O Cartel enquanto esforço de resistência, mesmo na pandemia

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Henri Kaufmanner

Sempre achei bem interessante os efeitos do encontro de Lacan com a psiquiatria inglesa, e como esta o influenciou na construção do dispositivo de Cartel, o qual, junto com o Passe, são a base de sua escola. Os grupos de trabalho constituídos no esforço de guerra do Reino Unido, baseados nos Grupos Operativos de Bion e seus colegas, permitiram ao exército inglês, não somente a recuperação daqueles soldados que voltavam combalidos da experiência da guerra, como também a construção de seu exército. Estes grupos ajudaram muito a sustentação da resistência britânica na luta contra o nazismo.

Portanto, não é mera casualidade que, a partir das medidas de isolamento social durante a pandemia, os cartéis tenham funcionado como um dispositivo de laço de trabalho que não somente se manteve em atividade, como, ao que parece, até se incrementou. Os cartéis mostram-se, assim, como dispositivos de sustentação da Escola de Lacan, de sua persistência, de transferência de trabalho, capazes de enfrentar os diversos obstáculos apresentados diante do Desejo de Escola.

Sou o Mais Um de um cartel que se constituiu a partir de uma demanda que eu diria bem particular. Com o tema de investigação Psicanálise e Segregação, seu ponto de partida se deu a partir da procura de 5 jovens psicanalistas, cada uma, a seu modo, integrada aos movimentos antirracismo e que se reconhecem como pretas. Tinham como intenção não somente investigar o tema do racismo a partir da psicanálise, mas traziam também a vontade de cuidar para que esse tema se fizesse mais presente nos espaços da EBP, no caso da Seção Minas Gerais, partindo também da observação de que eram poucos os pretos na frequência das atividades da Seção. Isso ocorreu em 2019 e, no ano anterior, tivemos em Belo Horizonte um Fórum Zadig sobre o racismo, do qual fui um dos organizadores.

O cartel assim, de certa maneira, reafirma suas origens, pois, além de um trabalho de investigação epistêmica, enlaça-se também a partir de uma vontade política, de um exercício de resistência diante do avanço do racismo.

Iniciamos nossos trabalhos em julho de 2019, antes da pandemia. E devemos concluir o cartel em julho de 2021.

Obviamente a pandemia nos afetou. Nossos contatos passaram a ser remotos, on-line. Cada nova reunião era marcada por um cálculo de como estaria a situação da pandemia quando nos encontrássemos novamente. Não que tal cálculo determinasse nossos encontros, mas revelava a preocupação de cada um de nós e o desejo de que estivéssemos bem, a cada vez. A discussão sobre como a pandemia afetava a parcela mais precária de nossa população, sabidamente em sua grande maioria constituída por pretos, também esteve sempre presente e a aparente dimensão “democrática do vírus” logo mostrou seu engodo.

Continuamos nossas reuniões, e mais além de alguns trabalhos já apresentados, iniciamos este ano, sob a chancela do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de MG, um Ateliê de Investigação em Psicanálise e Segregação. A questão da segregação ganha, assim, um espaço institucional particular, que até então não existia, e esta era uma das tarefas a qual o cartel se propunha.

Como pensar a articulação da psicanálise com as lutas identitárias, na proliferação de nomes e identidades que hoje em dia se disseminam pelo mundo, passou a ser o tema deste Ateliê que tem como equipe responsável os membros deste cartel, o qual irá se dissolver.  A questão a investigar: como pode a psicanálise se inserir aí, na medida em que para psicanálise não se trata da lógica identitária, mas de uma identificação dessegregativa.