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Escola e Cartéis: A via do coletivo ao singular [1]

Margarida Elia Assad

Quando aceitei o convite da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio para falar hoje sobre os cartéis, a quem, no nome de Claudia Formiga,  gostaria desde já de agradecer o amável convite, me deparei com o título que daria a essa fala. Depois de pensar um pouco me surgiu abordar o cartel pela via do que, para nós psicanalistas é um desafio, o de como nos posicionar frente ao coletivo. Somos vistos pelo Social, – e temos responsabilidade nisso- , como profissionais de consultório, como se nossa prática se dirigisse aos particulares, no sentido do individual. Assim, gostaria de abordar os cartéis pela via de onde eles surgiram na proposta de Lacan, pois foi exatamente a partir do interesse despertado nele sobre o coletivo de uma experiência inglesa no pós guerra que me surgiu esse interesse pelo tema.

Lacan realizou uma viagem de estudos, de 5 semanas, em 1945 na condição de psiquiatra francês interessado nos efeitos do pós guerra na psiquiatria inglesa. Dessa viagem resultou uma conferência que está publicada em Outros Escritos, intitulada A Psiquiatria Inglesa e a Guerra (1947). Nessa conferência ele faz referências ao livro de Major Reeves que foi diretor da Tavistock Clinic antes da guerra. Lacan se mostra interessado em entender como os militares estavam tratando dos problemas de saúde mental de seu exército  utilizando-se das contribuições da Psicanálise, especialmente no que dizia respeito às identificações e ao narcisismo. Psicanalistas como Bion e Rickman lhe foram bastante úteis nessa investigação da solução inglesa frente aos problemas de desajustes de seus soldados.

O pragmatismo inglês foi enaltecido frente ao realismo francês, ou seja, a guerra, um momento de tragédia social , transformou a psiquiatria inglesa, modificando a hierarquia do exército onde, o chefe ensina e cobra do subalterno, para o estabelecimento de novos laços de interação entre a tropa. Bion cria Grupos sem líder onde uma tarefa era proposta e deveria ser resolvida em colaboração do grupo, e  onde a improvisação era requerida a cada um. O objetivo era comum e era o que dava unidade à equipe. Lacan observa que a identificação ao líder que Freud propunha como forma de união das massas foi substituída pela identificação horizontal entre os membros do grupo, propiciando uma responsabilidade a cada um no anseio de realizar a tarefa que lhes foi proposta. Tal pragmatismo Lacan diferencia de um tratamento adaptativo e nos diz que tratava-se de uma relação verídica com o real. Indicação valiosa para nossa compreensão do lugar para o coletivo que Lacan enxerga nessa experiência .

Laurent no texto  intitulado : O real e o Grupo[2], faz muita referência a essa conferência  de Lacan. Ele lê o que diz Lacan como uma forma de usar esse utilitarismo ingles como uma vitória da razão frente,  não só ao nazismo, como aos poderes mortíferos do supereu .”Si el psicoanálisis está presente en su dimensión de efectividad social es en tanto que instrumento de lucha contra la muerte que opera en la civilización. Ya vemos despuntar la misión que será asignada a una Escuela de psicoanálisis. Ser “una base de operaciones contra el malestar en la civilización”. [3]

A experiência de Lacan nessa viagem à Inglaterra lhe trouxe muitos ensinamentos,  o que de mais relevante foi ter podido tirar  daí uma doutrina para sua Escola. Seu olhar se dirige ao que é do coletivo, ao que restou da destruição da guerra nos homens que, sem recuar frente ao trauma, se organizaram entre si numa relação sem críticas ou cobranças , nos moldes do que a psiquiatria inglesa propôs. O coletivo , Lacan percebe , “não é mais do que o sujeito do individual. ” O que quer dizer essa afirmativa tão eloquente? Quando nos referimos a um indivíduo estamos no âmbito do particular, do que se caracteriza como um todo frente ao meio social. Mas quando Lacan[4] destaca que o coletivo é o sujeito do individual, temos que considerar o sujeito como aquilo que rompe com a unidade do indivíduo, na medida em que como sujeito está dividido pelo Significante, está sob o vazio que essa divisão implica. Assim o coletivo ocupa o lugar desse vazio onde o sujeito do individual supõe um saber.

Freud nos alertara que as identificações, no âmbito das massas, do coletivo,  se dirigem ao Pai que vem a ocupar esse lugar vazio como uma exceção. Uma identificação a um ideal. Lacan vai além, e pensa a questão da identificação como resultado da impossibilidade da relação sexual. Como consequência ele propõe uma outra saída aos ideais, uma identificação sinthomal.

Mas, afinal o que tem tudo isso a ver com os cartéis? Sabemos que na Ata de Fundação de sua Escola, em 1964,  Lacan propõe os cartéis como o meio a ser utilizado para a formação dos analistas.  Tal definição dá aos cartéis uma função muito especial. Cartéis são grupos nos moldes do que Lacan aprendeu com os psiquiatras ingleses e que foi ao encontro do que sua prática com a Psicanalise lhe ensinou: não há Outro do Outro. Logo qual a formação pode oferecer uma Escola que seja distinta de uma Sociedade onde o saber está com os didatas, como ocorria na IPA? Qual a formação para um analista que tire as consequências de que não há Outro do Outro? Como os cartéis podem oferecer uma alternativa a um ensinamento que enfrente o mal estar da civilização? Ao mal estar próprio ao sujeito dividido ?

