
Por Raissa da Nóbrega Pessoa
“Nós, precisamente, nos atemos à apresentação, não de uma psicopatologia geral, mas do esforço de cada sujeito para tratar do seu sintoma e do acolhimento que lhe damos em instituições que, sem nossa presença, teriam tendência a tratá-lo como categoria.”
O Delírio da Normalidade. In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana/Éric Laurent. Belo Horizonte. Scriptum Livros, 2011, p. 45
Como bem pontuado por Éric Laurent, os novos significantes mestres da contemporaneidade são a armação (armature) do discurso do mestre. O espaço do singular é reduzido e banalizado, caminha-se ao seu desaparecimento. Em meio às instituições, o analista é o deslocado, é o representante da estranheza e diferença frente aos ideais utilitaristas, é o guardião do furo. Se há linguagem, então não há a harmonia tão ansiada pela saúde mental, o sintoma é o próprio obstáculo à norma, isto é, é a via pelo qual o Real não cessa de se inscrever. Na presença de um sujeito soterrado pelos significantes, talvez o analista nas instituições seja o ponto de suspiro.
Por Paulo T. Carvalho
No Seminário 20, Lacan nos fala que “o que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor” (LACAN, 1985, p.62)[1]. Ele acrescenta que essa suplência articula-se ao “para-esser”. Lacan nos adverte, contudo, que quanto mais se aproxima desse furo da inexistência da relação, mais “a linguagem só faz manifestar sua insuficiência” (Ibid). Nesse sentido, a experiência da análise, possibilitada pelo amor de transferência, estaria confrontada com o fracasso, com o que é da ordem do impossível para cada sujeito. Miller argumenta em “Uma fantasia” que, nesse ponto do ensino de Lacan, estaríamos diante de uma nova concepção do amor enquanto aquilo que permite “fazer mediação entre os um-sozinho” (MILLER, 2015)[2]. Se confrontar com a insuficiência significa dizer que o inconsciente real não existe enquanto saber. É preciso apostar que algo aí se inscreva – apesar do impossível. Para tal, para se tornar um saber, seria preciso o amor. O amor que é do analisante ao próprio inconsciente.
Pergunto se não é desse amor que fala o poema “Aparências”, de Antonio Cicero, poeta e ensaísta que nos deixou no último 23 de outubro. O amor enquanto aquilo que “reveste a pulsão” e “coordena o gozo” se mostra assim na sua vertente vivificante, uma aposta em direção à vida.
Aparências – Antonio Cicero[3]
Não sou mais tolo não mais me queixo:
enganassem-me mais desenganassem-me mais
mais rápidas mais vorazes mais arrebatadoras
mais volúveis mais voláteis
mais aparecessem para mim e desaparecessem
mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais re-
velassem
mais
eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.
Por Anna Luzia Oliveira
“Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala”. (LACAN, 1998, p, 242).
A citação supramencionada revela a dinâmica de como os conteúdos internos, especialmente aqueles ligados ao sofrimento ou aos impulsos inconscientes, vêm à tona diante da experiência da urgência e, paradoxalmente, podem ser elaborados e transformados através da fala.
Em Além do Princípio do Prazer, Freud (1920) afirma que as necessidades de satisfação sexual, oriundas do inconsciente, representam uma pressão contínua em busca de expressão, o que implica dizer que as urgências da vida, como sofrimento, sintomas e angústia, servem como canais pelos quais o inconsciente se manifesta, em busca de reconhecimento e alívio.
Lacan complementa essa perspectiva ao enfatizar que a fala é um dos instrumentos primordiais para que o sujeito expresse os conteúdos reprimidos, facilitando a superação de suas angústias. Em seu seminário a angústia (1962-63, p. 178), afirma: “a angústia, dentre todos os sinais, é aquele que não engana”, ou seja, ela aponta de forma direta para o núcleo do desejo inconsciente. Para Lacan, o atravessamento desse afeto na fala permite ao sujeito enfrentar e ultrapassar a angústia, mostrando que o “real” do sofrimento precisa ser simbolizado para ser superado.
Miller, em O ultimíssimo Lacan (2014), ao dialogar com essas ideias, destaca que o real se apresenta como o que escapa ao sujeito, fora do sentido, indizível. No entanto, é precisamente nesse contato com o impossível que o sujeito pode encontrar alguma saída pela palavra, sugerindo que a fala não apenas alivia a urgência, mas atua como um dispositivo de enfrentamento para o que é da ordem do impossível de dizer, em que o ato de nomeação passa a representar um manejo possível, uma escrita singular para servir-se: “um regime que não de um ditado, mas um regime em que se trata de inventar uma escrita” (p. 61).
Assim, tanto em Freud quanto em Lacan e no último Lacan de Miller, a fala aparece como o caminho para que a urgência se desdobre em criação, no ato de escrita sobre a marca que está no real.
Referências
FREUD, S. Além do princípio de prazer [1920]. In: Além do princípio de prazer. (Obras incompletas de Sigmund Freud). Belo Horizonte: Autêntica editora, 2020, p. 57-205.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem [1953]. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1998, 238-324.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar editora, 2058.
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan [2006-2007]. Buenos Aires: Paidós, 2014
[1] LACAN, J. O Seminário: livro 20: Mais, ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
[2] MILLER, J-A. “Uma fantasia”. In: Opção Lacaniana. n. 42, Fevereiro, São Paulo: Edições Eolia, 2005.
[3] CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
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