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O analista e a escrita

Fátima Pinheiro

Introdução

“O analista e a escrita”, título sugerido pela Cassandra para o nosso encontro – o qual gostei muito – fez sentir-me duplamente concernida: por minha prática enquanto analista e, também, como escritora. Pensei, então, trabalhar o laço entre a psicanálise e a escrita a partir da poesia e dos efeitos produzidos por ela em minha poética.

Há um texto que me possibilitou pensar este percurso, que é “Ler um sintoma” de Jacques Alain Miller[1]. E, porque o elegi? Porque ali a leitura, como é apresentada por Miller, aponta para um saber ler, ler o sintoma. Nesse texto, Miller diz que Lacan costumava chamar o sintoma, de “etecetera”.  Parece-me interessante a ideia de tomar o sintoma como “etecetera”, pois remete diretamente a dimensão de resto, de litter, que implica a letra. E, é pela vertente do etecetera, que trata da dimensão do resto, que introduzo a poesia. Se a psicanálise se aproxima da poesia é porque o que se espera do saber ler de um analista inclui um forçamento que perturba os sentidos adormecidos frente ao real, é aí que a escrita poética pode remeter ao despertar.  Movimentar a língua é o trabalho da poesia. O mais fundamental da língua é que ela se cria ao falar, e é imperfeita, como Miller apontou: “E é um fato da língua que ela permita falar para nada dizer, e dizer o que não se sabe, e mais ou menos o que se sabe”[2].

E eu diria, ainda, que fazemos a experiência da língua, como poetas, ali onde a linguagem encontra o seu limite, o indizível, “onde os nomes nos faltam, onde as palavras se quebram em nossos lábios[3]”. Heidegger, segundo Giorgio Agamben, afirma que se faz a experiência da língua lá onde as palavras faltam, e ao faltarem as palavras é a língua que encontramos [4]. Aí entramos no campo poético, onde, como disse Caetano, se pode: sentir a minha língua roçar a língua de Luis de Camões, onde gosto de ser e estar, …ao criar confusões de prosódia, e um profusão de paródias”.  Os convido, então, a fazer aqui e agora, uma experiência com a língua, a partir de algo de minha prosa, intercalada pelos silêncios e pelos meus poemas, quando a própria língua se deixa dizer:

O encontro existente entre a psicanálise e a escrita nasceu para mim de um furo no saber, surgiu como um acontecimento traumático.  O acontecimento é tudo o que sucede e possui um caráter excepcional, não há acontecimento sem que este não se dê a partir do dizer de cada um, o que faz do acontecimento signo do real.

“Ao entrar na escola, aos seis anos, o inesperado me  tomou de jeito. O que até então fora desenho, garatuja, em folhas de livro que eu adorava rabiscar, rasgar, colar, molhar – criando coisas díspares que eu costurava como se fosse tecido – algo inteiramente novo surge. Diante do caderno de caligrafia eu deveria desenhar as letras e não mais juntar os objetos, os dias, as cores, os bichos, as flores, as pedras. Eu deveria desenhar as letras copiando-as, o que me parecia totalmente fora do sentido das coisas. Com a letra “a”, vogal vagante e cifra de puro vazio, eu experimentei o mais inaudito, não conseguia desenhá-la, sua perna ora saia muito curta ora muito alongada, algo ali sempre escapava, como água. Desenhar a letra “a” era como se fosse segurar a água com as mãos, coisa impossível. Depois de me ausentar por alguns dias da escola, minha professora me interroga sobre o motivo de minha ausência, e ao revelar a minha dificuldade de desenhar a letra “a” idêntica à do modelo, ela disse: “Mas cada um tem a sua letra a”. Passado um tempo, escrevi sobre “um grão de areia” para um concurso nacional de contos infantis e recebi a notícia de que havia sido premiada. Minha professora, que tinha voz de água corrente, minutos antes da entrega do prêmio, sussurrou ao pé do meu ouvido baixinho: “a” de areia . [5]

Esse Um, o singular, contido na frase de minha professora como a impossibilidade de fazer todo (pas -tout): “cada um tem sua letra a”, foi reencontrado em um segundo tempo, ao me deparar pela primeira vez com o texto de Freud, o “Projeto para uma psicologia científica”, com a enigmática montagem do aparelho psíquico a partir das letras, e tempos mais tarde, com os textos de Lacan, quando pude depreender a força poética de sua transmissão. E, foi na experiência, como analisante, que pude em um terceiro tempo, semear o grão do UM – mesmo sem nunca o ter encontrado – porque ele não é contável, ele se situa pela não – relação, mas, no entanto, não é à toa que Lacan o tenha chamado de um dizer, isto é: um dizer que pode ter consequências.

