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Coordenação: Elizabete Siqueira e Glacy Gorski

Pode a psicanálise constituir-se como a ciência do impossível?

Jacques Lacan

O mestre interrompe o silêncio, com qualquer coisa, um sarcasmo, um ponta pé.

Jacques Lacan

A interpretação não foi inserida nos quatro conceitos fundamentais, pois já está incluída no próprio conceito de Inconsciente, e é por isto que Lacan, no final do Seminário 6, afirma que o desejo é sua interpretação. Uma leitura aprofundada dos primeiros textos de Freud permite reconhecer que estes apontam nesta mesma direção.

Uma das reflexões de Freud sobre uma boa interpretação assinala que ela possibilita a emergência de novas associações e postula, então, a necessidade da associação livre, do lado do analisante; do lado do analista, estaria a atenção flutuante.

Já sabemos, com Freud e, sobretudo, com Lacan, que o saber está do lado do analisante, mas que é essencial fazê-lo escutar o que ele mesmo diz, a fim de que entre em seu próprio discurso. Logo, o ato de interpretar é condição sine qua non de abertura do Inconsciente, chegando ela mesma a ser do próprio Inconsciente, porque, desde que se fala, se interpreta. Em Freud, A interpretação dos sonhos é o texto fundador do tema que estamos abordando [1900 (2019) ]. Há outros textos monumentais e admiráveis sobre o tema, tais como Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana [1901(2021) ], no qual ele realiza uma leitura do seu próprio lapso de memória de um nome próprio, a saber, Signorelli. Neste último, temos um exemplo bem claro que nos atesta que o inconsciente é constituído como uma linguagem.

Gostaríamos de trazer algumas pontuações, neste momento inicial do curso, as quais, ao longo do seminário, teremos a oportunidade de aprofundar. Assinalo, então, que, nos primórdios da Psicanálise, Freud enuncia algo que nos parece de fundamental importância retomar e realizar uma releitura, a partir do texto lacaniano.

Nesse momento, destacamos que Freud nomeia seu texto, de 1900, de Die Traumdeutung, que foi traduzido ao português como Interpretação dos sonhos. Primeiro, aponto o erro de traduzir no plural, pois, em Freud, está no singular, uma vez que é um a um que um sonho pode ser interpretado pelo sonhador. Um sonho não se interpreta pela via de simbolismos universais. E, além do mais, é fundamental assinalar que, na língua alemã, o verbo deuten tanto pode significar “dar um sentido” como também “indicar uma direção” (Wahrig, G., 1968). Então, podemos pensar que interpretar aponta um caminho a se seguir; deste modo, podemos, então, inferir que interpretar não significa “dar um sentido”. Esta temática será aprofundada ao longo deste seminário.

Retornemos, então, aos primórdios da Psicanálise, quando Freud argumentava, na carta 52 (1896), que o inconsciente é uma escrita – Schrift –, e ressaltava se tratar de uma escrita que é um apelo à decifração. Trata-se, pois, de uma exigência de leitura. Freud adverte, ainda, que se trata de uma escrita que não se deixa simplesmente ler, portanto, a leitura não pode ser pautada no campo do sentido. Estas indicações de Freud abrem uma via fecunda, que Lacan saberá explorar, no sentido de tratar o inconsciente, não somente na vertente simbólica, como também na real.

Trago ainda, como referência inicial, um texto de Lacan, publicado em alemão, na revista Der Wunderblock, “O bloco mágico”, intitulado– Übersetzung “A tradução” (1978). Neste texto, ele recorre ao texto freudiano, afirmando que o inconsciente é a estrutura e que ela está articulada à língua. Ele afirma, também, que o inconsciente exige a primazia da escrita (p. 12, grifos nossos). A seguir, sublinha que só um sujeito pode fazer uso da língua, no entanto, ele tropeça em um único ponto, uma vez que a língua, como escrita, rateia e não serve à comunicação. Eis o ponto: o sujeito não pode “de modo algum dizer que assim sou eu” e remete, então, ao sentido duplo da palavra em francês, na contramão de Descartes, provocando, com sua releitura da máxima cartesiana, uma reviravolta no conceito de sujeito. Vamos ao texto de Lacan: “eu penso lá “où”, onde “où”, eu não posso dizer que eu sou” (p.12). Lacan acentua que a leitura do duplo sentido, do equívoco da palavra “où”, nos revela a estrutura topológica do inconsciente. Ou seja, em cada fala do sujeito, este aparece como barrado. Trata-se de uma impossibilidade que é estrutural. Esta impossibilidade de dizer leva Lacan a uma definição contundente da Psicanálise: “a Psicanálise se constitui como a ciência do impossível ” (p.12, grifos nossos).

