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“É tudo menina!” – fazer laço, fazer família nos arranjos da sexuação

UNI DUNI TÊ – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças e Adolescentes – Paraíba [i]
Relatora: Sandra Conrado

Se Freud não tivesse estendido às crianças o direito ao trabalho com o inconsciente, como poderíamos ter acesso ao que, do lado delas, a pergunta sobre o sexo já fixa muito precocemente: o encontro com a falta, com seus impasses e com a pergunta sobre quem são seus pais, com os quais elas tanto contam para se assentar na vida?

Ao encontro da criança com seus pais chamamos de família, encontro transitório que não vinga por muito tempo como “sua majestade, o bebê”, se tivermos em mente o fracasso inscrito na ordem de um descompasso imposto à criança na função de condensador de gozo, com o qual terá de se haver perante o casal parental.

Já está na sua pré-história a marca de um desejo anônimo, no qual, na sua história ela se verá capturada na forma de um mal-entendido. E experimentará nas suas futuras atuações as tentativas de se arranjar com um sintoma.

Estamos em um mundo onde tudo existe, a relação sexual, a mulher, em forma de projetos delirantes que tentam naturalizar o sexo como significante que nomeia a divisão. Sabemos que esses projetos e suas tendências ao propor o paraíso desejado, podem ser abalados. Não pelo real que Freud e Lacan introduziram nos seus ensinamentos necessariamente, mas pelas próprias crianças que parecem lidar com ele em seu desvelamento. Uma família pode viver eternamente seu mal-estar diante desses projetos; outras podem se exasperar, mas o que ambas mantêm é um gozo desmedido onde as crianças ocupam hoje o lugar de para além do objeto a, tornando-se “figurinhas” terríveis, debaixo do mesmo teto, até que a casa caia ou até que a morte os una (parafraseando, aqui, Chico Buarque).

Segundo Laurent, na sua Conferência sobre A análise de crianças e a paixão familiar, “a família ideal é uma família sem crianças, já que quando ela aparece, o círculo familiar explode e se fragmenta”.[ii]

Duas indicações preciosas de Laurent, ainda nesse texto: a primeira diz da posição do psicanalista de proteger as crianças dos delírios familiares e a segunda, a certeza de que podemos contar com elas (as crianças) para seguir nossa orientação no discurso.

Se as novas ficções insistem em apagar o real do sexo, o encontro com o analista pode ajudar a criança a trazê-lo de volta, pois diferente do encontro com a família, o psicanalista é aquele que não abre mão do real em jogo que o sujeito- criança terá que operar nas novas formas de se fazer família, quando, sobretudo, segundo Laurent, “elas não têm mais um papai e uma mamãe, como os demais.”[iii]

Joana, quatro anos, opera com o gozo de não seguir as regras, se reconhecendo como chata e pesada, significantes dos pais. Seus desenhos se limitavam à mãe, ela e a analista. A mãe aparecia sempre grande e feia, segundo ela. O pai fica fora. A analista interroga: porque sempre esse desenho? Ela responde: “o meu pai disse que pode ser sempre ingual” Ingual passa a ser o significante de referência ao pai. Joana não tem dificuldade de pronunciar igual. Ingual só aparece em alusão ao pai. Brincar ingual ao meu pai, sentar ingual ao meu pai, etc. Na impossibilidade de ter filhos, o pai diz que Joana foi concebida por uma “inseminação no método caseiro”.

Na falta de clareza do enunciado perante a analista, a mãe esclarece ser ele, o pai, um homem trans. Numa outra sessão, Joana diz a analista que colocará o pai no desenho. A analista interroga: “seu pai?” Ela: “Não, o pai”. “O pai de quem, pergunta a analista?” Ao que ela responde: “Não sei. Você tem barba?”

Surge o interesse de saber o que há por baixo das roupas de um cavalo de brinquedo e começa a separar o que são homens e o que são mulheres. Ela é sempre mulher e a analista é sempre homem, as mulheres sempre grandes e os homens pequenos. Revela a analista ter visto o pai de biquíni. Surge uma inquietação – parece querer saber (ou dizer?) – vivida nos jogos de quebra-cabeça que não consegue montar. Faltam peças. Da intervenção da analista de ser difícil montar quebra-cabeças quando faltam algumas peças, produz sonhos com dragões e seus ovos e um medo de estar sozinha. Outras questões aparecem: medos de coisas que não sabe revelar, sonhos com coisas ruins, medo de quando era bebê e a queixa da mãe que não muda de casa. Sobre “há coisas que não mudam”, dita pela analista, ela revela um medo: “estou com medo do meu pai, de dizer a verdade”. Sobre a verdade, responde: “de perguntar”. Fala baixinho ao ouvido da analista que está com vergonha de mostrar um vídeo do pai.

