Não me escute, sou de outro planeta, ainda vejo horizontes onde você desenha fronteiras.
(Frida Khalo)
A queda do falocentrismo
A trama edípica que regula o desejo e o gozo já não é mais o que era. Assistimos a uma queda da significação do falo no sentido forte do termo, como aquilo que permite “a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem sequer responder, sem graves vicissitudes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher com justeza as da criança daí procriada”, segundo a conhecida frase de Lacan[1]. As referências identificatórias que na atualidade sustentam o laço social, a formação do casal e o cuidado com a prole têm sofrido tais modificações que pareceriam se dissolver. Sem dúvida, as mudanças no que diz respeito aos comportamentos são notáveis; falta elucidar se elas se traduzem em verdadeiras mutações no plano do desejo inconsciente e do gozo pulsional. A psicanálise não se ocupa dos fenômenos, sempre variáveis, mas da lógica com que cada sujeito assume sua relação com o gozo, o amor e o desejo.
Nesse sentido, a queda da função ordenadora do falo nos obriga a colocar à prova nossa clínica, mas também a manter a cautela de não sermos contaminados pelos clichês sociais próprios da psicologia, da sociologia ou da educação. No fim das contas, o que os analistas escutam todos os dias, mais além das modalidades históricas que regem o que se apresenta, é: “…essa cadeia espúria de destino e de inércia, de lances de acaso e de estupor, de sucessos falsos e de encontros desconhecidos, que constituem o texto corrente de uma vida humana.”[2] Aí, tudo gira em torno do fracasso.
Convenhamos, não obstante, que a clínica do Édipo e da castração se vê ultrapassada e nesses assuntos temos que nos orientar com os recursos que Lacan precisou produzir quando ele mesmo enfrentou o surgimento de novas formações sintomáticas que já não eram regidas pela significação do falo e, no entanto, são relativamente funcionais, incluindo algumas enormemente bem-sucedidas. Não é de estranhar que Lacan tomará a psicose como referência para pensar sobre o novo paradigma da subjetividade.
Os efeitos da globalização, o empuxo à realização de um gozo sem limite, as adicções generalizadas, a comunicação em redes que formam um conjunto aberto sem amo que o comande, as múltiplas declarações de sexo, o poliamor, a queda dos grandes ideais, o desmascaramento do Nome-do-Pai como pura ficção, desenham um panorama inédito, como o que precede toda mudança de época.
Jacques-Alain Miller, em Os usos do lapso, afirma que “a ordem simbólica, hoje, é devorada por traças e é por isso que entramos na grande era da feminilização do mundo”[3].
Eu enfatizo o “hoje”, que acerta os ponteiros do relógio e nos indica como um novo mundo já se abriu diante de nossos olhos. Um mundo caracterizado pela queda do falocentrismo em que alguns sustentam que as mulheres, a partir da posição de não-toda, se adaptam melhor, enquanto os homens se encontram desorientados. Esse ponto de vista parece-me discutível, pois o que se verifica na clínica é a enorme contradição que as mulheres de hoje enfrentam quando a exigência de se libertar da ordem patriarcal não coincide com suas condições de amor e de gozo.
Como respeito à feminilização do mundo, o paradigma que Miller nos traz para pensar sobre a subjetividade moderna é o do Desejo da Mãe como pura vontade sem lei, e ele o relaciona com o capricho sem lei do gozo feminino em seu caráter absoluto, infinito e incondicionado. Na época da ordem patriarcal, quando uma mulher detinha o poder, se dizia que se virilizava. Agora que o Outro não existe, chamar Margaret Thatcher de “ dama de ferro” é uma redundância pois é precisamente sua condição de mulher que a leva a impor uma vontade inflexível.