Para reafirmar a vertente de uma concepção do inconsciente como escrita, remetemos à leitura preciosa que Lacan faz do sonho de Freud, A injeção de Irma, o qual, na Interpretação dos sonhos, tem um estatuto inaugural. Destacamos, ainda, que, na interpretação deste sonho, podemos reconhecer tanto uma concepção de inconsciente transferencial – como sujeito suposto saber, articulado à própria natureza do simbólico – quanto o inconsciente na vertente real. Nesse contexto, Freud adverte que a interpretação esbarra em um limite nomeado como o umbigo do sonho. Trata-se de um “(…) ponto onde (o sonho) submerge no Unerkannt, no não reconhecido”[1900 (2019) ]. Lacan (1980), de forma apropriada, traça aproximações com as reflexões de Freud sobre a Urverdrängung o recalque originário. Temos, aí, a constatação de um furo por onde o sentido se esvai. Um ponto limite na interpretação, no dizer. A expressão “umbigo do sonho” remete também, segundo Lacan, à dimensão corporal: o orifício que fecha.

Se focamos na análise realizada por Freud (do seu sonho) podemos constatar que temos, aí, segundo Lacan, um atravessamento da fantasia, o que possibilitou que Freud, a partir de seu desejo decidido, conseguisse enfrentar a angústia e ir além.

Assim, podemos afirmar que, neste sonho de Freud, temos subsídios para avançar na elaboração sobre o inconsciente como Real. Esclareço: no final do sonho, só resta uma derradeira palavra, a letra, a fórmula da trimetilamina – AZ. Trago, a seguir, uma citação de Lacan, bem esclarecedora, a qual só poderemos aprofundar e extrair as devidas consequências tendo como referência o ultimíssimo Lacan. Na interpretação do sonho de Freud, ele chega no ponto no qual “(…) a hidra perdeu as cabeças” e, é aí que emerge, “(…) uma voz que não é senão a voz de ninguém e faz surgir a fórmula da trimetilamina como a derradeira palavra (…)” (p.216).  Trata-se aí de letras sem sentido, pois esta palavra não quer dizer nada, a não ser, como diz Lacan, “que é uma palavra” (p.216). Trata-se de uma criação, de um significante novo. Tomemos, então, no nosso seminário, este sonho e sua interpretação em Freud e Lacan, como emblemático. Tal encaminhamento certamente abre uma via fecunda de investigação, que nos permitirá avançar nas reflexões sobre os destinos da interpretação e suas imbricações com a concepção de inconsciente, compreendido como transferencial e como real.

Neste seminário, propomo-nos percorrer vários momentos do ensino de Lacan, incluindo textos, que compõem o ultimíssimo Lacan. Faremos um retorno a Freud, trazendo subsídios para que possamos delinear um percurso, que vai de Freud a Lacan e, retorna. O Freud do primeiro tempo se articula com o ultimíssimo Lacan, e, por conseguinte, oferece-nos a chave, os fundamentos para uma pesquisa sobre a interpretação na Psicanálise, e nos encaminha a refletir sobre os destinos da transferência, da interpretação no ultimíssimo Lacan.

Portanto, a nossa proposta, para este seminário, consiste em abordar o tema “inconsciente e interpretação”, no intuito de vivificá-lo, considerando o legado freudiano. Entretanto, focaremos, prioritariamente, em Lacan, buscando localizar os vários momentos-chave de sua obra. Escolhemos, então, delimitar estes momentos no texto lacaniano, considerando-os como um fio condutor, Leitfaden, ou, mais especificamente, como o fio vermelho, Roterfaden, que deverá percorrer todo o seminário.

Vale destacar que não há análise sem interpretação. A Psicanálise é uma prática interpretativa. Para que haja entrada em análise e construção do sintoma analítico, é preciso interpretar. Por isso, para Lacan (2003, p. 504), interpretar é um “dever” do analista. Em suas palavras: “Já seria razoável que o ler-se fosse entendido como convém, ali onde se tem o dever de interpretar” (p.504, grifos nossos). Portanto, a Psicanálise é uma prática feita de escuta e interpretação, melhor dizendo, uma prática de escuta, não sem interpretação.

Focando agora no texto lacaniano, delineamos o percurso a ser traçado. Podemos identificar quatro momentos relativos ao tema:

  • 1953-1958 – É um momento vinculado à estrutura da fala: a interpretação como pontuação. Nesse momento, a pontuação é proposta como rompendo a cadeia de significações e abrindo para uma nova significação. É também desse período a interpretação como alusão: o corte surge por separação da significação, mas continua homólogo às formações do inconsciente;
  • 1961-1964 – Com a formalização do objeto a no real, a interpretação aparece como sem-sentido. O corte já não é homólogo às formações do inconsciente;
  • 1968-1970 – Com a estrutura dos quatro discursos, a interpretação surge do discurso do analista, como enigma e como citação. Se o saber se inscreve no lugar da verdade, ambos só podem ser ditos pela metade. Aí, reside a chave da interpretação, que surge como enigma ou como citação. Esta dimensão de meio-dizer, que tem relação com a ruptura da cadeia, tem efeito de interpretação sem significação, que se instala como enigma;
  • 1972 – Tendo em vista que, ao se articular com a letra, a interpretação dá destaque ao equívoco, que se localiza entre S1 e a letra – em outras palavras, o inconsciente dá sentido ao S2 com o S1 –, o Inconsciente cifra e o analista interpreta, mas não da mesma forma. Ele interpreta fazendo enigma, citação ou alusão, separando S1 do S2, em busca do significante carregado de pulsão, operando, por isso, um corte com a linguística e sua concepção mecânica de que a todo significante lhe corresponde um significado, previamente definido pelo Outro.

