skip to Main Content

O patriarcado como uma estrutura elementar do sexismo

Luis Francisco Camargo

O termo “racismo estrutural” está em voga. Para Silvo de Almeida,

“[…] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares […]. O racismo é estrutural. […], parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição” (ALMEIDA, 2020, p. 50).

Lacan, em “Os complexos familiares na formação do indivíduo” (1938), abordou a família como uma estrutura hierárquica que replica o modelo patriarcal, “o órgão privilegiado da coerção do adulto sobre a criança, coerção a quem o homem deve a etapa original e as bases arcaicas de sua formação moral (LACAN, 2003, p. 30)”. Para melhor ilustrar o lugar da família, Lacan tomou a língua materna como uma língua estrangeira, a língua do Outro, elemento fundamental na constituição do sujeito e das suas relações com a família em seus diferentes tipos: patriarcal, matriarcal, adotiva, monoparental, homoparental, reconstituída, nuclear, entre outras. Os valores morais de uma sociedade são transmitidos por estas instituições elementares. Por meio dessas estruturas, o discurso do Outro introjeta nas crianças os valores, os costumes, a moral e os modos de gozar a vida. No entanto, as respostas de um sujeito às introjeções dos ditos do Outro são indetermináveis, fruto do mal-entendido da linguagem e da relação entre os sexos. Nessa época de seu ensino, Lacan trabalhava alguns conceitos formulados por Freud como a introjeção, a projeção, a absorção e a expulsão. A “introjeção é sempre introjeção da palavra do outro, o que introduz uma dimensão muito diferente da de projeção” (LACAN, 1985, p. 100). É pela palavra do outro que nos são transmitidos os valores morais do Outro social. Para Lacan (1985, p. 195) é justamente no momento do declínio do complexo de Édipo que se produz o que chamamos de introjeção. As introjeções são constituintes do Supereu, instância coercitiva do Eu diante das demandas do Isso e mediadora entre o Eu a cultura.

O que é um complexo para a psicanálise? Freud elencou diversos: o complexo de desmame, o paterno, o materno, o da excreção, o de Édipo, o de castração etc. A primeira teoria etiológica sobre as neuroses se encontra na “Comunicação Preliminar” dos Estudos sobre a Histeria e pode ser resumida pela seguinte sentença: os neuróticos sofrem de reminiscências (Cf. FREUD, 2016/1893-95, p. 21). Freud havia verificado que a ab-reação de um afeto associado a uma memória patogênica (lembrança) dissolvia o sintoma. Tal memória é como um corpo estranho cuja penetração fora efetuada no passado, mas que se comporta como um agente no presente (Cf. FREUD, op. cit., p. 20). Era o momento da teoria do trauma. Mais tarde, Freud acrescentará o fator “predisposição. Esses sujeitos têm uma predisposição de se traumatizarem, produzindo assim novos sintomas decorrentes de processos psíquicos estruturados pela introjeção de valores sociais conflituosos com a demanda pulsional. Esses processos psíquicos são regidos por um ou mais tipos de defesas, das quais Lacan isolou três tipos determinantes da estrutura do sujeito: a negação, a denegação e a forclusão.

Do que os sujeitos se defendem? Os sujeitos se defendem primordialmente de duas coisas: 1) as memórias patogênicas (representações) e; 2) as pulsões.

Mais tarde, o progresso da terapia psicanalítica mostrou que não se tratava de uma memória, mas de um complexo de memórias, de inscrições e reinscrições de acontecimentos. Essas memórias patogênicas infiltradas infectavam outras, por associação de continuidade, de vizinhança e de semelhança, produzindo assim complexos de lembranças patogênicas. Dois grandes complexos de memórias foram descritos por Freud, onde podem residir conflitos, o complexo de Édipo, momento em que o sujeito se confronta com o desejo do Outro, e o complexo de Castração, momento em que o sujeito se confronta com a diferença sexual.

A psicanálise não é uma doutrina que visa uma apologia ao Édipo e ao falo. Muito pelo contrário, é uma experiência que tem como objetivo as suas respectivas dissoluções. Não há o Outro (do Édipo) e não há objeto primordial (o falo) que possa reparar a falta ou tamponar o furo do Outro. A crença no Outro e no falo é o núcleo das neuroses para Freud: “o complexo de Édipo é considerado, com razão, o núcleo das neuroses” (FREUD, 2014, p. 363). O patriarcado e o falocentrismo são precisamente localizados na fixação dos sujeitos nesses dois complexos, responsáveis pela formação da neurose e, principalmente, a formação dos sintomas.