Há outro testemunho, do escritor argentino Alan Pauls, que me parece tocar diretamente nesse ponto traumático de onde provém o sintoma, ele diz: “O sintoma é uma pedra sobre a qual tropeçamos. Tropeçamos com ele sem elegê-lo, contudo, ele não se impõe, exatamente, e não é de todo alheio. Entre o sintoma e eu há uma espécie de afinidade secreta, uma espécie de compreensão íntima, silenciosa, um pouco abjeta, quando o sintoma simula desaparecer, eu ao invés de celebrar, me deprimo. Porque com o sintoma perco um gozo essencial, tão essencial que não posso me entregar a ele. Queremos escrever – não nos curarmos, pois é o sintoma um signo muito particular que temos com o mundo. Escrever é seguir o rastro de nossos sintomas. Um falso mártir cristão diria: abraçar a pedra que tropeçamos ou mais freudianamente pode-se dizer gozar dela”[6].

o poeta é extremo
pega a palavra
para nunca
mais a soltar
soltar
soltar
soltar
soltar

Aí, podemos dizer com Lacan, que o poeta se produz por ser devorado pelos versos/vermes/vers, que encontram em si o seu arranjo, sem se incomodar, isso é patente, se o poeta sabe disso ou não[7].

 um poeta não
sentada no café, eu leio: “um poeta não se faz com versos”,
de chacal.
um poeta não, se faz com versos não,
ele deságua incessante como as tuias de café,
transborda.
ele não sabe que a guerra vai estourar daqui um minuto.
só para transtornar, o poeta relampeia.
não lhe interessa os parnasianos,
o mazar suave das laranjeiras.
enquanto a noite, aquém de um jazz mediterrané, é cantata,
o poeta com versos não se faz
nem com decassílabos, ganzá, fuxico, nem com maracatus e maracas.
o poeta faz.

O que há de poesia, quando escrevo, remete à dimensão do indizível, que tento alcançar através do próprio fracasso de minha linguagem. São os cortes, a ruptura que realizo entre os significantes, as quebras de sentido, os saltos inesperados, que dão a dimensão do indizível e do silêncio, do vazio da letra. Essa experiência toca a sonoridade de lalíngua, tão bem evidenciada por Lacan nos anos 70. Quando me refiro ao indizível, não me refiro ao não linguístico, mas algo da própria língua que fala:

 o bule de chá fervendo não ouve a voz de nina simone,
não ouve os flamboyants lá fora,
nem o mazar suave dos limoeiros.
o bule de chá fervendo não vê o abismo nô,
não vê o fulgor de dois olhos entre folhas tímido cicio,
nem as cassiopeias em flor.
dentro da xícara de argila,
a voz ancorada de nina corre nômade,
ofegante,
que nem boca lundu,
xucra voz de lumaréu:
zumzumzum, ulula, me bebe de chá.

Essa experiência da linguagem que é o poema, existe sem mim e antes de mim. O poema tem essa dimensão de só aparecer quando eu desapareço enquanto sujeito. Lacan tratou desse aspecto com muita propriedade, assim ele disse: “Não sou poeta, mas um poema. E que se escreve, apesar de ter jeito de ser um sujeito”[8]. É interessante esse ponto: o poema tem cara de sujeito, focinho de sujeito, mas não é sujeito. O sujeito só aparece entre significantes, mas se faço a experiência radical da linguagem, se a partir do corte recolho os resíduos, que aparecem a partir do vazio da letra, eu deixo a linguagem dizer, o cascalho, esse resto que se deposita da língua, fazendo soprar o Koan, que Lacan chamou de aboiement[9], o latido, quando a interpretação visa a poesia, ao se referir à quebra da semântica, quando se rompe com o ciclo infernal da cadeia polissêmica da linguagem.

