O falo, entre amor e desejo*

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A adolescência é um momento de passagem, ela se dá entre, um intervalo que envolve um antes e um depois, a infância e a idade adulta. Nela algo se transforma, por isso traz algo de novo. Quando o apelo ao Outro tinha lá seus encantos havia rituais de passagem e um discurso que mais ou menos recobria o real do sexo com diferentes padrões para os sexos, prescrevendo modos de conduta para o rapaz e para a moça – o empuxo ao ato sexual e a virgindade, respectivamente. Isso funcionava como uma proteção ancorando o real pelo simbólico e pelo imaginário. Hoje se verifica que o ideal não é mais suficiente para tratar o gozo e lançar ao desejo. E o semblante?

​A verdade da castração mostra-se com dificuldades de dar sustentação ao semblante para alguém se posicionar como homem ou mulher e escolher o parceiro sexual. O real do sexo desperta angústia, envolve um ponto de opacidade que nunca se desvela, além da possibilidade oferecida pelo gozo fálico. O adulto, ou seja, os pais, que na infância faziam consistir o romance familiar, já não servem mais como modelo, nem como semblante. Muitas vezes, os próprios pais querem parecer com o modo de viver e se vestir dos adolescentes. ​

O semblante, o “parecer” sempre é coisa do simbólico com o imaginário, é o resultado de um esforço para tentar dar conta do real. A adolescência constitui-se num momento em que é convocado algum semblante, que pode não comparecer, uma tentativa de solucionar, dar conta do furo provocado pela invasão do gozo estrangeiro. Pela intrusão do real, as três dimensões se desenlaçam e o adolescente é invadido por um gozo por demais estranho, não sabe como se dominar, fica sem um ponto de referência, devastado, exigindo um trabalho para conter esse transbordamento.​

Na idade adulta, os falasseres distribuem-se entre homens e mulheres. Para tanto, é preciso levar em conta que “o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa”(1). Esta contribuição que Lacan nos dá no Seminário 18 é sustentada por algo que se dá na infância. Para o menino, a dimensão de semblante se dá enquanto “parecer”: o comportamento infantil em parecer-homem, que por sua vez dá sinal à menina de que ele o é – a dimensão do discurso.​

Em todo discurso o semblante é sustentado pela verdade, que, nesses “jovens seres falantes”, reside na novidade do fato de que há quem não tenha o falo. “A identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e existem homens, para a menina. […] É que, para os homens, a menina é o falo, e é isso que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma coisa, o falo, e ele é também o que as castra, porque elas só adquirem um pênis, e isso é falho. No começo, nem o menino nem a menina correm riscos, a não ser pelos dramas que desencadeiam; por um momento, eles são o falo.”(2) Ser o falo protege contra o real, mas não recobre tudo, dramas se instalam suportados pela fantasia, quando a questão do desejo a convoca. Na fantasia o neurótico joga sua partida com “um Outro que lhe demandaria sua castração para dela gozar.”(3)​

O falo enquanto semblante é o Nome-do-Pai, acrescenta Lacan, vimos que a castração está presente quando está em jogo o “parecer”. Na clínica, encontramos adolescentes que se afirmam parecer e gostar de atividades próprias do “outro sexo” desde crianças, com um empuxo implacável de mudar o corpo, “um desejo muito enérgico de passar para o sexo oposto”(4), a transexualidade: uma face psicótica, segundo Lacan, que pode conduzir a tentativas de suicídio e outras passagens ao ato, por isso o falo-semblante é o Nome-do-Pai, que pode faltar nestes casos.​

Isso também denota a tarefa a ser empreendida nesse momento, se haver com a maldição do sexo. “O real é a impossibilidade do encontro, porém não com o objeto e sim com o parceiro, complemento do sujeito. Uma maldição que, apesar da multiplicidade de relações, gera dois afetos específicos nos jovens: o tédio e a tristeza”(5), como observou Lacan em Televisão. A permissividade de nossos tempos conduz à banalização da relação sexual, já que tudo pode e não há limite que funcione como tal. Isso pode ser entendido como um sinal da falta de uma via para a entrada no encontro sexual, do falo-semblante para constituir laço social. Não faz tanto sucesso o “parecer”, a não ser quando se trata de pertencer a uma comunidade, o que se dá sobremaneira com as vestimentas.