Por esse viés, entramos num terreno extremamente complexo, no qual se faz necessário estabelecer, claramente, as diferenças entre os distintos gozos. se é que queremos seguir mantendo uma teoria dos gozos (no plural e heterogêneos). A outra opção é estabelecer uma única distinção entre o gozo fálico e o gozo que não o é. Se o gozo feminino (suplementar) é equivalente ao regime do gozo que não entra na lógica edípica, então não podemos distingui-lo do gozo das adições, nem da circularidade constante da pulsão, inclusive da invasão de gozo própria da psicose. Não me parecem análogas as experiências com o Outro barrado que podem ter um psicótico, um místico ou uma mulher. Uma coisa é o delírio de influência completamente divorciado do falo e outra o gozo extático ou o extravio feminino que não é sem o falo.
Por outro lado, nesse panorama de feminilização do mundo, o gozo fálico em sua versão de ignorância autoerótica prolifera por toda parte.
Mas o conceito de falo tem muitas facetas e, assim como algumas parecem cair, outras se elevam ao zênite. Desse modo, podemos brevemente resumir o cenário que enfrentamos:
Inflação do semblante e do gozo fálico em sua vertente narcisista. Mostramos indiscriminadamente nossa imagem e visualizamos compulsivamente a dos outros, como se nelas pudéssemos encontrar o ser.
Deflação da função do falo como motor de um desejo capaz de se dirigir ao Outro e sustentar as consequências.
A diferença decisiva entre o gozo proibido do passado e o gozo exigido da atualidade é o empuxo para ir mais além dos limites estabelecidos, e é nesse ponto que se supõe certo parentesco com o prazer feminino. Entretanto, em boa lógica, convém diferenciar a ausência de limites do gozo feminino dos excessos comandados pelo superego. Quanto ao gozo feminino, ele tem mais de “louco” que de excessivo, mais de “aberto” por falta de limite do que de extralimitado ou perverso.
Lacan nos exorta a estar atentos ao horizonte da época, mas também nos adverte que “o psicanalista não é recrutado entre aqueles que se entregam inteiramente às flutuações da moda em matéria psicossexual”[4].
Hoje, como ontem, A mulher continua a encarnar o Outro absoluto, excluído do campo da linguagem, embora alguns sustentem que já não é assim, dada a sua inclusão em todos os âmbitos públicos. Por outro lado, o falo, ainda em sua queda, continua sendo aquilo que castra tanto o homem como a mulher, introduzindo a falta, o desejo e a sexualização do gozo.
Podemos concluir que a igualdade obtida no plano dos direitos civis reduziu a rejeição do “feminino” ou a angústia diante do Outro sexo?
O dizer dos poetas
Para falar sobre o gozo feminino, é melhor deixar-se orientar pelo dizer dos poetas e é isso que vou fazer nesta conferência.
O romancista francês Rémy de Gourmont nos disse: “Oh! esse feminino escuro que passa e vai e que jamais será tocado – que se desvaneceria se tocado fosse, já que seu encanto reside em ser desconhecido e intocável.”[5]
Notemos que o autor não se refere às mulheres em geral, nem mesmo a uma mulher em concreto, mas a “esse feminino escuro” porque não há nem imagem nem dizer que o represente. Trata-se de um real que, como diz o poeta, não pode ser tocado por mais que se tente. Nem o entediado Raja, que ordena arrancar a pele da dançarina, nem o homem que leva seus ciúmes até o assassinato, conseguem tocar “esse feminino” que “passa e se vai”. No entanto, em ocasiões, uma palavra ou um gesto tocam o feminino de uma mulher e isso se produz para além das intenções do emissor. Nesses casos, ela recebe um signo do Outro que não existe que a leva a sentir um gozo insensato que, ao não estar ligado à significação fálica, provoca angústia, inclusive perplexidade (sem que isso tenha uma conotação psicótica).
Para os homens, a mulher tem um duplo valor: pode encarnar o objeto de desejo com o qual o fantasma masculino se conforta, mas também pode assumir o caráter enigmático e angustiante de Causa do desejo.