(Sopro de Koan)
é surpreendente que se peça algo assim:
ou se escreve uma prosa ou se escreve um poema.
não se pode esquecer que durante anos eu escrevi
entretida por pequenas coisas, sem forçar as dificuldades.
hoje escrevo como ave-do-paraíso, ao redor do rubro vivo da letra,
sem ser invadida pelos sonhos.
às vezes, escrevo como se tivesse tempo,
iluminando a sombra na fuga das horas.
rasa, tateio o vigor selado do fonema,
sopro de koan: furo e miragem,
que o copo de cristal cintila na lua deitada.

O koan é o corte, algo que zomba da significação, um saber- fazer com o gozo e o sentido, é a via que se dirige para o confronto direto com o gozo e a pulsão. Contudo, o koan não se dirige para a absurdez, e sim para a isenção de sentido. Roland Barthes marca essa diferença com precisão: “a isenção de sentido é um estado de sentido infinitamente mais difícil de realizar, é uma espécie de vazio de sentido, ou melhor, o sentido lido como vazio, o que não é o caso do absurdo”[10].  O que está em jogo no koan (“enigma quase insolúvel”, em japonês) é o vazio de sentido.  O koan apresenta a solidão de um significante à solidão de outro significante, como bem disse o poeta Fernando José Karl no posfácio de meu livro sim, é.

xantungue do jinriquixá
iluminando a sombra do entalhe
clorofila osso areal
não fere oceano da escuta
só a noite lavada pelo vento
ouve o sambaqui ímã
manchado de fogo
que está nos depósitos de conchas
o encontro no terraço confundia
arroz com ave maria

O praticante desta arte zen, o Koan, tem como princípio abdicar de todo o saber prévio, assim como transcender os limites do dualismo lógico, ao despertar um processo que permite ao praticante uma visão do verdadeiro funcionamento das coisas. O koan pode ser equiparado a um relâmpago.

respira a xícara
por 3 furos de chá azul:
a baleia é

Há na experiência que se refere ao limite da linguagem, um esvaziamento, que remete à letra, e me chega como um fluxo, do qual não domino, e que me faz encontrar o estrangeiro em mim, ao ponto de após ler o que escrevi, achar que não fui eu que escrevi. É como se uma Outra escrevesse em mim.: quanto mais perfuro a linguagem, mais o estrangeiro aparece em mim, marcando o exílio que a escrita promove.

acorda, vida.
se digo que me vi em tuas entranhas,
entre claustros, plantas na varanda, de claridade uns barcos?
dirás que sonho uma encantada figa de osso,
se digo que me vi dunas e pássaros
entre âncoras negras, ronco dos furacões, sempre-vivas?
mas não. alguém serafim: acorda, acorda vida.
e se te digo que as partes iluminadas daquele quarto ao meu lado
e banzo e cavalo de palavras ávidos.
dirás que luar? mas manchadas de fogo. alguém gritava:
palavras: apenas rodelas de casca de laranja e o melhor do vento.
acorda.
ode profunda: vida.
(poema sobre um poema de Hilda Hilst 1)

O poeta é aquele que não conhece senão o exílio de si mesmo, habita o céu que há em si, e abisma a língua. As palavras do poeta vão se juntando uma a uma por uma instância terceira, um narrador, estrangeiro e íntimo. Suspenso no céu, sob a incidência da luz e. da sombra, o poeta se move em silêncio.

fechei os olhos e deixei meus braços soltos:
minhas mãos eram azuis ao meio-dia
me senti um peixe voador,
sim, só as palavras podem imitar peixes-voadores
no meio da piscina
– ali na profundeza onde as palavras
não alcançam-
fui fundo e precisei, como náufrago
agarrar o silêncio pelos cabelos.

