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Elephant1

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Nohemí Brown

Introdução

Agradeço à Seção Nordeste e à Comissão de Cinema e Psicanálise da Fapol o convite realizado por Késia Ramos, responsável pela EBP na dita comissão. Um convite desafiante para refletir a partir deste filme.

O filme toca em temas muito atuais, dos quais, talvez, pelo impacto dos eventos recentes no Brasil, só poderemos localizar algumas questões e esboçar algumas pontuações.

A pergunta de entrada é: o que podemos apreender do filme? E, talvez, encontrar uma brecha para abrir uma conversa possível para pensar alguns pontos candentes sobre esse o tema que toma a vertente de um sintoma social, os massacres nas escolas. Um tema que, para querer explicá-lo, podemos deslizar por uma lógica que procure encontrar culpados e perder a dimensão da complexidade da problemática. Não é fácil, mas podemos cair em colocar o mal-estar no outro e, com isso, replicar a lógica da segregação. Nosso desafio, enorme é o de poder ler um pouco desse novo real em jogo no âmbito da instituição educativa.

A violência tem tomado novas formas de mal-estar, justamente em um âmbito onde se transmitiriam ideais, valores culturais e sociais, isto é, nas escolas. E a pergunta que me surge de entrada é: por que nas escolas?… Talvez uma pergunta que convém neste momento deixar em aberto, mas já a colocar sobre a mesa. Falamos da declinação social da imago paterna, a declinação dos semblantes de autoridade, sabemos que o lugar de autoridade do professor está questionado há muito tempo. Mas o “por que nas escolas?” é talvez a pergunta sobre o que encarna a escola hoje. Algo que vai além do impossível de educar.

Mas vamos ao filme. Elefante. Parece um título sem sentido.

É um filme forte na atualidade de sua temática, mas não só, também na forma como são apresentados cada um dos personagens. Não há um protagonista, não fica claro quem é o personagem central, mas isso não importa, isto o filme o bem deixa claro. Apresenta cada personagem com seus encontros, laços, interesses, mas também com seus impasses. Isso é muito interessante…

Jonh, o menino, que tem que se fazer de adulto, diante de um pai irresponsável e alcoólatra…

As três meninas “populares” – Nicole, Jordan e Brittany – com suas questões com a imagem e o feminino, cada uma à sua maneira, com seus impasses nas relações, não pode namorar, se deve escolher sempre as amigas, mas com a bulimia como sintoma que as une e as silencia.

Elias, o fotógrafo com seus interesses… mas com pais que não o deixam sair apesar da liberdade que parece ter.

O menino que sofre bullying, Alex, cujo recurso à arte só replica o mal-estar e a frustração da qual padece.

Kristen, a menina da biblioteca que também sofre bullying, mas sofre calada. Se esconde detrás das roupas.

O diretor, com todas as demandas institucionais, tem que lidar com esses impasses. E, em certos momentos, faz vista grossa.

O que me pareceu muito interessante do filme são os recortes, a mesma cena passando desde o ângulo de cada um. Vai dando sentido, entende-se o que acontece, mas ao mesmo tempo, não. Não justifica nem explica.

O diretor Gus Van Sant, neste filme de 2003, retoma o massacre no Instituto de Columbine, em 1999. O interessante do filme em sua construção é que apresenta a monotonia e a vida pacata em um instituto escolar, onde há algo que já não se percebe de tão cotidiano. Os dramas cotidianos serão interrompidos de forma abrupta por um ato, que só no final do filme surge, mesmo que saibamos que vai a acontecer. Também é interessante que o diretor não justifica a tragédia, coloca em cena a complexidade do que está em jogo.

Por exemplo, a facilidade na compra de armas, esperando em casa a entrega pelo correio. Os pontos de estranheza não tomam relevância, não fazem questão, apesar de que chama a atenção do entregador que dois jovens estejam em casa no horário do colégio, não passa disso.

A menina que não usa o short, mas como é uma obrigação usar. E a professora insiste sem querer saber nada mais.

A bulimia, o bullying acontecendo na frente de todos, mas ninguém vê. A violência, o bullying presentes na escola são naturalizados na vida cotidiana de um instituto educacional. Mas, também, naturalizado nos filmes, documentários, videogames.

Uma das coisas que me perguntava é por que o nome Elephant, onde está o elefante no filme? Foi retomando resenhas que pude situar a expressão em inglês “The Elephant in the room”, expressão que faz referência a algo tão evidente, que está ali no meio da sala, mas que não é visto. Não é a sutileza da Carta roubada de Edgar A. Poe que Lacan nos ensinou a ler, de colocar de forma velada o que não se quer ver. Neste caso é o que está ali, de forma estrondosa, mas ninguém quer ver. Fica muito clara na cena do menino, o bombeiro que presencia a agressão de um colega para Alex… que será uns dos agressores.

Mas por que não se quer ver? Isso é o que este filme nos retorna como sujeitos. Como se naturaliza a pulsão de morte sem querer saber dela, sem nenhuma mediação possível pela palavra. A banalidade do mal, talvez possamos situar, a naturalização do mal e sua inconsequência.

