Quatro mais um, o que se escreve nas redes
Uma das mais conhecidas teóricas sobre os efeitos da AIDS na cultura, Paula Treichler, foi pioneira na distinção entre pandemia real e simbólica (1). Vivemos no momento algo semelhante, o vírus faz furo no corpo imaginário, como algo inassimilável no espelho, e faz furo no simbólico, como algo que afeta nossos ritos e códigos de vida. O novo código social, para a parte do mundo que escolhe a cultura e não a barbárie, impõe a separação dos corpos por um certo período, deixando a sombra de que futuras separações, em caso de recrudescimento de notificações possa ocorrer. Isolamento de corpos não implica em isolamento social, pois a marca do humano é a linguagem, e as redes sociais nunca serviram tanto para favorecer os encontros.
A comunicação virtual, fora alguns efeitos que derivam da etologia, nos separa da natureza, já que os animais isolados se dissociam sem possibilidade de comunicação, eles não formam bando, tal como uma ovelha desgarrada do rebanho. Já o homem, ele descobre de modo cada vez mais acelerado a vertigem das possibilidades do encontro virtual. Assim como havia um sem limites de reiteração narcísica das imagens por selfies, vivemos o sem limites da presença do outro. Os grupos de WhatsApp, as chamadas e seminários por Zoom, Skype ou Messenger, encurtou o espaço de comunicação, tempo necessário para compreender, e nos lançou todos em um presente de eterna vigília. Quais os efeitos sobre a temporalidade subjetiva, em que “Toda assimilação ‘humana’… se põe como assimiladora de uma barbárie”? (2)
Pouco sabemos do que vai emergir após o confinamento, mas temos a certeza de que os encontros virtuais, antes vistos com desconfiança, encontraram um lugar definitivo na civilização.
O Cartel não é uma rede
O momento atual exige que se coloque a questão, como fazer o cartel acontecer nas redes sem se confundir com elas? Como instituir o vazio estruturante da produção do cartel quando tudo leva à volúpia das comunicações virtuais, do “todos unidos” em uma tarefa de saber? Os efeitos sobre o trabalho surgiram rapidamente após os primeiro dias da quarentena. O mestre da época exige que tornemos rentáveis esse momento de parada, a civilização do objeto não pode deixar o vazio que lhe corresponde sem que um pleno de gozo seja cobrado. Rapidamente todos se colocaram a trabalhar, ainda mais, mais cursos, mais grupos, mais atividades do que antes. Cito um comentário de Diana Wolodarsky: “a produção é impossível de frear na medida em que se mistura o frenesi da produção com o elan pulsional. Para dizer de modo metafórico, o usuário e o dejeto, tal como Aquiles e a tartaruga, não correm nunca juntos. Então, essa corrida que hipnotiza deixa o espectador no lugar de objeto (3). Não se trata, portanto, de explorar as potencialidades do virtual, do empuxo a comunicar, mas do cartel justamente como o que faz obstáculo ao todos juntos. Em tempos de cartel virtual, o mais importante é reintroduzir a solidão, não fazendo do cartel uma sociedade de ajuda mútua.
Crise e precariedade
Minha experiência com cartéis virtuais, como para a maioria, começou na lua de mel das potencialidades da internet. No início, nada era mais instigante do que a possibilidade de se associar a colegas de outras cidades, outros países, sobretudo para locais em que a comunidade analítica era pequena, e as trocas com outras Seções, Delegações e mesmo Escolas permitia que o Uno da Orientação Lacaniana se consolidasse com menos possibilidades de desvios. Sim, a palavra “desvio” me parece oportuna, o cartel pode ser visto como uma via de saber em direção ao Uno da Escola. Sabemos da importância dos cartéis a distância para a consolidação das recém chegadas Seções Sul, Nordeste e Centro-Oeste, sabemos também como foram importantes para a consolidação da NEL e da NLS, Escolas da AMP onde o múltiplo é a característica.
Contudo, é necessário distinguir as crises dos cartéis, que são quase indissociáveis de suas próprias instituições, da precariedade que os excessos de comunicação pode provocar. Cito três experiências em que fui Mais-um e que me ensinaram algo.
Um cartel constituído por membros em que quatro deles estavam em cidades diferentes nos Estados Unidos e eu em Salvador, o cartel se reunia com regularidade mensal, e poucas trocas de textos eram feitas, onde um e outro traziam eventualmente suas produções e mesmo textos, relativos ao cartel, que eram apresentados em jornadas da AMP. Esse cartel durou relativamente bem por um ano e meio. Havia uma particularidade curiosa, fora uma colega de Nova York com quem tinha conversado algumas vezes, nunca tínhamos nos visto pessoalmente. Tive uma grata surpresa quando fui dar um Seminário em Nova York, apesar de morarem em pontos muito distantes dos Estados Unidos, nos encontramos pessoalmente pela primeira vez. Ali, celebrávamos uma transferência de trabalho e também marcou o término do cartel. Algo se escreveu.
Uma outra experiência não deu certo. Ela serviu para me mostrar os riscos dos excessos de comunicação. Fui convidado para ser Mais-um por quatro pessoas de uma cidade distante. A escolha de meu nome foi feita pela transferência a textos e alguns seminários que tinha dado na cidade. Todos muito atentos e com muita expectativa sobre minha participação. Contudo, o cartel passou a ter a estrutura de um grupo de Whatsapp, ou seja, ao invés do encontro marcado, fui incluído também neste grupo. Assim como acontece em inúmeros outros grupos que acabo sendo incluído, o excesso de informações trocadas torna absolutamente impossível, se você não é adicto, acompanhar o que se passa. O que deveria servir para comunicar serve para afastar. E foi assim com esse cartel, em um momento fui surpreendido vendo meu nome sendo excluído do grupo e, pouco depois, um dos membros me comunica a decisão coletiva de encerrar o cartel. Provavelmente os desapontei pelo meu pouco engajamento, mas são conjecturas, pois a estrutura de término desse cartel não foi a estrutura de um ato, como deve ser, e sim de um acting out em que pude apenas testemunhar, mas não antecipar, já que a comunicação veio après coup.
Uma terceira experiência está acontecendo, dessa vez com colegas, todos da EBP, todos pessoas amigas. Ainda tento me situar, resistindo às trocas no grupo de WhatsApp para preservar o inédito do encontro em reunião. Como falei no exemplo dois, o risco do excesso de informações é precisamente que nada seja informado. Tal como a carta roubada, o que realmente importa fica apagado sob nossos olhos. Passamos o dia de grupo em grupo, em um chat ininterrupto, sem espaço para o furo, para o tempo lento das elaborações. Essa é a precariedade do virtual, impor a falta da falta, angustiar pelo excesso. Como reflexão penso que o Mais- um virtual pode ser aquele que introduza o tempo lento da elaboração diante do que pode ser a angústia do insistente presente das redes.