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Um novo amor no laço familiar?

TELENGO TENGO – Núcleo de Pesquisa de Psicanálise com Crianças e Adolescentes – Rio Grande do Norte
Juliana Ribeiro Lima

Lembro que, em 2017, o tema do VIII ENAPOL[1], foi sobre os “Assuntos de Família”, momento em que trabalhamos o que havia de novo ou mudado nestes “assuntos”.

Naquela ocasião, jogamos luz sobre as múltiplas configurações familiares, com sua diversidade nas formas do conjugo e nas formas de procriação, que revelavam não haver qualquer atrelamento obrigatório entre gestação e filiação e, menos ainda, a exigência de um casamento, ficando exposto o caráter de ficção desta junção das instituições: casamento-procriação-família.

Também, os ensinamentos de Lacan sobre as funções, materna e paterna, sem as confundirmos com os pais, biológicos ou adotivos, assumiram o primeiro plano, de tal forma que, hoje, podemos falar mais abertamente acerca das parentalidades, deixando claro que a verdade sobre o parentesco naquilo que chamamos laço familiar, toca o “pacto significante”.

Em 1969, em seu texto “Nota sobre a criança” Lacan situa a função da mãe como um interesse particularizado pela criança e do lado da função do pai, sua sustentação não anônima e encarnada da Lei no desejo. E mais que isso. Lacan sublinha na família sua dimensão de transmissão. A função de resíduo que sustenta e ao mesmo tempo mantém a família conjugal na evolução de sociedades, enfatiza o irredutível de uma transmissão da constituição subjetiva.

Como podemos articular estas funções tão fundamentais da família às questões do amor?

Amar é dar o que não se tem

Comecemos pelo infans que, no processo de se tornar sujeito, se rejubila com a própria imagem, sob o pano de fundo de uma separação. Algo se perde ali. Lacan chama isto que fica fora da imagem refletida no espelho de objeto a.

Trata-se de uma perda de libido própria desta defasagem do que idealizamos e o que encontramos para a hora do dia. No caso dos filhos, herdeiros da marca narcísica, a defasagem se revela na diferença do que se espera deles (de acordo com a medida ideal de cada pai e de cada mãe) e o que estes (os filhos) cumprem. Tal defasagem possibilita a instauração do desejo que rompe com o sonho de uma unidade, da ilusão de uma complementariedade. Não é possível uma satisfação completa.

Mais além do amor narcísico, Lacan articula a demanda de amor à possibilidade de dar o objeto enquanto faltante. A máxima lacaniana que afirma que “amar é dar o que não se tem”[2] tem, em sua base, essa impossível completude e se alimenta do objeto enquanto perdido.

Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo

Outra questão importante quando discutimos o que é da ordem das estruturas elementares do parentesco, é que num mundo de linguagem, há ao menos um, que não poderá ser escolhido para ser o parceiro na cama ou no casamento. É proibido segundo a lei do incesto.

Com Lacan, colocando o acento na última frase da “Subversão do Sujeito…”: A castração significa que o gozo deve ser recusado, para poder ser atingido na escala invertida da Lei do Desejo. Nota-se que aqui a castração não está referida diretamente ao falo, mas ao gozo. Castração como recusa do gozo, nos relembra Miller (2017), e Lei do Desejo como essa operação que faz passar o gozo real para baixo da barra, um gozo “recusado em certo plano, para ser alcançado ao nível da lei”. Trata-se do processo do recalcamento, cujo resultado é precisamente o sintoma.

Na medida que o gozo é barrado, mas não de todo, abre-se uma nova via que não a de um empuxo ao gozar mortífero. A função do Nome-do-Pai estaria aí. Um interdito que torna possível a recusa, mas também a possibilidade.

A questão que se coloca é que hoje a família se vê a deriva, efeito da queda da posição de exceção, que anteriormente era encarnada pelo pai. Há uma fragilização do valor fálico e a palavra ficou sem força. Neste vazio de referenciais insurge uma nova ordem de ferro, cujo imperativo é Goze! Goze de todo e ainda mais… e mais!

