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O produto do cartel: seu escrito, um estilo

Marilsa Basso EBP/AMP
Diretora de Cartéis e Intercâmbio da EBP

Surpreendida por esse tema formulado pela Comissão de Cartéis e Diretoria da Seção Nordeste de nossa Escola Brasileira, trago uma pequena articulação que vocês me permitiram fazer em torno do que podemos especificar, no esforço de uma diferenciação sustentada, em torno do produto do cartel, esse dispositivo genial que Lacan inventa, bem ao seu estilo.

Assim, coloco como pergunta a afirmação do título dessa nossa Jornada de Cartéis da Seção Nordeste: o que é um produto de cartel, seu escrito (enfatizo o que no título deixaram bem claro, ‘seu’, no singular), e do que se trata um estilo?

Eu poderia responder de modo simples: o produto de um cartel é uma escrita que se dá a partir de uma investigação e da discussão realizada em um pequeno coletivo e cuja produção, embora circule entre vários, é individual. Isso é fato. Mas, problematizo: o que faz essa escrita ser um produto de cartel e o que ela traz de diferença em relação às demais produções em psicanálise que fazemos sem passar por um cartel? E, se uma pesquisa passar por uma discussão em grupos de estudos, em seminários, ou seja, em um coletivo, em que aspecto a formalização desta em uma produção escrita a diferenciaria em relação a um produto de cartel?  E ainda: pode o cartel provocar um estilo?

Vamos aos fundamentos que dividirei em três partes: o cartel e sua estrutura de funcionamento, a escrita como produto e o estilo.

Lacan funda a Escola e, com esse ato de fundação, propõe o cartel. Ou seja, ele mesmo, o dispositivo do cartel, é fruto de um ato. Um ato como tal sempre comporta algo de real e, logicamente, não é sem efeito. Era um momento em que Lacan se inquietava com a burocratização e a universalização dos discursos que tendiam a um certo didatismo imposto à formação do analista, e o discurso do mestre tomava a cena. Assim, ao propor um novo modo de funcionamento no ensino de psicanálise, ele cria o cartel como “máquina de guerra antididata”, como um modo de transmissão. Diz ele:

Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles (temos um nome para designar esses grupos) se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um.[1]

Lacan propõe, então, com esse dispositivo, uma prática que implica uma experiência de formação. Vou destacar cinco pontos norteadores que hoje podemos extrair das experiências de cartel:

  1. Que se faça laço em torno de um tema comum.
  2. Que, no laço entre vários, haja um, ‘mais-um’, que marque a diferença sem que ocupe lugar de mestre, que faça função de ‘menos’ diante das formações identificatórias imaginárias de grupo e que possa operar diante das crises próprias do funcionamento grupal.
  3. Que, nas circulações dos discursos, algo do real possa ser sustentado e não obstruído.
  4. Que o laço no coletivo se dissolva após um tempo de trabalho.
  5. Que a causa analítica seja revigorada e fomentada pelos novos produtos.

Vemos ainda que, desde o princípio, com seu ato político, Lacan coloca sua própria solidão em uma criação que muda o destino da formação do analista.

Destaco o que disse Lacan, em 21 de junho de 1964: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise”.[2]

É interessante pensar que há, nesse momento de crise em torno do ensino, um ato que comporta uma solidão, e que Lacan opera na crise mesma a partir dessa solidão, propondo um coletivo que comporta um ponto ‘fora’, um ‘mais-um’ com função de ‘menos’, de esvaziamento.

Em D’Écolage, anos depois, ele reformula e aprimora o modo de funcionar da Escola, outro momento de crise e dissolução, onde ele diz: “Dou partida à Causa Freudiana – e restauro, em seu favor, o órgão de base retomado na fundação da Escola- ou seja, o cartel, cuja experiência feita, eu aprimoro a formalização”.[3]

Ele segue então colocando cinco pontos precisos em torno do cartel, o que resumo muito brevemente: o produto próprio de cada um, o mais-um como provocador, a permutação e o tempo, a exposição periódica dos resultados e das crises, a vetorização do conjunto.

Todo grupo se forma em torno de identificações e os efeitos de cola são naturais aos coletivos. Trabalhamos na vertente das desidentificações, na busca da singularidade de cada um, mas formamos grupos e coletivos o tempo todo. A genialidade de Lacan está exatamente em propor que, no coletivo, cada um possa suportar o que no laço desenlaça e é a partir disso que se pode extrair o ‘Um’ de cada um. Então esse pequeno grupo deve estar envolto em uma causa comum que os une, ao mesmo tempo em que deve suportar e até mesmo cernir a diferença singular.

