabalhada permitiu ao Cartel F9 se haver com essa diferença e tirar-lhe consequências com relação à nomeação e à não nomeação. Um AE, então, mesmo sendo inassimilável a qualquer outro, é aquele que dá mostras de que, por exemplo, pelo equívoco, ele é não-todo arrebatado pelo sinthoma. É assim que ele sustenta a transmissão viva de sua experiência analítica, frente ao que lhe faz as vezes de Heteros nesse dispositivo insólito e permeado de acasos que é o próprio dispositivo do passe.
Satisfação, “performance” e transmissão
Nas palavras que cada uma das quatro passantes endereçou às suas respectivas passadoras, o Cartel F9 pôde discernir satisfações que já não se encontravam mais simplesmente sob o peso implacável da lógica da fantasia e que marcam a iteração do que Silvia Salman chamou de “um dizer que teve no corpo o impacto de um afeto duradouro” a ponto de se imiscuir, ao nosso ver, neste parceiro que Lacan nos ensinou a localizar como sinthoma. Nesse contexto, largada, luz dos olhos, silêncio e burra foram palavras que, não sem se perderem pelos labirintos do sentido, impactaram os corpos de quatro diferentes passantes, além de lastrearem circunstâncias de passe na experiência analítica de cada uma delas.
Largada prossegue – mas sem o sentido pejorativo que a acompanhava – na leveza com que um animal, em um sonho apresentado no limiar do fim de análise, se sobrepõe a outro que, por sua força, marca a urgência da passante frente ao desafio de viver sem análise, fazendo-a demandar o passe após uma grande parte de sua vida consagrada a ser analisante. Para a segunda passante, a dedicação gozosa de ser a luz dos olhos do Outro perde seu sentido e o olhar passa a iterar muito mais no que ela, mobilizada por uma renovada alegria no trabalho, contempla de outro modo o cotidiano e, por um pouco que seja, sem se apresentar como guia, experimenta a satisfação de se fazer olhar pelo que realiza. Por sua vez, a terceira passante evidenciou-nos como, frente ao silêncio ecoado por alguma surdez, ela deixou de antecipar o sentido para acolher o que, não sem mal-entendido, ressoa, por exemplo, em um letreiro que conjuga luz e som ou na fala de um ser cujo modo de vida não tem qualquer relação com o dizer, presentes em dois sonhos importantes para sua demanda de passe. Por fim, a quarta passante, se desprendeu do imperativo do significante burra que a deixava confusa a ponto de tomar a devastação materna e a carência do pai como incontornáveis e passou a fazer um uso do que é simples, inclusive no que endereça ao passe, para ao mesmo tempo discernir o tudo junto e misturado que, como uma colcha de retalhos, mesmo sem apresentar a lógica de sua trama, é a matéria mesma de sua vida.
Porém, o desprendimento da confusão do sentido e certa proximidade com relação ao sintoma, embora decisivos para o que se apresenta no fim de uma análise e para a verificação de novos modos de se haver, de savoir y faire concernentes à satisfação pulsional, nem sempre ressoaram a ponto de provocarem, sobre o Cartel do Passe, o impacto decisivo para a nomeação de AE. Tal impacto acontece quando (e me valho aqui de termos extraídos da contribuição de Silvia Salman) “uma relação com o significante mais próxima do real” pode ser transmitida pelo passante a seus passadores e constatada pelo Cartel. Consideramos importante destacar que não se trata apenas de o significante ecoar ou trazer a marca do real, porque isso se apresentou, de formas diferentes, nas palavras que nos foram transmitidas pelas passadoras dos quatro passes com que o Cartel F9 trabalhou. Esse trabalho nos permite agora afirmar que um novo uso do significante, mesmo tomado pela proximidade ao real, não dá lugar, necessariamente, a um “significante novo” que, segundo aspira Lacan, não só fosse destituído de sentido como também, “contrariamente ao uso que se faz disso…, tivesse um efeito”[vii].
