Silêncio e angústia no tratamento analítico[1]

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Gustavo Oliveira Menezes[2]

Podemos dizer que há distintos silêncios e que, dentre estes, há silêncios que angustiam, enquanto outros sinalizam a angústia. Para cada ser falante, é preciso verificar de qual se trata.

Silêncio infamiliar

Já em Freud, silêncio e angústia aparecem juntos. Se o infamiliar é o que “suscita angústia e terror”[3] e está ligado ao retorno do recalcado, para Freud, o silêncio, ao lado da solidão e da escuridão, sinaliza “o papel do perigo da emergência do infamiliar”[4] estando ligado “à angústia infantil, que não desaparece por completo na maioria das pessoas”[5]. Através do conto de Hoffmann, Freud vincula o terror de ser privado dos olhos à angústia de castração, seja esta exercida pelo Homem da Areia ou pelo Pai.

No Seminário 10, A angústia, Lacan dirá que o infamiliar “é aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi[6], ou seja, quando falta a função da falta e retorna, de maneira inesperada, na dimensão mais familiar. Se para Freud, diante do sinal da angústia, o Eu deve operar na via do recalque para se defender de um perigo interno e da exigência pulsional do Isso, Lacan faz desta o sinal de uma presença excessiva do que ele chamou de objeto a e que se apresenta como o que não pode ser dito. Há algo no Outro que não é significante, e a angústia, único afeto que não engana, é um dos caminhos de que Lacan se utiliza para apreender o real e o objeto em sua dimensão de resto, de gozo impossível de negativizar.

Mas é a partir do seu último ensino que Lacan proporá uma distinção radical entre o real e o objeto a: este se encontra no caminho do simbólico para o real, mostrando assim sua verdadeira natureza de semblante. É no gozo chamado feminino que encontramos uma das modalidades do silêncio: o gozo opaco, fora do sentido, é da ordem do impossível de dizer e no qual cada um está em sua solidão, sem o Outro. São muitas vezes os fenômenos angustiantes que surgem e apontam para a afinidade do silêncio com o gozo.

Da ficção ao real mudo

Segundo Jacques-Alain Miller, “o silêncio é a relação eminente do sujeito com o significante e encontra-se na encruzilhada entre o analista e a pulsão”[7]. O silêncio como suporte da função analítica difere das formas pulsionais do silêncio. O silêncio do analista faz falar, é um convite ao dizer, mas é da ordem do semblante. No silêncio da pulsão não há diálogo, e isso goza, o que não significa que há uma oposição entre a palavra e o gozo. Miller sugere que do lado do analista há um movimento duplo: por um lado, contraria o silêncio da pulsão; por outro, contraria a historização do inconsciente. É nesse intervalo que o silêncio do analista vem se alojar. Já o silêncio da pulsão resta como um dos mistérios do corpo falante, da junção entre corpo e linguagem.

Se, na via do inconsciente transferencial, a angústia se apresenta ligada à estrutura de ficção, o silêncio, por vezes, implica em fazer ouvir o real da angústia e conduzir ao fora de sentido. No inconsciente real, próximo ao Isso freudiano e análogo ao traumatismo, a angústia está ligada à separação, ou seja, não mais ligada à castração e ao Édipo, mas separada do Outro. Ela é sinal do real – o qual jamais é alcançado, mas que tem na angústia sua “via mais direta de acesso”[8], ao mesmo tempo que é defesa, impede que se reduza o real a uma última palavra.

“O real não fala”[9]: é assim que Miller nos indica uma das chaves do Ultimíssimo ensino, e que implica uma primazia da escrita sobre a fala. Quanto mais Lacan promove o gozo em seu ensino, mais a referência à comunicação se dissolve. Não há nele reciprocidade, diferente do amor que se prende à verdade mentirosa. A verdade fala, é variável, ao passo que “o gozo é mudo, inclusive o saber que comporta”[10].

Mas como fazer ressoar o silêncio da pulsão? Um silêncio que se opõe ao inconsciente-intérprete? Se a operação analítica dá um golpe de sentido ao real mudo, podemos fazer aqui uma articulação à angústia por outra vertente: a do ato.