O laço amoroso cai aprisionado no gozo do Um sozinho hiperbolicamente alimentado pelos fármacos e redes sociais. Há um proliferar de experiências degradantes de devastação e violência, ávidas por um gozo absoluto, que insurge relutante em conceder qualquer pedaço que seja, carentes de um ponto de basta, submetidos à Lei simbólica.

Neste campo, próprio do enlaçamento entre amor e castração, o que vemos é que as crianças, muitas vezes, não tem acesso à lei simbólica, mediada pela função do Nome-do-Pai. É a própria linguagem, no encontro traumático da língua sobre o corpo, que passa a operar como limite ao gozo maciço. O universal da lei paterna sofre o efeito de pluralização, convidando-nos a acompanhar a invenção desse limite ao gozo, na singularidade de cada caso.

O malentendido consumado

Em 1980, Lacan escreve um texto que Jacques-Alain Miller intitulou de “O mal-entendido”. Lá ele nos apresenta a cena exemplar de dois parlêtres, que falam línguas diferentes, mas num encontro contingente, fazem amor e acabam por reproduzir um novo corpo falante. Deste “mal-entendido consumado”, a criança será herdeira. Um mal-entendido que transmitido à criança, porta seu ponto opaco e inominável, próprio desta desproporção, da não relação sexual.

O real do gozo se imprime assim, desde a origem da criança, como um ponto que toca o gozo dos ascendentes e que resta operante, mesmo fora do campo discursivo.

A partir de um encontro contingencial, o implícito e sem sentido, próprio ao real comparece. Trata-se de um gozo Outro, onde reside o segredo de toda família, o segredo do casal.

Portanto, se de um lado temos em conta a articulação significante da novela familiar, também se faz necessário interrogar esse ponto heteros em sua forma singular do gozo no ser falante.

É nesta conjuntura, desencontrada, onde a criança enlaça sua origem e constrói seu aparato de gozo.

Como analistas que trabalhamos com crianças, nos interessa a língua singular de cada família, interrogando se lá, onde o gozo se impõe, existe também uma rede significante capaz de contribuir para a construção sintomática da criança.

Ficamos atentos à possibilidade, de fazer valer, pela linguagem, enredos da novela familiar que permitam à criança alicerçar sua ficção de origem, a partir de algum dito que a singularize, possibilitando-lhe situar o traumático que está no impacto do significante com seu corpo. Acompanhamos as crianças e suas famílias em seu percurso para lidar com o que não tem sentido e escapa à significação.

Diante do impossível de dizer, efeito do buraco do traumatismo inerente à origem do falasser, estamos prevenidos da inexistência de uma história natural e sustentamos a construção do mito libidinal singular de cada um, partindo de lalíngua.

Ainda que lalíngua materna não comunique, uma vez que não estamos no registro discursivo, ela, nos ensina Lacan, se “moterializa”[3]. Um feliz neologismo que aponta como a palavra faz marca no corpo, um acontecimento de corpo que produz gozo.

O que temos encontrado na clínica de nosso tempo, é que diante de um precário enodamento simbólico, muitas crianças viram presas fáceis dos jargões pseudo-científicos, tais como o TDAH, TEA ou TOD, dentre outros, além da medicalização desenfreada, que calam a criança e reduzem seu saber a nada, além de eliminar a capacidade da família de interpretar seu mal estar. A criança objetalizada revela que a função da família de velar o gozo, refreá-lo está em maus lençóis.

Vemos, no seio da família, uma forte dificuldade na interpretação da tagarelice de lalíngua. É bem verdade que ninguém tem um código para sua decifração, mas não estaríamos, justamente aí, no campo do amor? Um amor mais digno? Provar o impossível, através do encontro contingente?

É nessa dimensão insensata de poder sustentar o campo do próprio impossível mesmo, tal seria um ato de amor?