Face ao feminino, o homem terá que escolher em que terreno quer jogar a partida, porque o conforto proporcionado pelo enquadre fantasmático tem um reverso mortífero, conforme ilustrado pelo romance do escritor húngaro Sándor Márai, intitulado La extraña[6], em que o protagonista masculino expressa o paradoxo da vida conjugal com uma fórmula muito apropiada: “Aí onde desaparece o mistério, começa o pudor”. De fato, quanto menos estranho é o parceiro, quanto mais o conhecemos, maior a vergonha ligada ao sexo.
Ele se lembra de quanto havia amado sua esposa, bem como do que eles tinham chegado a fazer no quarto quando ainda eram dois desconhecidos, mas aquilo foi irremediavelmente perdido porque “com alguém que sabe tudo sobre a gente, não se pode fazer coisas assim”.
Essa frase me lembrou imediatamente aquela outra que encerra o seminário Mais, ainda: “…saber o que o parceiro vai fazer não é uma prova de amor”[7]. Se a alteridade é perdida, o encontro sexual se torna uma rotina, quando não uma obrigação. Alguns homens lamentam o esforço que implica para eles cumprir com o débito matrimonial para evitar que sua mulher saia em busca de satisfação em outro lugar. Eles não sabem que neste terreno não há forma de cumprir que não tenha um alto preço, seja o aparecimento da sua impotência ou o do ódio como o reverso do amor. A estabilidade do casal pode apagar a verdadeira diferença sexual que não é a de ser ou ter o falo, mas a do gozo como Outro, como alteridade radical para cada sujeito.
Quando o que está em jogo é uma mulher em seu estatuto de enigma que causa o desejo, não há nenhuma acomodação possível, mas a atração inquietante e a fascinação angustiante que representa para um homem a “prova da verdade”[8].
Como pode o homem, no encontro com uma mulher, sair garboso em uma prova que não se resolve com o falo? Lacan considera isso possível, mas reconheçamos que é de extrema dificuldade.
Precisamente, o personagem masculino criado por Sándor Márai abandona sua esposa e inicia uma saída errante no mundo em busca da estranheza do feminino que ele havia perdido em seu lar. Chegando a um ponto sem retorno, se transforma numa espécie de Aquiles enlouquecido pela tentativa selvagem de alcançar a tartaruga do feminino. Não quero revelar-lhes o desenlace, apenas mencionar aqueles casos em que, enfrentados à absoluta alteridade do feminino, alguns homens enlouquecem destruindo o corpo da mulher e depois o seu. Explicar essas passagens ao ato como uma manifestação do machismo é não entender nada do que está em jogo quando se trata da tentativa desesperada de arrancar do corpo feminino esse tesouro sinistro da palavra que falta.
Face ao gozo feminino, a educação igualitária não outorga ao homem uma garantia que lhe permita responder com sucesso à prova; são outros recursos que terá que colocar em jogo. Tampouco tomemos como um fato que a mulher domina essa prova em que ela, sem sabê-lo, ocupa a posição de enigma e, ao mesmo tempo, tem de se arranjar com o órgão fálico, o que não é trivial.
Em qualquer um dos casos, encontramo-nos com a incongruência dos gozos que torna impossível a relação entre os sexos.
As vantagens do gozo fálico
Qual é a resposta falsa ao atoleiro da ausência de relação sexual? Sustentar que tudo seria mais simples se elas compartilhassem unicamente o gozo fálico. Grave erro, bastante comum a propósito, pois responde a um anseio geral com base no qual se chegou a dizer muitas tolices.
Por exemplo: as obras de Master e Johnson afirmam que a “personalidade total” de uma mulher é demonstrada quando ela atinge um orgasmo tão logrado quanto o do homem. Orgasmo que o pesquisador deduz pela captura de dados através de eletrodos externos e câmeras cinematográficas introduzidas na vagina. O interessante é que essas investigações não foram alheias aos efeitos do discurso de Freud, que deixou o caminho aberto aos estudos sobre sexualidade.
