O Seminário de Orientação Lacaniana de 2014 foi coordenado por Romildo do Rêgo Barros e abordou o Curso de Jacques-Alain Miller, “El ultimísimo Lacan”, ditado em 2006-2007 e editado pelo Editorial Paidós em 2013. As notas que seguem destacam partes dos resumos que fiz dos seminários, a convite da coordenação das Jornadas, e publicados no boletim mensal da Seção. A elas acrescentei um debate sobre o trauma que me pareceu oportuno retomar aqui no Blog das Jornadas.
Logo no início do seminário Romildo destacou uma chave de leitura para o Curso de Jacques-Alain Miller: o termo ultimísimo. Esclareceu que este foi um esforço em adaptar para o espanhol a expressão francesa le tout dernier, que se usa para designar o último, “último mesmo”, algo fora da série dos seminários de Lacan. Com isso, enfatizou o caráter de corte deste tempo do ensino de Lacan em relação aos demais seminários. O que Miller chama de ultimíssimo não é a continuação do seminário anterior, nem tampouco é continuado pelo posterior. El ultimísimo é uma fenda na série constituída pelo ensino de Lacan.
Retomar esta primeira apresentação do SOL é importante para os contornos que venhamos a fazer sobre o tema das Jornadas da Seção Rio. O que produz descontinuidade em uma vida? O que é o trauma, senão a interrupção inesperada de um esperado contínuo?
Esta primeira perspectiva se confirma na apresentação do dia 5 de maio de 2014, quando Romildo alinhou o que há antes e o que há depois do corte e nos perguntou: “E aqui, o que há?” (apontando para o espaço demarcado por duas barras paralelas, que interrompem a linha) Este espaço entre as barras foi chamado, por Romildo, de cesura, que também podemos entender como ruptura, fissura, incisão. O que é a cesura na experiência subjetiva? Para responder, Romildo nos levou à página 103 do Curso, na qual Miller diz que “não se chega impunemente ao avesso do ensino de Lacan (…) alguns fundamentos estremecem, e isso chega a gerar certo efeito de pânico (…)”. O afeto do pânico, reforçou Romildo, é quando não há um fundamento que sustente o sujeito, mas uma destituição de lugar. Assim como o sujeito, a psicanálise, no contexto do Ultimíssimo, se submete aos efeitos da cesura e, portanto, perde seus fundamentos.
Sob o ponto de vista subjetivo, podemos, segundo Romildo, localizar o trauma exatamente na cesura. O ordenamento do sujeito se refere à história e o trauma, à cesura, que rompe com o contínuo do tempo, da história.
Podemos entender que, se o tempo como história cria passado, presente e futuro, o tempo na vertente do real não é contínuo nem lógico, portanto, atenta contra o Outro. Há uma mudança na dimensão do tempo e do espaço.
Como consequência da cesura na psicanálise, temos uma modificação na interpretação. No primeiro ensino, como vinda do Sujeito Suposto Saber, ela é histórica e referida aos acontecimentos biográficos, portanto, agenciada pelo Outro, garantida pelo Outro. Já a interpretação do ultimíssimo ensino não conta com o agenciamento do Outro porque o Outro não faz mais sentido, não se espera mais dele a garantia de um sentido. (Entraríamos aí no campo da certeza).
Romildo recuperou uma entrevista em que Jacques-Alain Miller diz: “o ultimíssimo ensino é ainda outra coisa: digamos que é uma tentativa de desconceitualização radical da psicanálise, no horizonte de uma falta de sentido radical. Não é aconselhável começar por aí”. [1] No trauma, a questão em jogo não é a pedra em que o sujeito tropeçou, mas um novo tempo que se inaugura, ou seja, a história do trauma não nos ajuda muito. Assim, a clínica vai se orientar pelas invenções que aquele sujeito possa vir a fazer, inaugurando um novo tempo.
Em paralelo a essa queda do Outro que garantia um saber, ocorre a cesura no ensino de Lacan. A cesura, então, equivale ao trauma provocado por Freud com a psicanálise.
Nela há um tempo que é entendido por Miller, e mesmo pelo próprio Lacan, como um traumatismo. Trata-se do acontecimento num tempo retroativo, o a posteriori. Este tempo é definido por Romildo como “um passado que vai se dar segundo os ditames do futuro”. Este é o tempo de Freud, o “traumatismo Freud”. Mas há também em “El Ultimíssimo”, como Romildo ressaltou, um trauma que Freud provoca em Lacan.
Tendo em vista o trauma, assunto das nossas Jornadas, retomo duas questões colocadas por Marcus André Vieira, durante o Seminário de Romildo. Elas podem ser relançadas neste Blog para nos fazer pensar sobre o uso do trauma em uma análise. A primeira questão diz respeito ao pânico, portanto, situadas onde Romildo identificou a cesura. Segundo Marcus, nesse novo contexto, o da cesura, seria possível faltar sentido sem que isso implicasse em pânico, o que nos faz pensar sobre o efeito produtivo do trauma ao convocar o sujeito à invenção. A outra questão de Marcus diz respeito ao que vem sendo usado como exemplo desses tempos de dispersão das massas, onde a liderança, mais que combatida, é desinvestida de autoridade. [2] Ele nos lembra que no “Antigo Testamento” há uma passagem em que Judith corta a cabeça do general assírio, Holofernes, por tê-la deflorado. Em “Psicologia de grupo e análise do eu” (1921), Freud se refere a este episódio para marcar a importância do líder, sublinhando o fato de que, com a morte de Holofernes, o exército assírio se dissolve. A questão proposta por Marcus é que mesmo um exército sem general, uma massa dispersa, é alguma coisa, seja lá o que for. Ele faz uma analogia com lalíngua dizendo que é “um conceito forjado para falar da multidão de fragmentos de palavras em alguém, algo que não faz discurso”.
Assim, o trauma pode ser tomado como um momento de suspensão da significação, um corte, uma cesura, na rotina da vida. Tendo em vista esta concepção do trauma, podemos nos perguntar se, em uma análise, tratar-se-ia de restabelecer a ordem ou de inventar uma nova vida.