skip to Main Content

Uma noite na aldeia

José Augusto Rocha

Ano de 1920. Um grupo de dez Potiguara, liderados por Manoel Santana, então cacique-geral, partiu de navio em direção ao Rio de Janeiro. Acossados pela tomada de seus territórios naqueles anos, alguns haviam presenciado cena horripilante de espancamento, seguido de prisões ilegais, contra seus parentes, após – vejam só – um grupo de indígenas ser descoberto na cata do caranguejo em um coqueiral, o qual uma família aristocrática havia se apossado à revelia do direito. Lançavam-se, por mais de 3 mil quilômetros, em condições precárias para a sede do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Fora algumas mudas de roupas, carregavam na mala o desejo de sobrevivência, pois reclamavam proteção ao SPI, o órgão até então responsável por acompanhar as questões dos indígenas brasileiros.

O episódio tem mais de um século. De lá para cá, como vimos, a questão indígena ganhou tração, diríamos até, movimento. Apesar de muito esforço em contrário. Muito mesmo. Os Bororo, por exemplo, foram encontrados na década de 30. Lévi-Strauss conhecera-os após escutar do embaixador brasileiro em Paris que não havia mais índios no Brasil. Curiosamente, não fosse esse episódio ter sido realizado, talvez não tivéssemos o estruturalismo. Talvez. Ao menos, não teríamos a passagem presente nos Escritos que animara Lacan e fora recolhido das palavras de um Bororo: “eu sou uma arara”. Essa certamente, não.

Movimento indígena, hoje

Em Momentos de Intercâmbio, promovido pela Seção Nordeste, foi realizada a atividade O Movimento Indígena, hoje, coordenado por Liége Uchôa e animado por mim e Cleyton Andrade. Tivemos o privilégio de escutar um dos nomes e, portanto, das vozes que se fizeram ouvir para além do universo indígena. Que, na verdade, fez os mundos indígenas serem ouvidos para além do universo dos não indígenas. Falo evidentemente do Cacique Caboquinho Potiguara. Do acontecimento que foi ouvi-lo. Pois para além de uma contação de histórias em primeira pessoa, compôs-se um retalho de peças soltas, esquecidas e, por vezes, segregadas de nossa formação civilizatória. Uma noite na aldeia, uma vez que ao falar em primeira pessoa Caboquinho falava dos Potiguara no plural.

Duas questões, ao menos, saltam aos ouvidos. Quando perguntado acerca do que é terra, a resposta de Caboquinho não separava o corpo indígena do corpo da terra. Em outro momento, apesar das diferenças, das geografias, das distâncias, disse-nos a todos ali presentes (e a mim em particular) que se é Potiguara.

Nas palavras que ouvimos do Cacique Caboquinho, extrai-se um saber operado pela força de um nome, a produção de um saber ancestral que não se coloca como um discurso do mestre, mas no qual se aponta, se reitera e se movimenta um saber sobre o gozo que não se institui pela destruição da terra, do corpo e do outro. E nisso psicanalistas e indígenas se aproximam, pois para nós o ponto de vista que interessa é sempre o do outro. Em suma, ouvir o outro é uma arte que o analista se permite realizar.

Reduzir ao traço

Lacan não estava muito animado quanto ao futuro. Dizia que este não seria cor de rosa e que nós não havíamos visto as últimas consequências do racismo. Ao comentar a entrevista de Miquel Bassols, por ocasião do XX Congresso da EBP, Flavia Cêra (2014) acrescentou à série de sujeitos tidos como objetos – nomeados pelo autor, nos quais a violência mostra os dentes, a saber, a criança, a mulher, o louco – um quarto elemento. “Um quarto sujeito tomado como objeto”, acrescenta ela – os indígenas.

Convém lembrar, no plano do urucum e do jenipapo, que os anos 70 foram responsáveis pela deflagração de lutas e reivindicações emancipatórias, as quais faziam erguer as vozes dos próprios indígenas em papel de destaque. O que parece se impor, desde sempre, é como resolver a equação que opõe o desejo de reconhecimento étnico da negação à existência?