Freud não disse bobagens, mas confiando em seu “cantochão[9]“, outros baixaram o tom em um acompanhamento cheio de sandices que não cessam. Atualmente, a indústria pornográfica é enriquecida pelo gênero squirt (jato) em que as atrizes mostram que a ejaculação feminina é ainda mais quantificada que a masculina. Como isso se tornou moda, podemos encontrar tutoriais na internet que nos dizem: “Com este manual prático você pode fazer uma mulher ejacular como fazem atrizes pornôs. Basta seguir estes cinco passos para a felicidade. Seja paciente porque são precisos prática e concentração. “
Nada disso é de estranhar porque responde à tentativa vã de neutralizar esse gozo Outro do feminino que desbarata qualquer ordem de representação, seja ela tradicional ou hipermoderna. Nesse sentido, embora postulemos a feminilização do mundo, fica claro que os ideais modernos não vão na linha do não-todo. Ideais que afetam ambos os sexos igualmente, porque eles também estão plenamente no gozo fálico, ainda que haja “algo mais”.
O falocentrismo também rege para a mulher que pode considerar um homem como o eixo que centra sua existência e conformar-se às vantagens da lógica do Todo. Sublinhemos a eloquência do órgão masculino: a tumescência dá a ilusão de ser uma prova do desejo e a ejaculação delimita o momento da obtenção do gozo. O desejo sexual do homem funciona para algumas mulheres como um barômetro que mede seu lugar no Outro, o que é essencial para garantir sua existência como sujeito.
Uma analisante da terceira idade decidiu separar-se do marido quando ele já não dava signos de desejá-la como mulher: “que ele me procure é absolutamente vital para mim”. Se falta o signo do desejo, a mulher pode sentir que ela perde seu lugar naquele Outro que atua como um espelho e lhe outorga uma identidade.
Essa eloquência quanto ao desejo e ao gozo só pode ser alcançada no plano fálico. Como não-todo, o sexo da mulher não diz nada a ninguém, é mudo e ilocalizavel. Ser o falo, na falta de tê-lo, é para uma mulher a única opção para fazer com que seu corpo diga algo, inclusive diga muito, convertendo o feminino neutro na feminilidade mais desejável.
Afinal, Lacan nos disse: “não há felicidade a não ser do falo”[10], ainda que isso não suponha que seu portador seja feliz, nem que aquela que o recebe encontre nele o remédio para todos os seus males, porque o falo que rege a dinâmica do desejo se converte em um verdadeiro obstáculo no encontro sexual. Chegados na cama, ele não é o dono do funcionamento desse órgão cuja presença evoca nela sua própria privação.
As mulheres estão interessadas no falo, algumas o adoram e, como Freud disse, elas têm que aceitar o todo (o homem) pela parte (o pênis). Para outras, no entanto, esse órgão repugna e tratam de evitá-lo. Qualquer uma dessas posições permanece completamente na lógica fálica.
Em suma, para as mulheres é vital aferrar-se ao Um fálico para encontrar um lugar no mundo e, acima de tudo, para defender-se da ameaça desse gozo Outro que, por não responder à castração, tem um caráter enlouquecedor.
O gozo feminino
Vamos, então, a esse “algo mais” com o qual Lacan estabelece o fator diferencial do gozo feminino. Se uma parte do gozo de uma mulher busca a satisfação no falo, há outra parte que se dirige ao Outro barrado, signo de um gozo sem nome. Com a escrita S (A), Lacan afirma que não há um universo de discurso, nem um Outro consistente que garanta o sentido e que feche o círculo da representação do mundo. Não funciona o falo como a exceção que estabelece o conjunto, portanto, não podemos saber o que ele integra e o que exclui, o que está dentro e o que é deixado de fora. A inconsistência lógica torna essa distinção indecidível. Nesse nível de gozo feminino em sua relação com o Outro barrado, o falocentrismo está literalmente ausente. Usando a linguagem freudiana, diríamos que “o sujeito feminino” está submetido à castração, mas “o feminino” não o está, pois se trata de um real ao que não lhe falta nada. Entramos num território onde a ênfase recai fundamentalmente sobre a inconsistência do Outro que não implica a castração nem a incompletude que inclui a falta própria da castração.