As especulações evolucionistas de Freud visando explicar a repetição simbólica dessas estruturas sociais foram baseadas na teoria biogenética de Haeckel sobre as recapitulações morfológicas dos organismos, identificadas pela expressão freudiana “a ontogênese recapitula a filogênese”. Na minha opinião, se tratava de uma tentativa heurística em explicar a repetição das tradições na cultura, por exemplo, o patriarcado. Por que é tão difícil dissolver a crença no Pai todo poderoso? Por que é tão difícil desalojar essa crença nas instituições? O mito freudiano, baseado nas divagações de Darwin em “A descendência do Homem”, do qual Freud conclui que os totens são as representações simbólicas da introjeção de um pai primitivo assassinado, em torno do qual se organizam as relações dos clãs e das famílias, é uma hipótese (possível de ser falseada), mas construída por Freud a partir do estado da ciência do seu tempo. Criticá-lo pelo uso da teoria da recapitulação é tomar uma posição anacrônica e descontextualizada. Conforme Stephen Hawking (2015, p. 21) “uma boa teoria deve satisfazer a dois requisitos: precisa descrever com precisão um número razoável de observações, com base em um modelo que contenha poucos elementos arbitrários; e deve prever com boa margem de definição, resultados de observações futuras”. Naquele contexto, o uso da teoria da recapitulação para explicar o patriarcado descrevia com precisão um número razoável de observações históricas para Freud, e explicava a recapitulação de uma estrutura elementar do parentesco.

Essa propriedade de resistência do patriarcado não seria hoje representada pelo êxito do projeto neopentecostal de dominação das instituições do Estado, denominado de teologia do domínio? Essa teoria de Freud não nos permitiria compreender as causas do avanço da religião, prevendo com boa margem os acontecimentos contemporâneos? A cruzada religiosa sobre o Estado Brasileiro, a ascensão do nacionalismo (Brasil acima de tudo), a apologia ao patriarcado (Deus acima de todos), a escalada do sexismo (ataque as minorias sexuais), o desvelamento escancarado do racismo estrutural, em geral são interpretados por alguns psicanalistas por meio da teoria da identificação e da recapitulação de Freud. Entendemos por recapitulação a repetição de um passado remoto, no sentido em que alguns cientistas sociais apresentam tais fenômenos como um retorno do passado, um passado recapitulado.

O patriarcado e o falocentrismo são estruturantes na nossa sociedade e, por conseguinte, para os sujeitos. Nesse sentido, a dissolução do repúdio ao feminino na experiência psicanalítica, expressão cunhada por Adler e adotada por Freud, é uma das últimas cidadelas a ser conquistada em uma análise, o ponto de chegada, considerado por muitos psicanalistas, como uma das portas de saída definitiva da neurose. Assim, podemos afirmar que o patriarcado e falocentrismo são alguns dos obstáculos a serem superados pelo falasser na experiência da psicanálise.

O texto de Cristina Buarque toca esse ponto e, talvez, seria adequado tratar o patriarcado como a estrutura elementar do sexismo. Na verdade, atacar e eliminar o patriarcado é destruir o pilar central da cultura judaico-cristã. O declínio do patriarcado é uma consequência para cada analisante na experiência da psicanálise, denominado de queda do Outro, cujo solução se realizada definitivamente na dissolução da transferência e na saída de análise por meio do tratamento do gozo.

Lacan destacou o poder da religião em uma entrevista em Roma. “A religião não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas também. É impossível imaginar quão poderosa é a religião […] A ciência é novidade, e introduzirá um monte de coisas perturbadoras na vida de todos. […] [a religião vai] dar um sentido a todas as reviravoltas introduzidas pela ciência” (LACAN, 2005, p. 65). Não é justamente isso que assistimos hoje, uma batalha entre ciência e religião?

Cristina Buarque apresenta um breve histórico dos movimentos feministas. Destaca que as primeiras manifestações feministas ocorreram na França durante a Revolução Francesa, que tem como um dos principais nomes Olympe de Gouges (1748-1793), pseudônimo de Marie Gouze, mulher feminista que escreveu a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã em 1791. De Gouges era companheira de Sophie de Condorcet e foi guilhotinada pelos Jacobinos devido aos seus escritos e atitudes pioneiras. Cristina nos apresenta em seu texto uma crítica à revolução francesa: liberdade, fraternidade e igualdade para os homens, mas não para as mulheres. Assim, Olympe de Gouges ao defender o direito das mulheres se torna a oposição da oposição, acabando por se aproximar também do outro lado do espectro político da revolução, os girondinos.

É indiscutível a dominância masculina secular na nossa sociedade, a opressão, a recusa e a segregação do feminino nas instituições e na sociedade. A breve história dos movimentos feministas trazidas por Cristina me remeteu a esse termo, estrutura, para definir a indestrutibilidade do poder pátrio e androcêntrico. Nesse sentido, pergunto se não seria adequado descrever essa máquina segregativa do feminino como um sexismo estrutural?

