O cartel em intensão e extensão da psicanálise

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Marilsa Basso

O cartel, “órgão de base da Escola”[i], é uma aposta que Lacan instituiu com um ato junto à Fundação da Escola[ii], em 1964.

Como alicerce de uma construção, o cartel dá suporte à Escola, a circunscreve e delimita seu terreno, assim como é também sua porta aberta, podendo ser uma entrada assim como uma expansão.

Entre palavras, corpos e atos, há no cartel um real que insiste possibilitando a vivacidade de um trabalho de Escola, ele a interpreta e a inova.

Em 1967, Lacan diz: “…eu me apoiarei nos dois momentos da junção do que chamarei, neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela”[iii].

O cartel faz da Escola um corpo vivo.

São várias atribuições do significante corpo: o corpo biológico, o corpo de um ser, vivo ou morto, o corpo imaginário, o corpo marcado pela palavra, o corpo falante etc. Utilizamos também corpo para falar dos coletivos, do corpo social, do corpo docente, administrativo ou organizacional, entre outras atribuições. Neste sentido, podemos pensar a Escola como um corpo. Todavia, a Escola fundada por Lacan comporta uma particularidade por ter em sua estrutura um funcionamento que não tende a unificações e que tem como premissa o esvaziamento das identificações imaginárias, o cartel, que segue na contramão do grupo, um modo não obstruir o real da experiência.

O dispositivo de cartel possibilita uma transmissão do ensino que se dá pela via epistêmica e pela experiência. Um saber que circula entre um dentro e fora, uma produção interna cujo produto é direcionado à Escola e desta aos laços: entre seus integrantes, entre outras Escolas, entre outros laços sociais, institucionais e políticos. Eis a extensão que, na Escola, o cartel possibilita.

Cada experiência em cartel é única e os modos de operar o movimento dobradiça são variados.

No intuito de circular e trocar, fomentando essa discussão, compartilharei dois fragmentos breves e pontuais de diferentes cartéis.

Uma primeira experiência de cartel, cerca de 1996, num momento bem inicial da investigação analítica. “As psicoses”, era o tema. Enderecei ao “mais-um”[iv] uma questão conceitual: o que é o esquema L? Encarnado em sua função de “agente provocador”[v], ele não somente não respondeu como também solicitou investigarmos a questão entre os carterizantes e trazermos para o próximo encontro. Um silêncio inusitado entre os integrantes se impôs.

Houve um deslocamento do que era esperado pelo até então “grupo” que passou a um outro modo de funcionar, de uma demanda de resposta à uma investigação. A partir daquela intervenção, passamos de receptores de um ensino para responsáveis por uma pesquisa e uma produção. Não se tratava mais de um mestre que fosse oferecer ensino, mas de um sujeito que, dividido, provocou outra divisão gerando uma mudança de posição diante do trabalho almejado. De grupo à cartel, eis a modificação precisa. Findou em um primeiro produto que enderecei à Escola. Foi apresentado e publicado numa coletânea de produtos de cartéis, que é um outro modo de circular, não mais no cartel, mas no laço entre vários.

Sem um saber prévio, um trabalho de escola ali se iniciava.

Em uma outra experiência, num cartel ainda em curso, cerca de 24 anos depois, o “mais-um”[vi] em uma primeira conversa com o grupo, pede para que eu apresente, já para o próximo encontro, uma articulação sobre “A terceira”[vii] (tema geral do cartel) e as conferências que a antecedem. Não era minha questão específica no cartel, embora abrangesse o tema central. Por que tal demanda? Eu teria dito algo que apontaria para isso? Um ponto de rateio? Um pedido aleatório? Que movimento se tratava? Lembrei imediatamente do esquema L, momento de uma certa convocação ao trabalho que causou questão e movimento. Instante de ver.

Diante de uma provocação que apontava um “não saber” na primeira experiência e um “fora de sentido” nesta segunda aqui citada, um ponto sutil circunscreveu uma passagem. De um grupo à um cartel. De um estudo à uma investigação. De um “mais um” a um “menos um” que somou vários, provocando trabalho.

Nessas experiências podemos localizar que a posição subjetiva está de algum modo colocada no funcionamento que, no cartel, deve ser levada em conta, assim como a função do “mais-um”.

Do mais íntimo que acontece com cada integrante, à uma produção colocada a “céu aberto” ao ser endereçada à escola. Efeito dobradiça!

O que enlaça os parceiros de formação em suas vertentes de intensão e extensão é o cartel, cujo motor é a transferência de trabalho.

Gustavo Stiglitz[viii], em sua conferência “O cartel, as palavras e os corpos, laços no isolamento”[ix], disse que assim como a Escola, pode-se dizer que o cartel “tem asas analíticas e patas sociais”.

Localizo em Miller:

“Segue-se que a Escola é um ser ambíguo, que tem asas analíticas, como se diz, e patas sociais, que constitui, para falar como Baudelaire, uma dupla postulação, uma para o discurso analítico e outra para o discurso do mestre”[x].

A dodradiça dos cartéis está nesta articulação entre o dentro e fora da escola, assim como seu movimento de intensão à extensão.   Enlaça o ponto singular de cada um, a formação e a causa analítica. Cabe também o enlace com outros discursos. Não ao acaso, cabe pontuar, o Intercâmbio está alojado junto aos Cartéis na Escola.

 


[i] Lacan, (1980). D’écolage. In: www.wapol.org.
[ii] Lacan, Outros Escritos, “Ato de fundação”, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001.
[iii] Lacan, Outros Escritos, Proposição de 9 de outubro de 1967.Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001.
[iv] Rômulo Ferreira da Silva
[v] Miller, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In : www.ebp.org.br
[vi] Romildo do Rego Barros
[vii]Lacan, “A terceira. Opção Lacaniana, 62. Revista da Escola Brasileira Internacional de Psicanálise. Dezembro 2011.
[viii]Psicanalista,  AE, AME da EOL e AMP.
[ix] Stiglitz, G. Conferência da Jornada de Cartéis da EBP-SP, de 5 de dezembro de 2020. Inédito.
[x] Miller, J.-A. Questão de Escola: Proposta sobre a Garantia. Opção Lacaniana online nova série Ano 8. Número 23. julho 2017.