Para as mulheres, não é fácil estar do lado feminino do gozo; “nenhuma aguenta ser não-toda”[11], nos disse Lacan. Manter uma relação estreita com o Outro barrado é angustiante e ademais conduz ao extravio.
O Outro do amor
Vimos como a ordem fálica é absolutamente necessária para as mulheres, mas não é suficiente. Algo mais é necessário para “pegar uma mulher pelo lado certo”[12]. Esse algo é o amor que está sempre unido às palavras. O amor funciona para uma mulher como o requisito indispensável a ser acrescido ao desejo para torná-lo suportável: “Sabemos muito bem que o que realmente importa é que ela o deseja (ao homem); inclusive é por isso que ela acredita amá-lo”[13]. O homem pode amar tanto ou mais do que a mulher, mas não necessita unir o desejo com o amor e, com frequência, prefere separar uma coisa da outra.
Agora, bem, nem mesmo com o melhor coquetel de amor e falo o feminino do gozo de uma mulher se esgota. Falo e amor são recursos importantes para não estar de todo louca, mas, em algumas ocasiões, mostram sua insuficiência e, então, a loucura feminina se desencadeia.
A grande escritora brasileira Clarice Lispector consegue ilustrar com clareza o que para nós, psicanalistas, custa tanto explicar. Em um breve conto intitulado “Amor”[14], ela nos conduz a esse gozo Outro que leva uma mulher concreta, Ana, mais além do marco familiar e social com o que ordenou a sua vida.
O encontro com o olhar de um homem cego, fugazmente vislumbrado de um bonde, provoca nela o desencadeamento de uma sensorialidade absolutamente aberta ao cosmos, portanto, além das representações centralizadas com as quais se constrói a imagem do mundo. Não foi a primeira vez que ela sentiu algo assim. Antes de ter uma família, viveu momentos de “uma exaltação perturbada que tantas vezes confundira com uma felicidade insuportável.”
Agora, no entanto, “Sua juventude anterior parecia-lhe tão estranha como uma doença da vida”, “…sentia-se mais sólida do que nunca… Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias bem realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara sua íntima desordem.”, “…a vida podia ser feita pela mão do homem.”
Contudo, esse estranho gozo de seu passado não desaparecia, por mais que tentasse dominá-lo pela ordem fálica. Ela sabia disso e, por essa razão, tinha organizado um bom sistema de defesa. “Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas ocupações.”
Nesse contexto, o encontro traumático com o olhar cego a todos os semblantes fálicos, que alegram a vista, rompe a lógica com a qual dá sentido à sua vida e produz uma atualização do gozo temido. O decisivo é como um encontro contingente abre a dimensão daquele ponto cego que é o gozo do Outro e, portanto, a exila de si mesma. Os anos de serenidade desmoronam, e a falta de sentido a deixa tão livre (desatada) que não sabe para onde ir; em lugar de dirigir-se ao seu destino habitual, a casa da família, se perde num jardim escuro entrando em comunhão com o gozo dos lírios, como diria Lacan[15]. As crises de sua juventude finalmente retornaram, enchendo seu coração com “o pior desejo de viver”. Confrontada com “o pior de si mesma”, ela experimenta um “prazer intenso com o qual ela agora goza das coisas, sofrendo espantada”. Esse estranho prazer que a deixa fora de si como sujeito e excluída do saber é completamente estranho aos sentimentos maternais ou conjugais. No lugar desses sentimentos conhecidos, ela experimenta a estranha sensação de amar o cego. É este o ponto que nos interessa.