Na sequência dessa sessão constrói uma família: as barbes, o cavalo – seu bebê – ela e a analista (estas, primas), destacando que não tinham pai. Sobre não ter pai, ela diz que os filhos só têm mãe, revelando por fim: “É tudo menina!” Ao construir essa família Joana se apazígua.

O que se operou para essa criança? Joana encontrou em suas atuações uma forma de experimentar a diferença sexual para além da anatomia, ali onde ela encontra consequências na formalização de sua posição de gozo como sintoma do casal parental. Joana afronta, disputa, cria conflitos e até obedece, mas não segue as regras. Algo fracassa. “O pai”, não seu pai, seria uma forma de Joana fazer vacilar um semblante que poderia sustentar seu desejo de menina?  É na analista que ela busca uma barba, é na analista-menino que ela brinca de ser menina, é no cavalo que ela procura o símbolo fálico, é na presença da ausência materna que ela desenha dragões e ovos.

O que Joana procura por baixo da roupa do cavalo? Um significante que possa organizar seu gozo? Um jogo de peças que ali está e não está? Ou o que, da disjunção homem e mulher, possa ser operado por ela diante do que fracassa na imagem do biquíni? Qual é seu impasse?

Daniel Roy nos coloca uma pergunta: a identificação sexual não está sempre em crise e nos alerta para a garantia de que a psicanálise possa fazer ressoar na prática analítica as inibições, os sintomas e as angústias, na medida em que eles possam ser muito bem respostas e defesas, face aos momentos de crise, em que se vê abalada a identificação fálica que sustentava as crianças até então.[iv]

No final das contas, a queixa de Joana não é necessariamente de seu pai trans, ela o ama, disputa o amor dele com sua mãe. A questão que se coloca e que no Núcleo nos propusemos a pensar segue a linha do que nos traz Daniel Roy: como contemplar o saber da criança sobre a diferença sexual diante dos semblantes que fracassam, pois que estão sempre em crise? Como, no encontro com o analista, a criança pode se apaziguar no desejo do Outro criando, ela mesma, suas ficções em relação a sua identificação sexual?

Joana se arranja. O pai está lá, em algum lugar. O que em sua análise ela pôde operar foi a condição de saber jogar com os significantes, onde, na partida com a analista ela é sempre a menina que tem um bebê e uma família de meninas. Segundo Brousse, “o sexo é um efeito de dizer e com ele deixamos a pergunta: quais palavras, hoje, as crianças escolhem para dizer de seu pertencimento? Elas têm teorias sexuais novas?” [v]

Então, o que acolher das novas teorias das crianças em relação à matéria da sexualidade, tão forçada pelas novas convenções sociais em apagar sua diferença? O significante in-gual coloca Joana num impasse que ela mesma equivoca pelos efeitos da linguagem. Com seu in, negativiza o igual para operar suas pesquisas e constatar, na diferença sexual “É tudo menina!, seu pertencimento na família.


[i] Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente João Pessoa-Paraíba
Participantes:  Sandra Conrado (Coordenadora/relatora), Aline Fonseca, Ana Claudia Vasconcelos, Andressa Guimarães, Ariadne Meira, Gabriela Ramos, Isadora D´Andrea, Léa Vieira, Ligia Guimarães, Marilia Moura, Paulo Medeiros, Shirley Lira, Ubiratan Pereira
[ii] Laurent, E – Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana, Belo Horizonte, Sricptum Livros, 2011, p 38
[iii] Idem, p. 41
[iv] Roy, D –  Quatro perspectiva sobre a diferença sexual – http://ciendigital.com.br/index.php/2019/11/17/o-buraco-negro-da-diferenca-sexual/
[v] Brousse, M-H – O Buraco Negro da Diferença Sexual
http://ciendigital.com.br/index.php/2019/11/17/o-buraco-negro-da-diferenca-sexual/
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