Este filme não traz a ideia do doente mental que sai atirando, como muitas das leituras e filmes sobre incidentes como estes tendem a localizar. Mas, uma questão sobre os modos como a deterioração do simbólico se apresenta hoje no laço social. O que fazer? É a pergunta que talvez não possamos responder, nem convém responder rapidamente. Mas começar a ler o que está em jogo. Não se trata de pura crítica, mas de leitura.

Por isso me pareceu interessante esse ponto sobre não saber bem quem são os protagonistas. Não centra o protagonismo naquele que faz o ataque à escola, dá lugar as vítimas. Elas são também as protagonistas, tanto como os que sobreviveram e terão que lidar com o que presenciaram, ouviram ou fizeram diante da tragédia. Nisto o filme é muito sutil e interessante. Não faz uma apologia, na tentativa de criticar ou explicar. Nisto vale destacar o documentário sobre o nazismo que Eric e Alex assistem, ao mesmo tempo em que aguardam as armas. Esse documentário para eles, mais do que explicar, termina sendo uma apologia, um orientador. Acho isso de uma delicadeza impressionante.

Parece também que vários dos atores, todos desconhecidos, usaram seus próprios nomes. O que lhe dá um toque de um realismo que perturba.

Lendo diferentes resenhas sobre o filme, uma das leituras sobre o porquê do título é a referência à parábola dos sete cegos diante do elefante, tentando descobrir o que é, a partir de ângulos diferentes. Cada um fica com sua verdade, nós como observadores, poderíamos completar a cena. Pode até ser, mas dá a ideia um tanto equívoca de que se pode conhecer o todo através das partes. Mas é justamente o ponto cego, do que escapa, do que não se vê, mas que se faz presente de forma maciça o tempo todo no filme, o que, a meu ver, torna-o fundamental. Não é pela via das partes que se conhece, há um ponto cego, um ponto do qual não se quer saber e que está em jogo.

Neste sentido, me parece relevante a reflexão que Miquel Bassols[2], um analista espanhol, faz com relação ao Bullying.

Uma ideia sobre o bullying

O que é o bullying? Bassols o coloca de uma forma interessante, é um termo que tem passado ao discurso comum, atravessando línguas e países, classes e tribos diversas. Podemos admitir este termo como um sintoma daquilo que há de inominável de uma violência onde se esperaria a melhor consciência pedagógica, isto é, nas escolas. Parece-me interessante, porque nomeia algo do inominável da violência no espaço escolar. Ao colocá-lo assim, de certa forma, o esvazia de sentido. Isto é, faz o contrário do que faz o discurso comum, que é encher de sentido o que bullying quer dizer.

Inclusive, traz a raiz do termo.

Bully – o machão, valentão. Quem intimida, acossa ao mais frágil.

O curioso é que, assim como unheimlich, bully tem outra conotação, que vem do holandês do século XVI e tinha o sentido de amante, do querido ou querida, do cavaleiro feudal. É no século XX que tomou o sentido de abuso repetido, físico ou verbal. Daquele que acossa, alguém que se acredita com mais poder que seu objeto. Podemos considerar este deslizamento de sentido como pura contingência, mas Bassols nos propõe ver nisso a lógica do inconsciente que impõe os usos do significante e os efeitos sobre cada sujeito. Ele se pergunta: se o bullying seria uma manifestação da demanda de amor que não se sabe de si mesma, que não se pode afirmar mais do que no abuso do poder exibido diante dos outros sobre seu objeto, igualmente impossível de reconhecer como objeto de amor? O bully precisa manter a qualquer preço o vínculo com o acossado no interior da lógica de grupo. Uma forma de reconhecimento, com sua presença irredutível, do vínculo que constitui ao grupo, a partir de uma segregação que deve se manter no próprio interior. O bullying como uma lógica de grupo que se sustenta porque em seu interior está, como condição para que se mantenha a segregação. Não coloca fora do grupo, mas no interior.

O que fazer, então? Essa é a pergunta com a qual nos confrontamos diante deste fenômeno. Seja desde o lugar daquele que ensina, como do familiar, como do acossador ou o acossado. Bassols propõe abordar a questão pela vertente negativa. Isto é, “desvitimizar” a vítima, devolver sua condição de sujeito ali onde participa sem querer nem saber, desde o lugar onde se joga a lógica do grupo e suas três identificações. Em outras palavras, interrogar os outros dois lugares de sujeito de gozo: o do acossador em sua demanda de amor-ódio e o do observador na satisfação que o confirma como parte integrante da cena.

A leitura de Bassols me parece interessante, pois permite localizar que a cena se sustenta entre três lugares, três identificações das quais não se quer saber, para ler a lógica da segregação na manutenção de um laço tirânico.

Retomando o filme Elefante, o diretor consegue nos colocar no lugar do observador, sem que percebamos de entrada. Nos faz participantes da cena.

O filme nos coloca dentro da cena, vamos acompanhando a cada personagem. Vemos a situação desde sua perspectiva, somos testemunhas dos impasses e dos atos realizados. A ideia de perspectiva é interessante. O diretor usa belamente sua técnica.