Quanto a análise com crianças, provamos do impossível por meio do amor de transferência, no ponto que tange o véu que deve modular o gozo, fazer o gozo condescender ao desejo, mas também somos orientados, desde Lacan, por esta clínica do real que implica o impossível da relação sexual.

Indagamos-nos qual intervenção se faz possível quando toda uma família está atuando sob o imperativo do Um que não faz laço. Como se vai do Um da iteração de um gozo solitário para o Outro da repetição?

Começamos pela aposta de creditar à criança seu lugar de sujeito de pleno direito e nos fazermos parceiros capazes de registrar e autenticar quando o S1 faz apelo a um S2, quando se abre espaço para equivocar aquilo que era pura interação de Um fechado em si mesmo.

A clínica com crianças nos tempos de hoje acaba por revelar que a versão do mito edípico tem seus limites. A criança-falo, que pode se servir do Nome-do Pai, a partir da operação da metáfora paterna, é apenas parte do universo infantil. Não é sempre que encontramos um amor digno para fomentar o campo da fantasia.

Na ausência do véu do amor revela-se o que está no fundamento de todo falasser como estrutural. Somos todos, na origem, um objeto resto, objeto a.

Lacan nos sinaliza isso de forma a iluminar a clínica. Em suas palavras: “O objeto a é o que são todos vocês, na medida em que aqui estão enfileirados- abortos do que foi, para aqueles que os engendraram, causa do desejo. E é aí que vocês têm que se orientar, a psicanálise ensina isto.”

Ponto de real ineliminável, efeito do mal-entendido inerente à linguagem. Este não interpretável que toca o impossível de dizer da não-relação sexual está sempre vivo na análise, ainda que, paradoxalmente, como analistas, afiancemos as ficções que poderão abrir espaços para o saber inconsciente.

Buscamos acolher os ditos, os malditos e não ditos que marcaram o sujeito e, também, atentar para os momentos em que a criança teve que se haver com o hetero do real do gozo, desde sua posição de objeto.


Referências Bibliográficas
  1. Bassols, M. Lacan XXI, Revista Fapol on-line, volume 2. 2016. Disponível no site www.lacan 21.com. Acesso em 25/11/2016.
  2. Espinel, M. F. C. (2021). Laços Familiares”? In: http://x-enapol.org/pt/portfolio-items/lacos-familiares/?portfolioCats=26
  3. Fuentes, M. J. S. Lacan XXI, Revista Fapol on-line, volume 2. As ficções de família e o gozo órfão. 2016. Disponível no site www.lacan 21.com. Acesso em 25/11/2016.
  4. Lacan, Jacques. . (1999[1957-58]) Seminário, Livro 5: As formações do Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar.
  5. Lacan, Jacques. Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 170.
  6. Lacan, Jacques. (1998) Nota sobre a criança In: Outros Escritos Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 369.
  7. Lacan, Jacques. O malentendido. In Opção lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 72. São paulo: Edições Eólia, março de 2016, p.10.
  8. Miller, Jacques-Alain. “Crianças Violentas” Intervenção de encerramento da 4ª Jornada do Instituto da Criança- Universidade popular Jacques Lacan, 2017.
  9. Lacan, Jacques. (1960 b) Subversão do sujeito e dialética do desejono inconsciente freudiano. In: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor
  10. Lacan, Jacques. Conferência em Genebra sobre o sintoma. In Opção lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 23. São paulo: Edições Eólia, dezembro de 1998, p.10.

[1] Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana ocorrido em 2017 em Buenos Aires.
[2] Máxima trazida por Lacan pela primeira vez em 1957 no Seminário 5, As Formações do Inconsciente e repetido várias vezes ao longo de sua obra.
[3] Na “Conferência de Genebra sobre o sintoma” (1998) Lacan condensa as palavras francesas mot e matérialisme,  que quer dizer palavra e materialismo, respectivamente.
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