Propondo uma formação através de cartéis, Lacan oferece aos analisantes de sua Escola uma outra alternativa diferente de fazerem identificações a um ideal que fique colado a Um qualquer, ou como queria a IPA , uma identificação à parte sã do analista.  Os cartéis possibilitam que as identificações sejam dirigidas ao vazio de saber que deve ser manejado pela figura do mais-um. Nesse lugar, o mais-um trabalha no sentido de produzir sujeitos divididos, sujeitos divididos pela busca do saber que não se encontra em ninguém, mas no próprio desejo de saber. A causa é sustentada pelo trabalho, a tarefa a ser cumprida. Cada um entra ali como trabalhador decidido na busca de um saber que não está localizado , e que, pelo contrário, é o furo do cartel.  Uma lógica que subverte a posição de passividade frente ao saber do mestre. Cada cartelizante parte do coletivo da Escola  para produzir um saber, saber solitário mas não sei os outros.  Identificamos aí uma lógica feminina do Não-Todo que faz com que a Escola seja, ela também, furada, devendo ser constantemente  interpretada, para que a formação seja permanente.

É assim que entendo o que diz Lacan sobre a Escola ser um refúgio ao mal-estar. Sendo furada, ela pode tender a sustentar que o saber não é a verdade, e que cabe a cada um se fazer sintoma para os outros, podendo escutar o que o outro lhe transmite com seu não-saber. Um coletivo de sujeitos do individual, um redemoinho de trabalhadores ao redor de um furo.

Sabemos:  A Escola não é para qualquer um! , não é para os detentores de saber, para os espertos ou de sapatinhos alto, como disse certa vez Lacan. Os cartéis tem aí a função de evidenciar que a Escola é composta de cartelizantes, sem meritocracia. Pelo menos esse foi o desejo de Lacan para sua Escola. Ser membro da Escola de Lacan é consentir com a lógica do Não-todo, que se diferencia da lógica democrática que pretende uma igualdade entre os pares. Não se trata de uma lógica democrática, mas de uma lógica que tira consequências do Não-todo fálico, deixando assim aberta uma via para a invenção singular, que permita a cada um fazer  de seu desejo de saber um laço com o outro, e, quiçá,  possa levar a invenção de seu sinthoma.

Trata-se da lógica coerente com a experiência analítica, onde o sujeito é levado à solidão de uma parceria com seu gozo, consentindo com a destituição do Outro. Os cartéis são parceiros de gozo. Quando funcionam bem, ou seja, quando há o compartilhamento de S1s sem S2, mas de S1 dirigido ao ‘a’, eles  trazem alegria e despertam, pois ocupam o lugar de parceiro para o sujeito, funcionam na contingência do encontro com seus pares.

Há outra função dos cartéis que gostaria de destacar. Embora se caracterize como um grupo na presença de um mais-um, esse agrupamento se faz pela fala e pela escuta do que em cada um está fora daquilo que é dito. Assim o mais-um está ali para garantir que essa troca entre os cartelizantes se dê na singularidade do que chamamos a ‘questão’ com que se entra no cartel.  A questão ocupa no cartel o lugar do singular, do sintoma de cada um. Através da confrontação com essa singularidade se evita a universalização do saber circundante no cartel, e se produz o que Laurent chamou de identificação desegregativa, no sentido de evitar que se criem segregados do saber.

Assim penso que os cartéis e, no mesmo sentido, o passe são dois pilares que tratam do coletivo e do singular, um na direção do coletivo ao singular e o outro do singular ao coletivo. Certamente dois pilares enodados borromeanamente, invenção da pragmática lacaniana para a formação de analistas que estejam a altura de sua época. Qual a nossa época? Um  efeito de uma terrível pandemia e de uma tenebrosa ascensão do fascismo, o que exige dos psicanalistas um compromisso com a doutrina freudiana sobre o sujeito e com a doutrina lacaniana sobre o falasser.

Termino citando Romildo do Rêgo Barros num texto sobre os Grupos[5]:

A Escola quer ser mais do que uma instituição de formação de psicanalistas. Nela está contida uma crítica ativa, prática e teórica ao funcionamento social como tal. A Escola é um comentário vivo sobre a democracia, se posso me exprimir assim; é uma instituição que exige a democracia, por ser logicamente posterior ao assassinato do Pai, porém sem se iludir com a igualdade dos irmãos na lógica de Totem e Tabu. A Escola é posterior ao assassinato do pai, sem que com isto signifique a igualdade dos irmãos e o puro domínio da justiça distributiva, que, como vocês sabem, é uma coisa da qual Lacan vai falar criticamente. É uma proposta político-institucional que se coloca num patamar acima do clã fraterno de Totem e Tabu, sem a ilusão de que a família seja um paraíso.

 Obrigada,

João Pessoa, outubro 2021


[1] Texto apresentado na Atividade ‘Manhã de Cartéis – EBP- Seção Nordeste -outubro de 2021
[2]http://cuatromasuno.eol.org.ar/Ediciones/004/template.asp?Logicas-colectivas/Lo-real-y-el-grupo.html
[3] Laurent, E. Lo real y el Grupo. Cuatro+uno.Laurent-%20Lo%20real%20y%20el%20grupo%20_%20Lógicas%20colectivas%20_%20Cuatro+Uno.html
[4]LACAN, J. (1945/1998) “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 213.
[5] Rêgo-Barros, R. Sobre Grupos. 2007. 4 Encontro Americano.http://ea.eol.org.ar/04/pt/template.asp?lecturas_online/textos/rego_barros_sobre.html
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