O filme termina, justamente, com Alex procurando por Nathan, o bombeiro que foi testemunha da agressão do colega, e o encontra na geladeira com a namorada. “Você não viu? Você viu, não quis saber, não quis dizer algo?  Era tão evidente e não quis ver” é o que está em jogo nessa cena silenciosa. Tinha um elefante no quarto, mas se fingia que não estava.

Na era do Show

Uma questão mais para nossa conversação: que valor tem a divulgação nas redes de uma tragédia anunciada? O que chama a atenção… Isso não está no filme, mas sim em um dos autores do massacre no Instituto em Columbine. Ele tinha postado e criado um blog anunciando suas intenções.

A escola tem se tornado um cenário mediático de tragédias. O uso das mídias como um massacre anunciado. Em redes se publicam pensamentos, intenções que de certa forma ninguém vê. As vezes na modalidade de um testemunho. A ideia de regular as fake news e certos incentivos à violência, por parte do Estado, parece ser uma forma de introduzir, um certo olhar jurídico – que é um dos discursos que regulam a vida em sociedade – para esse elefante que ninguém quer ver nas redes. Neste sentido, não é só a massacre, mas uma certa forma de inscrição do ato horrível na rede. É uma certa inscrição em um laço atual – o virtual – que pode ser uma opção em certos sujeitos ou em momentos nos quais para um sujeito o laço social está com serias dificuldades. Mario Goldenberg coloca uma hipótese que podemos pensar e que me permitiu pontuar esta pergunta que me fazia sobre o valor do registro nas redes sociais: “a realização de uma fugaz fama, pode ser qualquer uma, mas que em alguns sujeitos nos quais os laços com os outros estão perturbados, o discurso mediático lhe permite inscrever, mesmo que com um ato horroroso, sua existência”.[3]

A questão é mais complicada, pois não é só o registro. Hoje, o que temos acompanhado no Brasil é o empuxo que alguns sites ou redes têm para este tipo de atos.

E a instalação de câmeras nas escolas, é uma solução diante disso que não se quer ver?

Parece uma ironia: isso que não se quer ver, se quer vigiar. Como se vigiar fosse de fato um olhar o insuportável. O olhar de vigilância como uma resposta ao que não se quer ver, a isso que perturba o laço, o que é insuportável e está no centro do laço social vem só reafirmar esse ponto de cegueira.

Estamos na época da exigência de transparência absoluta. Onde tudo pode ser visto, sabemos que a tecnologia avança neste sentido, contra a intimidade, a privacidade e o secreto. Que lugar para a opacidade, para isso que não se pode ver, mas que incomoda? Que se faz presente.

Por outro lado, implica colocar os alunos ou professores sob suspeita, isto é, colocá-los como sujeito suposto assassino, suposto criminoso. A questão que se faz presente é: seria uma solução ou um empuxo a um lugar para quem está na fragilidade do laço?

E para terminar minha fala, quero trazer um ponto que espero possa abrir para a conversa. O que o filme traz são os diferentes modos do mal-estar na infância e adolescência, que tomam as formas mais diversas. Nos consultórios nos chegam crianças e adolescentes em sofrimento, mas o que se apresenta antes do sofrimento são atos. Extrair o sofrimento para que deles possa se fazer um trabalho analítico é um aspecto fundamental da clínica. O sofrimento ou mal-estar muitas vezes se silencia através das classificações TDAH, autismo, transtorno opositor etc. Torna-se uma resposta privilegiada para tratar o real que o causa. Diante dessas classificações o sujeito fica mudo, oculto por trás da categoria nosológica, como testemunham as crianças e pais que consentem a um outro encontro, com o analista diante disso que lhes perturba, lhes exaspera e lhes torna terríveis.

Propor uma categoria fechada é uma forma de impedir que o falasser, o sujeito e seu corpo falante testemunhe um real ao adotar um discurso pronto (prêt-à-porter) para velar dessa forma sua singularidade. Esta operação se reforça no uso excessivo da medicalização na infância. O que me parece que o filme nos traz como pergunta fundamental é: como não ficar cegos frente ao mal-estar na infância que se apresenta nas instituições? Que elefante é esse que está no meio da sala de aula, na família, na vida? Essa é uma questão que fundamental para que um trabalho clínico com a criança e adolescente seja possível, mas também com os outros. Sabemos que quando nos dispomos a atender uma criança, não é só a criança ou adolescente. São os pais, os professores, os psiquiatras que também estão no horizonte.


1 Texto apresentado para a conversação sobre o filme Elephant, por Nohemí Brown, convidada da atividade Cinema e Psicanálise.
2 BASSOLS, M. Palabras preliminares. In: Goldenberg, M. Bullying, acoso y tiempos violentos. Lecturas críticas desde el psicoanálisis de orientación Lacaniana. Buenos Aires: Grama, 2016, p. 9-11.
3 GOLDENBERG, M. Violencia, escuela y la subjetividad contemporánea. In: Goldenberg, M.  Violencia en las escuelas. Buenos Aires: Grama, 2011, p. 11- 22.
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