Em nenhum dos quatro passes escutados no biênio 2019-2021, esse efeito pôde se fazer sentir pelo que Lacan, em sua primeira concepção do passe, localizava, segundo Miller, como uma “verificação… ao menos suficientemente lógica”[viii] do fim de uma análise. Estimamo que a dificuldade desse tipo de verificação pôde acontecer por serem passes de analistas mulheres, e mulheres, na diversidade singular dos modos de satisfação de cada uma, tomadas pelo não-todo que não deixa de ser refratário a demonstrações lógicas muito evidentes. Porém, Miller também destaca que a concepção lacaniana do passe não se atém apenas à via pela qual um sujeito, por ter chegado ao fim de uma análise, “tem que dizer o que sabe” sobre a “causa do desejo” da qual ele passa, com tal fim, a ser um “versado (savant)”[ix]. Há no passe, ainda, outra via, tomada pela satisfação experimentada ao fim de uma análise e, assim, o efeito de um significante novo destituído de sentido e próximo do real se propaga na transmissão dessa satisfação. Mas como transmitir o efeito de uma satisfação que faz o corpo acontecer de modo inédito para quem faz a experiência de um fim de análise? Como se trata de corpo – e não apenas de se experimentar versado em uma causa passível de alguma verificação lógica –, Miller diferencia o passe de “uma competência”[x] e o elucida, a partir do último ensino de Lacan, como “o testemunho de certo tipo de malogro”[xi]. No entanto, consideramos oportuno destacar que esse malogro tampouco se confundiria com uma desistência ou um hermetismo porque exige do passe a transmissão de “uma performance”[xii] que, a partir das discussões sustentadas pelo Cartel do Passe F9, me parece pertinente conceber como a colocação em ato, para o Cartel, da satisfação experimentada por um passante ao fim de sua análise.
Podemos dizer que não foi possível ao Cartel F9 nomear uma AE quando a transmissão desse efeito performativo significante, alheio ao sentido e próximo do real, se turvou. No primeiro passe que escutamos, a força e a leveza da largada demarcaram a conclusão de uma longa experiência analítica, mas a satisfação experimentada pela passante, ao tomar a forma de um largar sem perguntar-se pela chegada, não fez chegar ao Cartel F9 a performance que poderia ter como efeito a nomeação de AE. Em um segundo passe, demarcou-se todo um savoir-faire com o pouquinho, o que de modo algum é pouco para quem se guiava sendo a luz dos olhos do Outro, mas a posição, frente ao passe, de ter feito a sua parte, com ou sem a nomeação, ecoou sobre o Cartel F9 mais como um resto de indiferença que como um efeito de satisfação. Quanto a uma terceira passante, pudemos acompanhar como a ausência de intervalo, preenchida por muito tempo por uma antecipação do sentido, deu lugar a um intervalo para escutar (e mesmo incluir), sem ficar perdida, a emergência de um real na via mesma do sem sentido, mas os tons da satisfação que marca um fim de análise pareceram-nos diluírem-se sem chegarem a impactar efetivamente o Cartel F9. Por sua vez, o passe que permitiu ao Cartel F9 realizar a nomeação de uma AE ensinou-nos que a palavra, ferindo e agitando o corpo, pode se valer do humor que, como “afeto separador” (expressão de Silvia Salman), é demonstrativo tanto de um modo de lidar com o incurável do sintoma, quanto de um uso do equívoco como o que a permite transmitir-nos sua satisfação sinthomática sendo não-toda arrebatada por ela. Assim, no caso da passante que pudemos nomear AE, o que cada passadora nos fez chegar como uma colcha de retalhos, com tudo junto e misturado, se compôs também como um passe no qual os impasses relativos a uma verificação minimamente lógica do final acabaram por se corporizar como a trama mesma da satisfação experimentada
A propósito da nomeação que pudemos fazer de uma AE, a fluidez dessa mistura entre transmissão da satisfação experimentada no fim de análise e uma trama composta de retalhos também se colocou em ato quando, devido à pandemia do Coronavírus, o encontro marcado com um êxtimo ao Cartel F9 para definirmos a aposta neste passe não pôde se efetivar em data mais próxima àquela em que havíamos escutado suas passadoras e só aconteceu, excepcionalmente de modo virtual, muitos meses depois. Na extensão desse lapso de tempo entre a posição do Cartel quanto à existência de uma AE e sua reafirmação a partir do encontro com um êxtimo, tivemos a princípio a experiência de que a certeza de nossa posição se esvaía. Porém, à medida em que retomamos o que foi transmitido pela passante, nos vimos – membros do Cartel F9 e êxtimo – mais uma vez tocados pelo humor que, derivado de retalhos extraídos de sua experiência analítica, se colocava em ato até mesmo no contexto de um encontro virtual, e como a satisfação testemunhada ao fim de sua análise.