A forma de laço social que o Outro oferecia traduz-se em é preciso deixar de ser índio para ser brasileiro. Vê-se tal imperativo nas modalidades instituídas ao longo do Contato e nos projetos de nação. Reduzir os indígenas ao seu traço étnico era a primeira volta da segregação; a segunda consistia em fazê-los deixar de ser índios em nome da civilizacao, ou seja, perder suas cosmologias na adesão a uma monocultura nacional, como escreve Flávia Cêra. Surpreendente é que tenham, ao longo dos anos, afirmado e reafirmado —primeiro com os corpos e em seguida com as palavras — a recusa. Ainda que muitos tenham sido apagados. O que pode ser sintetizado nessa passagem escrita por Marcelo Veras “a invisibilidade do não ser aloja muitos sujeitos em um campo de exclusão”.

Tal sentimento de despertencimento é percebido nos versos de Eliane Potiguara: “eu não tenho minha aldeia/ minha aldeia é minha casa (…)/ a maior herança indígena / eu não tenho minha aldeia / (…) porque minha herança foi tirada / sem dó nem piedade”. Como lembra Ettore Finazzi-Agrò, os indígenas na cultura são a presença de uma ausência. Com efeito, os trabalhos dos últimos anos têm insistido em refazer tal itinerário compondo cores onde havia somente dissabores. No recurso à memória e à palavra, em suma, inscrevem novos significantes.

Em meados de 1950, João Guimarães Rosa embrenhou-se à procura dos índios. À mão um velho caderno servia-lhe de registro para recolher de ouvido, pois buscava entender o que os Terena ao seu redor falavam. Rosa propôs-se a fazer um pequeno glossário. O esforço de um dos maiores nomes da literatura brasileira para decifrar o que diziam aqueles índios esbarrava no rochedo da incompreensão. Uma frase, em especial, percorria-lhe o corpo finalmente encontrando eco: Na-kó i-kó?, Na-kó i-kó?, queriam saber alguns indígenas rindo aos que se encarregaram, Hó-ye-nó e Pedrinho, a respeito da aprendizagem de seu idioma por um estrangeiro – ou seja, como é que vamos? como é que vamos?

Um Rosa que, como dissemos, fazia um glossário do que lhe chegava pelos ouvidos. A história do apagamento das línguas indígenas — o qual leva o nome de glotocídio — é um capítulo à parte; é curioso, no entanto, notarmos o embaraço formado pelo mal-entendido. “Toda língua são rastros de velho mistério”, ele escreve. Tais impasses não apenas não são transpostos como parecem, diante da impossibilidade em si mesma, gerar um movimento: como é que vamos?

 Como os portugueses chamavam os nossos índios

Quando estive em Salvador, conheci o Museu de Armas do Farol da Barra. Um enorme cartaz em vermelho diz aos visitantes curiosos: “Brasis é como os portugueses chamavam os nossos índios”. A rigor, nome e terra aglutinaram-se. Não, contudo, sem uma certa dose de ironia a pairar no ar se lembrarmos os destinos em dissociar os indígenas da terra em que vivem. Verossímil ou não, tal passagem pode nos fazer pensar por que os indígenas, embora se permitam reunir-se neste universal, não cansem de dizerem seus nomes.

Em um belo texto, Marcus André Vieira (2023) se interroga acerca do poder do nome. “Foi-se o tempo em que era possível contar com a certeza do furo, do sujeito suposto saber. É preciso, com o nome, fazer furo. Nome, no sentido que lhe dá Lacan, de letra, litoral de lalíngua, nome que em sua força irônica ressoa e ri”. O poder do nome residiria, por extensão, em o nome ser o “que vive no limite da imagem, para além do sentido e da posse, a partir do qual o Outro vive, se transforma, envelhece, rejuvenesce e, por não ter imagem em si, pode ser o refúgio de todas as imagens”. Retoma, em suma, a força dos nomes ameríndios “que vibram outro modo de lida com a terra”.

         

Selvagens e civilizados

Há um trabalho hercúleo nesse exercício de retomar uma atividade tal qual assistimos. Algo de uma impermanência, a inconstância do corpo selvagem. Faltam as palavras.  Certas experiências não se dobram ao sentido: antes experimentam-se com o corpo, como num ritual de Toré ou uma análise. Em ambos os casos, falamos de uma experiência.

Como formulou Lacan, a psicanálise pode ser uma chance de voltar a partir. Sairmos um pouco das amarras da civilização que em nome do bem produz o pior. Deslocarmo-nos um pouco para fora do eixo de nós mesmos. Naquela noite, fomos todos um pouco indígenas, um pouco psicanalistas. Viramos do acesso às perspectivas, adotamos o ponto de vista do outro. Selvagens e civilizados. Isso e aquilo. Fomos, na verdade, todos um pouco Potiguara.

Back To Top