​Para explorar um pouco mais sobre o que se antecipa da posição do adulto na criança, já trabalhada pela via do semblante falo na infância, o texto de Lacan sobre Gide, é uma indicação de Miller(6). A adolescência de Gide perdurou até os 25 anos quando lê Goethe e se apega à sua mensagem, a segunda das imiscuições, aquela que provavelmente produziu um ponto de basta na personalidade de Gide, segundo Lacan, baseado no livro de Jean Delay, que assim considerou o término do processo.A primeira imiscuição do adulto se deu com a entrada do objeto de amor, desvinculado do desejo, quando ele faz os votos de proteger Madeleine, sua prima e único amor, ao vê-la chorar depois de ver a mãe sedutora com o amante – o ideal de anjo, ele se apaixona pela imagem da perfeição. “É que, em sua condição de menino de treze anos, às voltas com os mais ’inflamados tormentos’ da infância, […] essa vocação para protegê-la assinala a imiscuição do adulto”(7). Em contrapartida, o objeto do desejo, ou de gozo, vai se fixar nos pivetes de pele morena, cuja visão o impele compulsivamente à masturbação, atualizando o ato transgressivo da masturbação no internato, em sua infância. O objeto de amor (cortês) é Madeleine e os meninos são objeto de gozo, no texto de Lacan tomado como objeto de desejo. Para Lacan, essa dissociação entre objeto de amor e objeto de desejo é a chave da construção deste caso.​

A dissociação entre amor e desejo verifica-se, na construção de Lacan e de Miller, nas duas mães (sua mãe, toda amor, e a tia, a do desejo, mortífera). “A questão: ‘O que foi para esta criança sua mãe?’, repercute a dissociação destas duas funções que deveriam estar associadas, faz ver que o segredo, do lado materno, da metáfora paterna, é a ‘associação’ do amor e do desejo, e que o traço do caso Gide reside na dissociação destes dois termos.”(8)​

Dois enigmas: na infância, o desejo da mãe dará as coordenadas para construir a questão do que se é para o Outro, e na adolescência, o enigma consiste no encontro com o Outro sexo. O impasse deste momento reside no confronto com o desejo e com a fantasia porque ela implica o objeto do desejo, conforme Lacan propõe com o seu grafo. O falo enquanto mediação entre os sexos, presente também no adulto, está presente na ambiguidade entre amor de desejo. No Seminário 6, ele explicita que no homem, o desejo está fora da relação amorosa: quando “ele reencontra o complemento de seu ser na mulher, na medida em que ela simboliza o falo”[9], diferentemente do que ocorre no amor, pois ele se aliena ao falo, seu objeto de desejo. A mulher encontra no homem o falo real, mas seu amor volta-se para um ser privado de falo, castrado, para além do encontro do desejo.

​O falo semblante para o Outro sexo se cristaliza enquanto não-relação, depois que a sexualidade vem fazer furo no real, depois de se despertar do sonho infantil. O real do sexo exposto na adolescência deixará marcas no adulto, porque convoca a um remanejamento da fantasia para tentar dar conta da pulsão e fazer laço com o Outro, reconstituindo um sintoma.

Carmen Silvia Cervelatti (EBP/AMP)


*N.E.: Texto publicado originalmente no site do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2016: “Adolescência, idade do desejo”.
(1) Lacan, J. Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p.30.
(2) Idem, p.33.
(3)Miller, J.-A. Perspectivos dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 182.
(4) Lacan, J. Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p.30.
(5) Cottet, Serge. 12 estudios freudianos. San Martín: Universidade de San Martín. UNSAN EDITA, 2013, p.74.
(6) Miller, J.-A. Em direção à adolescência, in Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálisenº 72, março 2016, p.22.
(7) Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.764.
(8) Miller, J.-A. Sobre o Gide de Lacan, in Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 22, agosto 1998, p.25.
(9) Lacan, J. O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 147.