Simone de Beauvoir, no pequeno prefácio que escreve para Shoah, Vozes e faces do Holocausto, edição em brochura do roteiro do filme de mesmo título de Claude Lanzmann, diz: “(…) jamais teria imaginado tal aliança do horror e da beleza. Seguramente, uma não serve para mascarar o outro, não se trata de esteticismo: ao contrário, ela o evidencia com tanta invenção e rigor que temos consciência de contemplar uma grande obra”.[1]
A ousadia de dizer que a beleza permite evidenciar o horror porque acrescenta a ele uma invenção rigorosa, essa audácia de aliar termos tão estranhos um ao outro, como a beleza e o horror, para além dos esteticismos, como diz a autora, nos reenvia à preciosa afirmação de Jorge Semprun em A Escrita ou a vida, onde relata sua experiência no campo de concentração de Buchenwald durante a Segunda Guerra Mundial. Aludindo à questão crucial que abalava um grupo de sobreviventes desse acontecimento brutal e inédito – como tornar crível um acontecimento verídico que transpunha os limites da imaginação, como fazer testemunho do horror – ele concluía: “Só o artifício de um relato […] conseguirá transmitir parcialmente a verdade do testemunho”.[2]
Nesse relato, Semprun repetidamente se refere ao “cheiro da fumaça das chaminés”, resto de memória do qual nunca pôde se livrar e que irrompia nos momentos mais inesperados de sua vida, interrompendo a rotina do cotidiano. Um cheiro inesquecível, indescritível, que ele podia apenas nomear, apontar, cingir, com angústia. Em Shoah, essa mesma referência é feita por sobreviventes entrevistados. Inúmeros autores da literatura de testemunho, da mesma forma, se referem a esse cheiro. Em Semprun, no entanto, esse índice traumático se destaca, ganha os contornos inquietantes de uma revelação inesquecível que se expande pela vida inteira. Ele se refere inúmeras vezes, quase a copiá-la para transmiti-la, a frequência com que esta lembrança o acomete. Uma lembrança que retorna com uma densidade que abriga alguma coisa intraduzível, que continua a espantar aquele a quem ela atravessa. Um cheiro não sem palavras – afinal, muito já se disse e se escreveu sobre isso – mas para o qual as palavras sempre deixam entrever – em excesso – sua precariedade. Mais que um acontecimento, um processo, uma presença constante que atualiza o insuportável do que terá sido.
A fugidia materialidade da lembrança que tomou a forma de um cheiro, que irrompe inesquecível, inelaborável, irrepresentável, mas não sem palavras, exigiu de Semprun, ao que parece, a invenção de uma ficção rigorosa para tornar verídica essa presença real que, de outro modo, pareceria um sonho.