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Retorno ao novo

Francisco Santos

A psicanálise não se ensina, Freud nos avisou. Uma jornada de psicanálise, porém, ensina muito.

A jovem Seção Nordeste, não recuando diante do Real pandêmico, inaugurou em 2021 suas jornadas no formato virtual, o que se repetiria no ano seguinte. Era o que tínhamos à disposição, era o novo e o possível diante das contingências que surgiam, diante da distância, diante da morte, mas com o desejo de fazer seguir a orientação lacaniana no estofo da Nova Geografia.

Neste ano em que foi declarado oficialmente o fim da pandemia de Covid-19, urgia retornar ao presencial, mas agora tudo já é novo. As câmeras estão mais presentes, as transmissões on line são imperativas, sustentam os formatos atuais, e é através das redes que se difundem e se organizam as atividades daqueles e daquelas que insistem na política, que fortalecem a episteme e põem sua prática a serviço do movimento psicanalítico.

Inúmeras e variadas pessoas trabalharam, em geral virtualmente, para que a III Jornada da Seção Nordeste acontecesse… presencialmente. Híbrida, na verdade. Em Recife grande parte dessas pessoas se concentrou no fim de novembro. Presencial. Virtual. De toda forma viável de sustentar o desejo de uma psicanálise viva.

Dia 24. Tudo ligado, todos a postos, tudo acontecendo. E aconteceu. As contingências se apresentaram concomitante à própria jornada, quando falha aquela tecnologia com a qual já estamos tão acostumados, tão essencial, aquela mais básica para tornar o tal on line possível. À mesa de abertura, porém, não faltou a energia e o desejo suficientes para inaugurar o evento, chamar os colegas e seus trabalhos, e foram vários, profícuos, que não perderam de vista o real nosso de cada dia, através de seus esforços traduzidos em produções resultantes de meses de trabalho.

O analista se vale do que lê, do que aprende, do que ouve, do que vocifera. A contingência se apresenta, mas há mais com o que trabalhar: os sonhos – ou despertares – e o papel da política na psicanálise; assim, a primeira plenária começou a tentar responder – ou questionar mais – a provocação do título da jornada. Como destacou Rômulo Ferreira da Silva, conferencista convidado, não se trata de uma dúvida, “todos delirantes?”, mas de uma questão: uma questão dessas que só a ética da psicanálise pode lançar, no contrapasso das psicoterapias e dos discursos normatizantes.

Pois, o analista sabe que “em cada discurso há uma pretensão de verdade”, o que lhe permite aceder ao único discurso que pode fazer furo na dominação, pois “não acredita na verdade”[1], e assim escapa da norma e se dispõe a escutar os sujeitos em suas singularidades.

Aprendemos com o passe e seus ensinamentos. Sérgio de Mattos sinaliza, com Lacan, como não se escapa de tomar a clínica das psicoses como um dos paradigmas para entender a nossa época, aquela da qual o analista não se deve furtar de alcançar em seu horizonte[2]. É na transferência que o sujeito pode falar suas loucuras, aquelas que não se falam alhures, que surgem nos sonhos, que nos despertam e formam sintomas sempre singulares.

A Rômulo Ferreira da Silva não escapou a importância do novo contorno, da torção realizada pelos membros e participantes do Nordeste ao nos reunirmos em Seção, com seus efeitos no trabalho de Escola.

O Instituto de Psicanálise do Nordeste (IPSIN) também se fez presente, e trouxe valiosas contribuições a partir dos seus núcleos representados com excelentes trabalhos. A psicanálise que não se ensina, mas sobre a qual se teoriza, trabalha-se.

Como Rômulo destacou, recuperando Freud e a partir da experiência da Escola de Lacan, a psicanálise de fato não se ensina como prática, não se pode ofertar isso na universidade, posto que não partimos do universal para dar conta do fenômeno humano.

Mas, transmite-se, e é no trabalho de transmissão da psicanálise que a Escola tem um papel fundamental na formação de analistas. Praticantes aos quais chegam nos consultórios e nas instituições as “tentativas de escapar do Outro da norma, quando o sintoma contemporâneo vai da proibição ao gozo [via Nome-do-Pai] à exacerbação do gozo, aos imperativos de gozo”, a exemplo dos sujeitos “falso implicados”, um novo imperativo de gozo na via do saber: saber de seus sintomas pelo enquadramento da neurociência que afinal obnubila o falasser e suas marcas no corpo, sua subjetivação mesmo, perdidos na horda.

Os profícuos trabalhos apresentados versaram sobre este tão presente significante, o on line, sobre a nossa loucura compartilhada, também aquelas que nos fazem singulares, e como a singularidade é ameaçada pelo discurso capitalista em suas diversas acepções, a nos tentar colocar todos no mesmo saco de onde a psicanálise por outro lado tenta deixar sair, um a um, em suas vociferações. Das práticas daqueles que se encorajaram para falar de suas clínicas, das reflexões teóricas de quem uma vez mais se debruçou sobre os textos de Freud e Lacan, ficou patente a disposição de sustentar o discurso do analista frente aos imperativos de gozo exponencializados pelas tecnologias a serviço do discurso do mestre. Se Freud desponta na sociedade vitoriana, se Lacan emerge da grande psiquiatria europeia, podemos dizer que nesses “tempos que correm” – e a que velocidade correm(os)! – “outra história começa, o mesmo combate continua”[3].

A III Jornada da Seção Nordeste da Escola Brasileira de Psicanálise ensina que devemos sustentar as presenças dos corpos, prescindindo do virtual, mas sem deixar de nos servirmos dele, hoje como nunca, mas com o desejo de sempre.


[1] MILLER, Jacques-Alain. Todo el mundo es loco. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 324.
[2] LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem. In Escritos, 1998, p. 321.
[3] MILLER, Jacques-Alain. Circunstâncias. In: A terceira; Teoria de lalíngua / Jacques Lacan, Jacques-Alain MIller. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 8.
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