Lacan nos traz a “elaboração provocada”[4], que se dá na relação com o outro, o que no cartel, segundo Éric Laurent, vai “da unidade do grupo até a produção de sujeitos divididos, remetidos a sua questão íntima”[5]. Esse é o ponto que faz a passagem do coletivo ao singular e, por esta via, é que podemos pensar no estilo próprio.

O que ocorre nesse funcionamento são encontros teóricos, clínicos e epistêmicos. Há também desencontros, crises, fraturas, desconstruções de saberes previamente adquiridos. Pois bem, tanto nos encontros, quanto, mais-ainda eu diria, nos desencontros e desconstruções, estão as enunciações de cada um. Nestas estão as pérolas de uma articulação onde cada um pode encontrar um caminho único, uma brecha para uma escrita inédita.

Por quê? Busca-se um saber, mas lá onde se busca, algo se perde e, lá onde se perde, pode ocorrer uma invenção.

Na circulação dos discursos que acontece no cartel, a posição do ‘mais-um’ é fundamental. Ele tem a função de esvaziar o discurso do mestre que lhe é demandado e, ao mesmo tempo, a de provocar um desajuste para que algo novo possa advir. Quando em função de ‘agente provocador’, é no discurso histérico que ele intervém. Aí está um momento de circulação e, nesse intervalo, o modo de fazer de cada um.

Uma palavra endereçada ao outro pode se fazer ouvir de outra maneira. É disso que se trata o movimento de ir e vir da palavra que, articulada no coletivo, faz eco. E um eco nunca retorna de modo idêntico ao que se pretendia enunciar.

As brechas, os intervalos e os furos nos discursos que tendem à universalização são os momentos em que se dão lugar ao real intrínseco no jogo das palavras e das trocas no pequeno coletivo. Estaria aí o advento da circunstância que se pode efetuar uma criação?

Caí então numa publicação da EBP de 2022, sob organização de Graciela Bessa e Késia Ramos, intitulada O analista e o estilo.  Em um dos textos, Graciela diz:

Ao articular estilo e objeto a, Lacan põe em jogo a letra uma vez que o objeto não é significante (…). Trabalhar a relação entre estilo e letra é fundamental pois nos remete à função do escrito, do escrito como sinthoma em que está em jogo um fazer com a letra, letra como marca de gozo, cuja verdade está no real[6].

Complementa, de forma exemplar, Cassandra Dias Farias:

É pela letra, impressão primária de lalíngua sobre o corpo vivo, que se constitui, através do enodamento do sinthoma, o que há de mais singular no ser falante. Tal característica se situa para além da lógica significante, por escapar ao campo do sentido, colocando em relevo a dimensão do objeto[7].

Ela continua: “Um saber-fazer (savoir-y-faire) com a letra que traça uma borda frente ao que há de mais real para cada um, seu modo de gozar. De acordo com o sinthoma, depreende-se o estilo”[8].

Késia Ramos, nesta mesma publicação, traz uma frase muito precisa: “A invenção custa o gozo de escrever, um gozo que fica contido no traço. Escrever o saber é passar o gozo à letra e o estilo é, então, um modo de transmissão, uma confissão produzida pela revolução também da fala”[9].

Ora, e o cartel, como pode ele provocar a aparição de um estilo?

Uso o termo aparição aqui no sentido de manifestar-se, fazer aparecer, mas ele toca também o caráter repentino, e talvez toque o divino no sentido metafórico. Por quê? Algo do fora-de-sentido pode surgir ali mesmo na circunstância onde os saberes escapam à intencionalidade. Logo, pode ser pelo vazio de sentido previamente adquirido que se pode escrever um sentido que faz laço, que conjuga, enoda aquilo que tende ao fora. Chegamos à dobradiça, ao ‘dentro e fora’ do cartel, ao ‘dentro e fora’ do coletivo.

Do dentro que faz fora, do coletivo ao singular, da letra, marca de gozo que se destaca, se desconecta de das amarrações discursivas, ao que de singular pode ‘aparecer’. A ‘aparição’ de um estilo próprio.

