Porque cartéis

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Elisa Alvarenga (EBP/AMP)

 “Constituem-se equipes de cerca de dez sujeitos, nenhum dos quais é investido de uma autoridade preestabelecida; uma tarefa lhes é proposta, que deve ser resolvida em colaboração … [com a] preocupação de se fazer valer ao objetivo comum, perseguido pela equipe”

(Lacan, J. A psiquiatria inglesa e a guerra, Outros Escritos, p. 119).

Começo com esta citação, extraída do texto de Lacan que serviu de base para sua invenção do dispositivo do cartel, após seu encontro, na Inglaterra, com os psiquiatras ingleses Bion e Rickmann. Publicado em 1947, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, ele traz o testemunho de Lacan de uma experiência realizada por esses psiquiatras durante a guerra com os recrutas que afluíram para o hospital militar sob a rubrica da inadaptação, delinquências e reações psiconeuróticas. O método de trabalho inventado por esses psiquiatras, servindo-se da inércia fingida do psicanalista, com esses pacientes, consistia em formar grupos sem líder, definidos por um objeto de ocupação, inteiramente entregues à iniciativa dos homens. O resultado foi a constituição do “espírito de grupo” e a realização de um trabalho coletivo escolhido pelos grupos, reerguendo o sentimento de dignidade desses homens.

Se a questão colocada pela Equipe de Cartéis da EBP é sobre o número de cartelizantes e a pertinência – ou não – dos “cartéis ampliados”, penso que essa experiência inaugural dos grupos operativos ingleses que inspirou Lacan nos aponta um caminho de reflexão. Nela, as equipes pareciam contar com um número maior de participantes que o clássico número de cartelizantes – três a cinco – proposto por Lacan. E se reuniam em torno de tarefas a serem executadas.

Esse é o ponto em comum com minha experiência em “cartéis ampliados”, dos quais venho participando há vários anos para algumas tarefas específicas: cartéis clínicos do CPCT da Seção Minas, relatórios do ENAPOL e cartéis das Jornadas da EBP-MG. Todos eles, apesar de serem por nós denominados cartéis, por um especial apreço por esse dispositivo de trabalho, não puderam ser inscritos na EBP, pois tinham um número de participantes maior que o instituído no formulário de cartéis da EBP, como, imagino, das demais Escolas da AMP.

Instigada pela equipe de cartéis da EBP a escrever algo sobre o tema, consultei três colegas com quem trabalhei – seja como cartelizante, Mais Um ou coordenadora – nos últimos três anos, nos cartéis preparatórios para as Jornadas da EBP-MG.

Helenice de Castro lembra que desde os primeiros ENAPOL já chamamos cartéis esses grupos de trabalho que realizam relatórios coletivos para apresentação nos encontros. Mas, ela pergunta, se não podemos inscrever esses grupos como cartéis na Escola, por eles serem constituídos por um número maior de participantes, eles seriam realmente cartéis? Tendo a concordar com ela se pensarmos que, ao contrário dos cartéis preconizados por Lacan, aqui não são quatro que se reúnem e escolhem um Mais Um, mas a equipe da Jornada ou Encontro é que escolhe os Mais Uns e sugere alguns cartelizantes, não todos, a serem convidados pelo Mais Um. Uma subversão importante do mecanismo original proposto por Lacan. No entanto, se consideramos a experiência original que inspirou Lacan, parece razoável chamar esses grupos de trabalho de cartéis.

Ludmilla Feres Faria responde com uma pergunta: o que dificulta e o que facilita o funcionamento no modelo de cartel quando ele é formado de outra forma, por exemplo para preparar nossas Jornadas? Ludmilla observa que os cartéis dos quais tem participado para as Jornadas – como Mais Um ou cartelizante – todos ampliados, têm produzido em alguns colegas, não em todos, elaborações provocadas por nossos convites, seja a contribuição para um trabalho coletivo, seja pequenos textos individuais.

Revisitando o texto de Jacques-Alain Miller, “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”, Ludmilla observa que o cartel, mesmo ampliado, é o lugar de uma provocação ao trabalho, de uma elaboração provocada pelo Mais Um. Os cartéis formados para preparar as Jornadas são uma verdadeira provocação ao trabalho. Assim como o Seminário de Miller pode ser considerado por ele como um grande cartel, embora não seja um cartel strictu senso: “Meu seminário é para mim um grande enxame onde eu mesmo sou abelha, e não rainha”. Esse enxame está bem formado quando cada um tem sua razão para estar aí e trabalha a partir de sua insígnia. A função daquele que se presta a ser Mais Um é fazer com que cada membro do cartel tenha seu traço próprio: isto é o que faz uma equipe, diz Miller.

É o que temos visto nos cartéis das Jornadas. Os cartelizantes, não todos, divididos e em busca de um saber, trabalham a partir de suas questões. Provocadas pelo convite ao trabalho da equipe da Jornada, transmitido pelo Mais Um.

Fernanda Otoni, finalmente, responde: “No trabalho da comissão científica de uma Jornada, sempre partimos de uma pergunta sem resposta. Não há lugar mais provocador do que o ambiente pulsante que funciona como um cartel. Sem mestre, cada um com seu vazio e sua experiência, lendo o texto a partir de sua causa. Provocando uns aos outros e vibrando quando um saberzinho qualquer se articula e precipita entre nós”.

Fernanda lembra que Lacan propõe que o trabalho na Escola deveria contar com a reunião de alguns pelo tempo que durar o trabalho, para logo se dissolver, antes que os efeitos de grupo mortifiquem o que esse encontro contingente, movido por um desejo de Escola, ativou. Esse encontro de solidões faz eclodir, a partir do que ressoa da voz do outro e do que cada um carrega sem saber de si, uma enunciação, um saber novo, uma resposta para um impasse e uma alegria com o saber. O cartel assim descola a defesa inibitória e, a partir do desejo de cada um, vivifica a experiência de Escola, nosso trabalho e a experiência analítica. Mesmo que seja para realizar um relatório coletivo, o produto é sempre de cada um, conclui Fernanda. E acaba resultando em outros trabalhos individuais ou na participação de cada um no debate público dos produtos do cartel.

Concluo então, a partir da nossa experiência com os “cartéis ampliados” para realizar tarefas na Escola, e de maneira especial para preparar nossas Jornadas, que o número de cartelizantes não tem diluído a lógica do funcionamento proposto por Lacan. Aqui, a elaboração é provocada, como em todo cartel, a partir do que ressoa na experiência e no desejo de cada um, podendo resultar em um produto coletivo, mas também numa elaboração própria a cada um.