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O Testemunho e as Lições do Passe na Seção Nordeste

Cleyton Andrade

Antes dos holandeses, o litoral nordestino, na faixa que ia do Rio Grande do Norte a Alagoas, contava com 162 engenhos de açúcar, a sua maioria entre a várzea grande e o rio Formoso, em Pernambuco (Mello, 2012). A primeira explosão econômica do Brasil Colônia teve como eixo e centro, o Nordeste. Porém, se houve ascensão, houve queda do ciclo da cana de açúcar. A riqueza e a queda se deram em torno dos engenhos, o que deixou sobre o solo, o bagaço da cana. Mas essa é a história do Nordeste do açúcar, dos engenhos, das capitanias e latifúndios. Entretanto, podemos perguntar com Agamben: o que resta dos engenhos, no nordeste geopolítico de hoje? Por outro lado, é possível perguntar com Lacan, e sob os efeitos do chamado realizado pela EBP por uma nova geografia: o que nós, no Nordeste, podemos fazer com o bagaço da cana? Como nós analistas fazemos e faremos com o resto? Afinal, creio que se Lacan não iria ser alheio aos engenhos e aos efeitos políticos do discurso do mestre coronel, enquanto analista, se interessaria mais pelo bagaço da cana.

É nesse Nordeste que opera com o resto inassimilável, com o intraduzível, que de fato interessa. O mesmo Nordeste, irredutivelmente Litorâneo, que nos move de um jeito e de outro. A literatura também opera no litoral (LACAN, 1971) entre as funções referenciais e auto-referênciais. A autoreferência do discurso, e da própria linguagem, pode ter a virtude de expor a materialidade da língua e, com isso, produzir uma perda de sentido. Contudo, há também uma face que coloca a literatura da auto-referência em questão, em xeque (SELIGMANN SILVA, 2003). Uma das formas de nomear essa literatura que afirma seu compromisso com o real, é a literatura do testemunho.  O testemunho, aqui, visa resgatar aquilo que se coloca como mais aterrorizante no real, para apresentá-lo e não para representá-lo. Impõe-se, neste caso, uma interrogação a respeito das relações entre literatura e realidade, evento, memória, morte etc.

Por um lado, escritores criativos podem produzir experiências e sentimentos do infamiliar, a partir de contos fantásticos, por exemplo. Por outro, resta questionar de que modo uma experiência de ruptura com regimes representacionais da linguagem e inimagináveis do ponto de vista ético, estético e político, se portam diante do tratamento poético. Tal como aquelas rupturas realizadas pelos campos de extermínio nazista, ou mesmo pelo processo de escravização negra, ou pelos crimes das ditaduras, bem como pelas diferentes formas de excessos genocidários de posições extremistas pelo mundo. Em outras palavras, como uma experiência do trauma, do real, incapaz de ser representada pelo significante, pode se apresentar na literatura sem se reduzir a uma historiografia, a um regime de representações, a uma cadeia de informações? Ou ainda, como a literatura do testemunho, e mais especificamente o próprio testemunho, ao invés de tentar representar o real, pode, ao contrário, transmitir algo do real e do trauma?

É nesta direção que a primeira atividade das Lições do passe na nova Seção Nordeste, contou com a presença e contribuição de Lucíola Macedo na atividade “O testemunho, entre o poético e o político” falando sobre o testemunho de Primo Levi, um sobrevivente do lager. Palavra em alemão que designa os campos de extermínio nazistas. Palavra mantida no original, sem tradução, no testemunho de um sobrevivente italiano. Há aqui uma materialidade que se impõe no uso do termo alemão não traduzido, embora traduzível. Há algo que o testemunho testemunha de um real que não se traduz pelo significante, embora também não recue diante do impossível que ele porta. Ao contrário: destaca o impossível. Confere um contorno de efeitos poéticos justamente por apontar que há, alí, algo irrepresentável, impossível de se traduzir.

Tocados pelo testemunho como um modo de falar do encontro da linguagem com o real, as Lições do passe seguirão agora a proposta de percorrer a doutrina do passe. Para isso, alguns enunciados de Lacan e Jacques-Alain Miller serão as peças para os comentários de colegas AMEs e AEs. Esse trabalho se propõe a ser uma das maneiras de continuarmos a fazer, ao melhor estilo nordestino, do bagaço da cana, rés do chão da atividade açucareira (Mello, 2012) a causa que move, o trabalho que anima, o entusiasmo linguajeiro que faz do Nordeste, ainda, sem anacronismo açucareiro, uma região de extrema riqueza. Nesse sentido, a Seção Nordeste é efeito do avanço da EBP, na nova Geografia, bem como da história da diversidade e riqueza cultural que fez e ainda faz música, cordel, poesia, entre o múltiplo e o Uno.

Bibliografia:
LACAN, J.. Seminário livro 18: de um discurso que não fosse semblante (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
MELLO, Evaldo Cabral de. O baga da cana: os ende açucar do Brasil holandês. São Paulo:   Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.
SELIGMANN-SILVA, M. (org). História, Memória Literatura: O testemunho na Era das Catástrofes. p.59-88. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
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