Resumindo, diríamos que, para Lacan, a interpretação não está aberta a todos os sentidos, porque designa uma única sequência de significantes. O sujeito é quem ocupa vários lugares, a depender do significante sob o qual se coloque, portanto, não se trata de jogo de palavras. Por isso, podemos postular que:

  1. a interpretação não é pedagógica;
  2. a interpretação não é didática;
  3. a interpretação não é sugestiva, e muito menos explicativa;
  4. a interpretação não é imperativa.

A partir disso, pode-se dizer que a interpretação é do detalhe, e não do todo que é da ordem do Universal. Ela desfaz o todo e busca cernir o singular do dizer de cada um. Freud foi um “detalhista”, no sentido lacaniano do termo, donde se pode afirmar que o ensino de Lacan não anula o de Freud, ele muito mais se serviu do que foi ensinado por Freud, em seu gosto pelo detalhe, conforme sua análise do esquecimento do nome Signorelli, para avançar em sua maneira singular de lê-lo. A interpretação não visa o sentido e como afirma Lacan, de forma enfática:  “O sentido, isso tampona. Mas com a ajuda do que se chama a escritura poética vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica (Tradução nossa) ” (1977-1978, p.19).

Neste ponto, podemos apontar a razão e os fundamentos do título deste seminário, que seguirá as pegadas de Freud e Lacan, em nossa proposta de revisitar um tema já muito investigado, mas jamais esgotado e, menos ainda, ultrapassado. Desde Freud, o grande desafio para os psicanalistas reside em manter os princípios diretores da Psicanálise inalterados, porém, é palpável que ela já não é a mesma do início. Isso se deve ao fato de que seu saber nunca está totalizado. Também porque um analista nunca deve se contentar com o já visto ou estudado, com o já estabelecido, posto que é do seu desejo que se trata cada vez que toma a palavra.


Programação

24.05 – Abertura do Seminário: apresentação do argumento “Inconsciente e interpretação: momentos-chave em Freud e Lacan”. Elizabete Siqueira e Glacy Gorski.

21.06 – Interpretação como pontuação e corte. Referência bibliográfica: Jacques Lacan –  Função e Campo da fala e da linguagem. Apresentação: Elizabete Siqueira.

23.08 – Interpretação por alusão. Referência bibliográfica: Jacques Lacan – A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Apresentação: Glacy Gorski.

27.09 – O apofântico na Interpretação. Referência bibliográfica: Jacques Lacan – O aturdito. Apresentação: Elizabete Siqueira.

18.10 – Interpretação no ultimíssimo Lacan.  Referências bibliográficas: Jacques Lacan – Seminário 24. Apresentação: Glacy Gorski.

22.11 – Comentário sobre “A palavra que fere”, de Jacques-Alain Miller, publicado in Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 56-57. São Paulo: Eólia Edições, julho

2010 – Responsável: Glacy Gorski.

– Conversação sobre as interpretações inesquecíveis. Referência bibliográfica: Extratos de depoimentos de passes, publicados na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, nº 25, Buenos Aires: EOL. Novembro de 2018. Coordenação: Elizabete Siqueira.


Referências bibliográficas
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_______ [1900 (2019)] Obras completas: vol.4: A interpretação dos sonhos, Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
________ [1901(2021)] Obras completas vol.5: Psicopatologia da vida cotidiana, Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
LACAN,J.[1953 (1998) ]. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 238- 324.
________ [1954-1955 (1985) ]. O Seminário, Livro 2, o eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
________ [1958 (1998) ]. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 591-652.
________ [1958-1959 (2016). O Seminário, livro 6, o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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_______ [1976 (2003) ]. Posfácio ao seminário 11, In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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_______ [1977(1978) ]. Die Übersetzung. In Der Wunderblock, Zeitschrift für Psychoanalyse, Nº 1, Berlin: Verlag der Wunderblock.
_______ (1980). “Respuesta a uma pregunta de Marcel Ritter”, Suplemento de las notas. Buenos Aires: EFBA, pp.3-6.
MILLER, J-A (1996). Entonces: “Sssh…”, Barcelona: Eólia.
­­­­­_______ [2009 (2010) ]. A palavra que fere. In Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 56-57. São Paulo: Eólia Edições, julho 2010.
WAHRIG, G. (1968). Deutsches Wörterbuch Bertelsmann Lexikon – Verlag, Gütersloh.
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