Há ainda a questão do tempo. Da constituição de um grupo à entrada em um cartel, há um tempo. Um tempo é, para nós, lógico e particular, assim como cada cartel a ser constituído tem seu tempo e sua lógica. Diz Nohemí Brown:

O real em jogo no cartel pode se manifestar, também, em diferentes momentos: nos impasses com relação ao saber de cada um de seus membros, na forma como ele se constitui, no funcionamento do grupo, na elaboração do produto, nas dificuldades de dissolução ou permutação etc. Inclusive, é necessário um tempo para a escolha do Mais-um e para o modo como o Mais-um pode operar[10].

Um cartel dito tradicional é proposto de um a dois anos. Um fulgurante, remetido ao tempo prévio de um evento ou de uma atividade de Escola. Mas e o tempo de elaboração de cada um no cartel? Ele está articulado a dois momentos: o do individual e o do coletivo. Esses tempos não estão necessariamente em sintonia: sofrem interferências do acaso, no interior mesmo da circulação de discursos, de saberes e não saberes de cada um que se dispuser a essa entrega na experiência. Uma experiência, sabemos, é sempre única, singular. Tomamos então esses princípios quanto ao tempo e à modalidade, como norteadores. Nesse sentido, pode-se extrair de um cartel mais de um produto ou mesmo nenhum. É o risco da própria experiência que permite escanções, ela está sujeita ao encantamento, às crises, à emergência do sujeito divido, do único ou do nada. Enfim, um produto é esperado, mas nunca obrigatório, caso contrário estaríamos na burocratização.

Em uma publicação da EOL, chamada 4 más uno, Patricio Álvarez Bayón, em um texto intitulado Lo real del cartel, traz uma conclusão interessante:

Podemos localizar, a título de conclusão, três possíveis sintomas do cartel, e também, por que não, três possíveis sintomas da Escola: o sentido, o grupo, a hierarquia quando se torna burocracia. Diante deles, três respostas, três formas do real do redemoinho estabelecido por Lacan: o impossível de saber, a contingência, a dissolução ou permutação[11].

Isso implica uma compreensão lógica: um grupo se forma, um cartel se constitui e se declara à Escola, seu lugar de laço. Se desenvolve e se dissolve para que não fique em elocubrações imaginárias. Entretanto, o que se extrai é um ponto que irá agregar por toda formação, permanente: do analista e da Escola.

Uma investigação compartilhada, cuja elaboração se dispõe a ser feita em num coletivo de cartel, está sujeita a intervenções e pode findar em um produto inédito, às vezes nem mesmo esperado pelo próprio autor da escrita. Isso se dá pelas provocações consentidas, eu diria, ali no próprio dispositivo.

O ‘deixar-se levar na experiência’ permite um ‘ir e vir’, um ‘dentro e fora’, ou seja, permite o jogo do real implícito no próprio dispositivo. Sim, esse funcionamento, uma vez que possibilita o vazio, a desconstrução, o sujeito dividido, pode fazer um movimento de descolamento e neste um estilo. Um descolamento das identificações, do sintoma de grupo, de saberes prévios.

O estilo surge pela expressão de cada um ao se lançar na experiência de real, na perspectiva da manifestação do inconsciente: ‘seu’ escrito, um estilo!

Desejo a todos uma boa experiência nessa Jornada que se inscreve ao estilo de cada um.


[1] LACAN, J. (1964). Ato de fundação. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 235. 

[2]  Idem.

[3]  LACAN, J. (1980). D’écolage. Disponível em: www.wapol.org.

[4] Idem.

[5] LAURENT, É. O real e o grupo. In: Cartel novas leituras. EBP, 2021. Org. Nohemí I. Brown.  p. 33. 

[6] BESSA, G.  Argumento – O analista e o estilo. In: O analista e o Estilo. Conversação das bibliotecas da EBP.  2022. p. 16.

[7]  DIAS, C. O analista e o estilo. In: O analista e o Estilo. Conversação das bibliotecas da EBP.  2022. p. 46.

[8]  Idem. p. 47.

[9] RAMOS, K. O analista e o estilo In: O analista e o Estilo. Conversação das bibliotecas da EBP.  2022. p. 87.

[10] BROWN, N. A porta do cartel. In: Cartel novas leituras. EBP, 2021. Org. Nohemí I. Brown.  P 154.

[11] ÁLVAREZ, P. Lo real del cartel. In  4 Más-Uno | Secretaría de Carteles de la Escuela de la Orientación Lacaniana. EOL. 2023.

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