 “A linguagem é a única ressurreição para o que desapareceu. É o que permite responder ao primeiro enigma: porque o êxtase do passado se tornou um êxtase da linguagem. A linguagem é a casa para tudo o que não está”, diz Pascal Quignard[11]. Isso faz com que o poeta, nesse tempo de pandemia e de violência do Estado, onde mais que nunca, vivemos onde não somos, possa dar um passo à frente, e tentar dizer o que o que não tem nome, e nem nunca terá.

hoje na cidade de deus o caveirão, o caveirão na cidade sem deus. seria mais simples não morrer. o caveirão hoje sem deus na cidade passou por cima de deus, o caveirão. hoje na cidade de deus sem deus, o caveirão passou por cima da rosa ave maria, o caveirão passou por cima dela, ouço o osso do cardume de aço, o caveirão. seria mais simples não morrer, habitar uma palavra, desejar ver o orvalho brotar entre as telhas. o caveirão passou sem deus, o caveirão na cidade de deus. sem deus o caveirão passou por cima das casas, a criança cambaleou, instável. é guerra, sangue sem deus na cidade de deus.

O sujeito do inconsciente não é um poeta, mas as formações do inconsciente estão construídas ao modo do poema, com suas próprias metáforas e metonímias, que mostram a relação singular que o sujeito mantém com a pulsão, de como goza a vida.

linfa sambaqui
restos de caramujo
olhos de peixe
lotados de azul
as palavras só conhecem a sede
durante o dia o rumor aflora
agulhas de marear
de noite a nudez da pérola
canícula
com a resina de minha língua
furo oceanos.

O poema, o poema absoluto, não existe, disse Paul Celan: o poema se faz a cada vez, uma única vez, como tão bem enfatizou Fabian Fajnwaks[12], ao se referir  “ao cada vez, uma única vez”, em sua relação com a contingência, esse cessar de não se escrever, que o poema apresenta sobre o fundo da impossibilidade. Seria, então, esse o refúgio do poeta para habitar a língua?

meu pai faisão
voz saudade quanta
ah e minha mãe.

 Cavar a língua, como Celan soube fazer com seus poemas, assim como cavava o chão do campo de extermínio de Auschwitz, evoca o trabalho que Lacan descreve em Lituraterra: o sulco que a palavra opera sobre o gozo para fazer surgir lalíngua, a partir dos efeitos produzidos pela chuva dos significantes sobre a planície siberiana.

Espuma: suor d´água que escreve o poema no mar de todas as águas.[13]


[1] http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br
[2] Miller, J. A. Matemas 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.1996. p. 61.
[3] Oliveira, C. A poesia e a filosofia face ao indizível: do experimentum linguae em Giorgio Agamben, In: Revista do Programa de Estudos Pós- Graduados em Literatura e Crítica Literária da Puc- SP. N. 24 de julho de 2020. P.160.
[4] Agamben, G. Experimentum linguae – Conférence au coloque “Lacan avec les philosophes”/College international de philosophie de Paris. 1990.
[5] Cesari, P & Maxnuck, A. Feminino Manifesto, In: Flor d´água (Fátima Pinheiro). Rio de Janeiro: Nau Ed. 2921.
[6] Alan Pauls- vídeo publicado em La_ falta_ que _ me_ hace : grupo público organizado por Carlos Rossi. Buenos Aires/ Argentina.
[7] Lacan, J. Outros Escritos, In: Radiofonia. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2003. p. 402.
[8] Lacan, J. (Lacan. J. Rio de Janeiro: Zahar Ed. Outros Escritos, 1976/2003, p.568.
[9] Lacan, J. aula de 8 de maio de 1973, p. 157.
[10] Pinheiro, F. sim, é. Curitiba: Ed. Blanche, 2020. p.121.
[11] Quignard, P. Sobre lo anterior. Último Reino II. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2016.
[12] Fajnwaks, F. Poesía – herejía de la lengua. Cita em diagonales. Revista online digital y audiovisual de Psicoanálisis y Cultura. Argentina,
[13] Todos os poemas apresentados neste texto são de autoria de Fátima Pinheiro, extraídos de seu livro sim, é. Editora Blanche/ 2020.
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