As saídas pelo ato

Desde o Seminário 10, Lacan mantém aproximados angústia e ato, como nos casos de passagem ao ato e acting out. Na homeostase da cadeia significante, não há ato nem angústia, porém, quando há a presença do objeto a, nós os encontramos. Aqui a angústia sinaliza que há uma operação a ser realizada no registro do ato, que há um resto que se deve destacar e que não passa pelo sentido. Em Los usos del lapso, Miller nos chama a atenção de que, em todo ato, fabrica-se um antes e depois a partir de um esforço necessário e que tem seu preço. Há uma tensão temporal que obedece ao afloramento da angústia no momento de concluir, ao passo que esta pode encontrar ali uma resolução.

Portanto, há uma articulação entre a certeza da angústia e o ato que engendra a certeza no tempo lógico. A angústia se inscreve no limite do ato, e a libido ali presente “impulsiona o sujeito neste salto”[11] em uma zona na qual se avança sozinho. Assim como os três prisioneiros, sair do silêncio depende de um ato. Se só há ato se houver um fundo de angústia, Miller diz que “ocasionalmente, o sinal de angústia é sinal de que há um ato para fazer”[12]. No percurso de uma análise, trata-se então de reduzi-la à sua função de sinalizar a emergência de uma separação.

O ato final é o da passagem de analisante a analista. Como testemunham os AE, não se elimina a angústia, mas ela resta ligada ao furo no saber, impossível de preencher; porém, diferentemente de continuar provendo sofrimento, torna-se satisfação. No passe, pode-se verificar como se inventou um novo modo de consentir ao silêncio, do encontro com o furo no real, enlaçando o silêncio ao desejo do analista. Se o gozo não fala, uma análise pode servir para enlaçar esse silêncio ao Outro, poder bem dizê-lo sem horror e angústia.[13]

Victoria Horne Reinoso relata como chegou a um significante novo, murmúrio, o qual já não tinha nenhum impacto de sentido, mas que levou um tempo para que, segundo ela, consentisse “no ato conclusivo passando pelo que, em [seu] corpo, fazia acontecimento, como o a posteriori de uma certeza antecipada que não queria dizer seu nome”[14]. Ela diz que foi uma experiência infamiliar, índice do que esse significante novo sinalizava: a sensação de que não mais pertencia àquele lugar, e que produziu um efeito no corpo uma vez realizada a separação.

Ser a filha amada que recebia todas as palavras do pai perde lugar com a chegada da irmã mais nova. Na cena infantil, ela tenta esmagar a mão da pequena irmã com seu sapato e é imediatamente retida por uma palmada e pelo olhar silencioso do pai. Assim, “a dimensão pulsional do silêncio reprovador do pai vem quebrar a tela de amor da canção”[15] e ressoa o ponto de indizível da experiência vivida. Ao longo da vida, sua demanda oral por palavras que pudessem recobrir o silêncio, juntamente ao sintoma fóbico, visava remediar a angústia. O murmúrio é a “matéria sonora, rastro de fala habitado pelo silêncio, constatação do impossível de dizer”[16].


[1] Texto preparatório para o XV Congresso de Membros da EBP “Modalidades do silêncio: entre o dizer e o calar”, apresentado no Podcast haZum, n. 4, em março de 2023.
[2] AMP/EBP.
[3] FREUD, S. O infamiliar. (1919) In: FREUD, S. O infamiliar / Das Unheimliche / Sigmund Freud; seguido de O Homem da Areia. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 29. (Obras Incompletas de Sigmund Freud, 8)
[4] Ibidem, p. 99.
[5] Ibidem, p. 115.
[6] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. (1962-1963) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 51.
[7] MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 11.
[8] RECALDE, M. Angústia. Scilicet: Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 43.
[9] MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2020. p. 235.
[10] Ibidem, p. 242.
[11] MILLER, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2018. p. 453.
[12] Ibidem, p. 456.
[13] KUPERWAJS, I. Silêncios. In: ANTELO, M.; GURGEL, I. (orgs.). O feminino infamiliar: dizer o indizível. Belo Horizonte: EBP, 2021. p. 331.
[14] REINOSO, V. H. O impacto de um silêncio. Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 87, p. 127, abr. 2022.
[15] Ibidem, p. 129.
[16] Ibidem, p. 130.