Em um dos textos fundamentais nos estudos feministas, o clássico “Tráficos de mulheres (1975) de Gayle Rubin, encontramos uma crítica sobre as explicações e as ações políticas de afirmações feministas nos anos 70. Na época, Rubin apresentou três teorias populares que ainda hoje explicam a gênese da desigualdade sexual: 1ª) a opressão das mulheres decorre da agressão e dominação de uma masculinidade inata, logo o programa feminista deveria eliminar o sexo agressor ou implementar um projeto eugênico de modificação do seu caráter; 2º) o sexismo é produto do capitalismo, assim uma revolução socialista implicaria no desaparecimento da desigualdade, onde o trabalho doméstico é um elemento chave do processo de reprodução do trabalhador de quem se expropria a mais-valia. Como são as mulheres que fazem o trabalho doméstico, portanto, elas também se encontram na cadeia do processo de expropriação da força do trabalhador e; 3º) a derrota das mulheres, em âmbito global, é decorrente de uma revolta armada patriarcal; tratar-se então de convocar guerrilheiras amazônicas para depor o patriarcado (RUBIN, 2018, p. 14). Temos aí três teorias explicativas sobre a opressão das mulheres: a primeira ressalta um machismo inerente ao homem; na segunda, a submissão das mulheres é decorrente dos processos capitalistas; e na terceira, a opressão feminina é decorrente do patriarcado.

Cristina ressalta pelo menos duas dessas teorias, a primeira e a terceira. Na primeira, se trata de um projeto eugênico: ensinar ou modificar o caráter dos homens visando com que renunciem o poder e os privilégios em torno do sexo. Já a terceira teoria atravessa todo o seu texto. Cristina conclui que uma condição sine qua non para construir igualdades, que inclua o debate da sexuação, tema desta jornada, é reafirmar uma posição feminista antipatriarcal. De certa forma, essa posição toca diretamente a questão da sexuação, já que para Lacan, a posição dita masculina, a do homem, inclui o Outro da exceção, ilustrado por Freud pelo Pai de uma horda primitiva e escrito logicamente por Lacan (existe um x que não responde à castração, Φx) como o elemento da exceção que funda não só a ideia de Deus, mas também de A mulher (com A maiúsculo). A ideia da mulher-toda é ilustrada na entrevista de Andreina Gama quando menciona a ditadura do feminino, que pode ser traduzido como a ditadura d’A mulher (ter peitos, quadris largos etc.). Trata-se d’A mulher como exceção, como Ideal. O que ela nos traz é que essa lógica produz estragos e que o elemento da exceção para a psicanálise está no campo do masculino. Um parêntese. É importante destacar que tanto homem e mulher como masculino e feminino se tratavam para Lacan de identidades de gênero:

O importante é isto: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, “homem” e “mulher” […]. Para compreender a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa (LACAN, 2009, p. 30)

Trata-se aí de uma lógica binária introduzida pelo discurso do Outro. Lacan irá isolar o gozo suplementar, parte do gozo feminino, que propicia, logicamente, a saída do binarismo e a abertura para o infinito, para o múltiplo, ilustrado atualmente pela sigla LGBTQIA+ e pelo termo Queer.

Minha pergunta final é sobre o Outro da exceção, sobre A mulher, sobre Deus. Lacan fez desse ideal de mulher um outro nome de Deus. Destituir o que Andreina Gama denomina de ditadura do feminino, o ideal d’A mulher é destruir Deus. Podemos então formular a seguinte questão: um feminismo antipatriarcal não seria um feminismo antirreligioso? Não seria isso o que a Igreja denominou na Idade Média de pacto das mulheres com o demônio, um ataque ao Pai?

Assistimos hoje o avanço do poder pastoral como representação do pátrio poder. Esse é um projeto que data os anos 1950, um projeto que nasce de uma renovação pentecostal, denominado por alguns autores de “Teologia do Domínio”. Esse projeto de ocupação das instituições do Estado pelos religiosos, com o objetivo de promover em parte a correção das leis conforme as sagradas escrituras, nasceu concomitantemente com os movimentos feministas dos anos 1970. Por um lado, assistimos o avanço dos movimentos das minorias, alavancados pelo paradigma do movimento feminista. Por outro, o avanço do poder pátrio, realizado no Brasil principalmente pelos movimentos neopentecostais e católicos. Os movimentos feministas antipatriarcais exigirão necessariamente uma mudança de interpretação da religião judaico-cristã. Eles encontram sempre a Igreja como um obstáculo, pois na sua base está a ideia do Pai todo poderoso.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
FREUD, Sigmund. O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. In. Conferências Introdutórias à Psicanálise. Obras Completas, v. 13. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 344-365.
FREUD, Sigmund. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. In. Estudos sobre a histeria (1893-95). Obras Completas, v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 16-32.
HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1985. (Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)
LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse de semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. (Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)
LACAN, Jacques. O triunfo da religião, precedido de O discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)
LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo. In. Outros Escritos. Rio de Janeiro:  Jorge Zahar Ed., 2003, p. 29-90. (Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres. In. Políticas do sexo. São Paulo: UBU, 2018.
Back To Top