Que estatuto tem esse tipo de amor? Poderia ser uma defesa contra a angústia, um último recurso ante o real, uma tentativa de dar sentido e endereçar a um destinatário aquilo que transbordou? Mas também podemos pensar que o que está em jogo é outro estatuto de amor em que nem ela está na posição sujeito desejante, nem o cego está como o objeto perdido. O que a embarga é o seu próprio gozo Outro (vale o oxímoro) despertado por um homem que encarna a alteridade não-fálica. Esse relato nos obriga a conceber um sentido do amor que, ao estar fora do mundo dos semblantes, relaciona-se diretamente com o real. Talvez Ana tenha enlouquecido, mas não parece tratar-se de um surto psicótico, e sim dessa loucura que acompanha o gozo feminino e que empurra o sujeito a sair da janela que marca os limites da lei e do sentido. Finalmente, é o amor do marido que “a pega da maneira certa”, resgatando-a desse gozo e mostrando-lhe os limites novamente.
Lacan diz que não há limites para as concessões com as quais uma mulher pode se entregar a um homem, mas deve-se acrescentar, por paradoxal que isso resulte, que, ao mesmo tempo, nunca se entrega toda. Haverá sempre Outro gozo que se dirige a uma alteridade radical, o lugar de um desejo sem lei e sem ideais. Deus pode ser uma das figurações imaginárias desse parceiro radicalmente Outro cujo desejo não está orientado pelo falo, mas também “o amante castrado”, o “homem morto”, o “Íncubo ideal”[16] ou o cego do conto. Os aleijados que protagonizam certas histórias de amor femininas representam aquele “homem castrado” (não impotente) que consegue acessar o território feminino localizado mais além do limite fálico. Só se pode entrar nessa zona armado com um desejo que não teme a ameaça de castração. Desse modo, um homem castrado pode fazer amor com as palavras e tornar-se esse “pelo menos um” que renuncia ao falo por ela.
Uma analisante compara os encontros sexuais com seu atual marido – os quais têm o caráter de repetição próprio do Um fálico – com aqueles outros que teve com seu parceiro anterior. “Aquilo era como escrever em uma página em branco em cada ocasião: nenhum dos dois sabia como e quando começava e nem como e quando terminava. Isso sim era fazer amor.” O amor não pode se dar por feito, mas há que fabricá-lo, o que requer que, em cada ocasião, surja uma enunciação, ainda silenciosa, que se aproxime do real e toque o corpo.
Não vamos tomar o exemplo como prova de uma relação de reciprocidade complementar, a coisa não terminou bem, mas serve para ilustrarmos a frase de Lacan que deu origem a diversas interpretações: “O homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele.”[17]
O exemplo serve para acentuar a diferença entre o ato sexual, comandado pelo gozo fálico em seu caráter repetitivo, e “fazer amor”, que só acontece sem procurá-lo porque não responde nem às melhores intenções, nem às mais sofisticadas técnicas eróticas ou às maiores ternuras.
Seguindo Lacan, poderíamos dizer que ninguém sabe “fazer amor” pela simples razão de que é algo que não passa pelo saber, mas que alguém, ocasionalmente, consegue.
Mas como se consegue uma coisa tão intangível, tão indefinível, cujo paradigma é a experiência mística? Lacan não se priva de dar um conselho ao homem: “dê a ela o que você não tem, já que só o seu gozo pode unir-te a ela”[18].
Nada está mais longe dos saberes que podemos obter em livros de autoajuda, porque para “dar o que não se tem” supõe-se ter se livrado de todo o aparato fálico fantasmático, “de todas as paixões do amor-próprio” e, no entanto, não estar louco.
Concordemos que enfrentar a feminilidade em sua desnudez, sem a vestimenta da ilusão fálica, é angustiante para ambos os sexos. Chegados a esse ponto, é preciso coragem para avançar quando o marco referencial se perdeu e se está próximo do real, quando a muher já não é a promesa do paraíso perdido, mas apenas o enigma ameaçador de uma terra incógnita. Se acaso ele consegue sobrepor-se e avançar, o homem pode descobrir-se em uma dimensão que ele não conhecia até então, e que lhe permite amar de outra forma, amar o real, se isso for possível.