Késia Ramos (EBP/AMP) Nesta edição do Litorâneo #17, a construção da editoração imagética nos…
Um amor novinho em folha – e em letra
Paulo Carvalho – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Psicanálise e Autismo (PE)
No tratamento de Martin – caso apresentado por Francisco Xavier – pudemos observar a operação do desejo do analista – função “não se ocupar” – na clínica do autismo, naquilo que esse desejo implica de escansão, de intervalo, e naquilo que essa escansão confirma da relação entre o sujeito autista e a linguagem: não há pré-verbal.
Há, por sua vez, transferência, e isso nos atestaria essa separação mínima: A-fah. A nossa hipótese é que através dessa brecha podemos falar de amor, do novo no amor, onde a transferência está remetida às próprias invenções de que o autista é capaz no seu trabalho contínuo de criar bordas.
Em “Amor e Nome-do-Pai”, Alexandre Stevens observa que, para Lacan, o amor não é apenas narcísico, mas tem função de suplência à relação sexual que não existe. O aforismo “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo” (Seminário, livro 10: a angústia) abre-nos as portas para pensar o amor como véu em relação ao real, ou seja, em relação ao gozo (STEVENS, 2007, p. 49). O amor como véu seria aquilo se interpõe entre gozo e desejo. Isto é, algo interposto entre o gozo do Um e campo do Outro, como veremos adiante.
Lembro também que na primeira aula do seminário Los divinos detalles, Miller propôs a seguinte paráfrase à conhecida máxima freudiana[1] “aí onde o Isso era, o eu deve advir”:
“aí onde estava a tartaruga, o eu deve advir” (MILLER, 2010, p. 25).
Isto é, explica Miller, que a condição (fetichista) primordial que atravessa a eleição do parceiro passa por uma renúncia:
“há que se renunciar a gozar sozinho, a gozar só do próprio corpo” (id., ib., p. 30).
Seria o amor, portanto, que permitiria ao gozo como tal, contínuo – autista – consentir com o desejo, “condescender ao desejo”. Ram Mandil (ao final de vídeo postado no canal do Enapol 2021 no Youtube[2]) também enfatiza essa descontinuidade introduzida pelo amor.
Penso que Ram Mandil nos orienta a um deslocamento. Da perspectiva do amor narcísico – enquadre fetichista abordado por Miller na citada aula de Los divinos detalles – em direção a uma nova perspectiva do laço presente no Seminário 20 – do amor como uma suplência. Nesta orientação, a descontinuidade no “gozo da tartaruga” – horizonte próprio da disjunção “amor ao seio” e “palavras de amor” – seria condição para a transferência, esteja o sujeito na estrutura autística ou não. “Como se cede alguma coisa do Gozo do Um para o campo do Outro”, pergunta-se Mandil propondo que pensar o amor no autismo (no autismo do gozo) é a questão fundamental que atravessa todos os eixos do Encontro.
Esse deslocamento está no cerne do seu argumento “Novo no amor[3]”. No texto, Ram Mandil argumenta que o novo no amor implica “novas modalidades de lidar com o que se repete, ou ainda, à possibilidade de conferir nova forma – sinthomática, dizemos – ao que se manifesta da ausência de relação sexual”.
Martin passaria assim do gozo contínuo do Afah, à escansão A-fah, cedendo algo do Um inequívoco, modo particular de inscrição da letra no autismo. Na sequência, o sujeito passa não apenas a suportar a presença do analista, mas também a se servir dela e dirigir-lhe palavras
Segundo uma das teses de Patrício Álvarez Bayón em El autismo, entre lalengua y la letra, seria a partir de um intervalo como este que se inscreveria a letra no autismo. E é, nesse sentido, que a invenção no tratamento do sujeito autista nos ensina algo de original sobre o novo no amor. Amor “novinho em folha”- e em letra.
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Sobre este último ponto gostaria de trabalhar uma sequência de três parágrafos da “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. No primeiro deles, Lacan introduz a ambiguidade de lalíngua, de seu resíduo “moterial” nos sonhos, nos tropeços e “em todo tipo de forma de dizer” (LACAN, 1998, p.10). Neste primeiro parágrafo está a primeira vez que Lacan usa o termo motérialisme. Ele diz: “Nesse motérialisme que reside a tomada do inconsciente – quero dizer que o que faz que cada um não tenha encontrado outro modo de sustentar não é senão o que, há pouco, chamei de sintoma” (id., ib., p.10).
O parágrafo seguinte é sobre o sintoma e mais precisamente sobre o “sentido do sintoma”, sempre vinculado à “realidade sexual”. “O inconsciente”, diz Lacan mais adiante na Conferência, “é uma invenção no sentido de que é uma descoberta associada ao encontro que certos seres têm com sua própria ereção” (id. Ib., p. 10).
Por fim, no terceiro parágrafo, Lacan expõe uma discordância em relação à Freud. “Ele acreditou poder enfatizar, notadamente, o termo autoerotismo, tendo em vista que essa realidade sexual a criança descobre, inicialmente, em seu próprio corpo. Permito-me – isso não me ocorre todos dias – não estar de acordo – e isso em nome da obra do próprio Freud” (id., ib., p. 10). Ainda segundo Lacan, “o encontro com a própria ereção não é absolutamente autoerótico. É o que há de mais hétero” (id., ib., p. 10). O gozo do pequeno Hans lhe é desconhecido, e disso ele tem medo.
Temos então nesses três parágrafos da Conferência o seguinte encadeamento:
- Motérialisme-lalangue.
- Sintoma como modo de sustentação.
- O encontro com o gozo hétero, com a realidade sexual (não autoerótico), mediado pelo “sentido do sintoma” – no pequeno Hans.
Pergunto se neste encadeamento, podemos vislumbrar algo sobre o tratamento “do autismo”? Teríamos nessa construção lacaniana um exemplo de “como o sujeito se serve da contingência para transformar isso numa ponte na sua relação com o campo do Outro”, como nos fala Ram Mandil em seu vídeo para o X Enapol?
Se podemos falar de reallização[4] enquanto modalidade particular “de encarnar no real o menos” (BARROS, p.94) – e do tratamento do gozo do corpo nos sujeitos autistas, poderíamos também falar que o amor nessa estrutura vem também como suplência à característica parassexuada da letra? Em outras palavras, podemos articular a série reallização – Um – letra – sexo – enigma…e amor no autismo?