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Do desenho ao corpo: uma lição sobre o enigma da sexuação em Laerte-se

Karynna M. B da Nóbrega[1]

Eu não me considerava mais alguém dentro da linguagem masculina. Laerte

O documentário Laerte-se (2020), dirigido por Lydia Barbosa da Silva e Eliane Brum, em 1h e 40 minutos, exibe como a cartunista e chargista Laerte Coutinho tornou-se uma mulher, depois de cinco décadas como homem. Na primeira tomada de cena, Laerte apresenta uma vacilação em aceitar ou não fazer o documentário, menciona não se sentir pronta. A diretora e roteirista propõe um outro lugar para a realização da filmagem, para que haja o documentário. Esse é construído entre conversas, troca de olhares, desenhos, fotografias e silêncios.

Circulando pela própria casa, do sofá da sala de estar à cozinha e nos espaços fora de casa, Laerte nos convida a conhecer o seu infinito particular. Interpreta que a morte do filho, foi uma faísca para o início da transição de gênero. Menciona que vive a mudança corporal de uma maneira alegre, diferente de outros casos de trans que são marcados segundo ela, por uma aflição para com o corpo. Fala que contou com o apoio da família e do Outro social. A mãe recebeu a notícia com humor, ofereceu saias se ela quisesse usar. Laerte desconfia que a mãe não entende o processo, já que ela é bióloga e a concepção de vida para a biologia segue uma outra lógica. Diz que os filhos têm uma boa cabeça, e a partir de um combinado com o filho, permite que o neto continue a chamando de vovô, também a manicure continua se referindo a ela, no gênero masculino e ela aceita.

No documentário, Laerte ora fala, ora desenha, expõe as produções e invenções, menciona como se dá o processo criativo, como cuida do corpo de mulher fazendo as unhas, maquiando-se, provando vestidos, ela trabalha, cuida da casa, vai ao casamento da filha, a casa do filho, brinca com o neto e com os gatos. Enfim, mostra a rotina e o cotidiano com simplicidade e alegria. Com Laerte, a transição se iniciou com a transformação do personagem Hugo em Muriel, depois com o uso de roupas e acessórios femininos que aconteciam nos finais de semana. Em seguida com a retirada dos pêlos das pernas. Diante da nova imagem no espelho, experimentou uma sensação genuína de alegria, e leveza. Ao tornar-se mulher: pulou de alegria.

Laurent (2021) na conferência proferida no ENAPOL- intitulada: A promessa do novo no amor  menciona a orientação e indicação clínica dada por Miller de que esse ano fosse dedicado ao Trans. Revela que há um modo específico do gozo trans. Cito: “…Há uma paixão pela autodeterminação do sexo, paixão pelo self made, pela mudança, pela reversão da mudança e querem inscrever esta possibilidade nas leis que permitem a mudança de estado civil, sem necessariamente acompanhá-la de um tratamento hormonal-cirúrgico…” Com isso, Laurent esclarece a dimensão do gozo da mudança. Na língua portuguesa o prefixo trans indica o além de, o para além de, que remete a uma transição, uma mudança por um lado e por outro remete a uma ultrapassagem de limite, a passagem para o outro lado.

Em Laerte percebemos esse encantamento pela mudança, alegria e entusiasmo vivenciado por ela diante da nova imagem no espelho. No documentário menciona que não fez terapia hormonal, nem cirurgia, contudo,  as vezes pensa em colocar peitos, não mudou o nome próprio e se nomeia como sendo uma mulher trans. Cada vez mais se sente uma mulher.

Miller (2010, p.16) em Mulheres[2] e semblantes esclarece que: “…são as mulheres que lembram aos homens que são enganados pelo semblante e que as mulheres são aquelas que são mais próximas do real. ” As mulheres revelam que o falo não é todo, há um gozo outro, além do falo.

Em Sobre a clínica do corpo falante: sexuação, diferença sexual e relação sexual, revisitando Freud, Lacan e Miller, Santiago (2021) nos alerta sobre a questão do gênero e indica que tem relação com o uso dos semblantes ofertados pela cultura e com o modo de gozar do falasser, efeito da ressonância da língua que toca o corpo.

Para Lacan em O pior (2012) gozar é usufruir de um corpo e que, graças a marca deixado pelo significante que nos tornamos sexuados. Ao problematizar a dimensão do gozo feminino se servindo da lógica matemática e da filosofia, nomeia o gozo feminino como sendo duplo, uma dimensão não toda sujeita a função fálica, ou seja, relacionando para uma dimensão significante e outra da pulsão (p.101). Assim, o modo de gozo feminino está para além da lógica edipiana, escapa a significação e remete a um saber fazer com o vazio. Em Mais ainda (1985) problematizou os modos de gozar apresentando uma distinção entre o gozo fálico, que toca no significante e o gozo não todo fálico, como sendo da ordem do Um: um saber fazer com o real.

O que o documentário Laerte-se ensina sobre o enigma da sexuação? Vimos que a transição se deu a partir do personagem Hugo que se tornou Muriel, e do uso das vestes e roupas e acessórios femininos. Primeiro foram as roupas, depois a retirada dos pêlos, o despertar da nova imagem diante do espelho, a alegria e leveza diante da liberdade de ser mulher. A linguagem, a obra, o nome, o corpo e a casa são percebidos por ela como uma inadequação. Metaforicamente diz que se serve das gambiarras. Laerte nos ensina que diante desse confronto com o real do sexual é impossível tirar o corpo fora, mas que não é só isso. O que é ser mulher? É ter ou não ter peito? É ter um nome? É não ter pênis? O falasser encontra solução singular para lidar com o gozo do Um, mostrando como cada um na sua singularidade possui um modo de gozar que não corresponde a dimensão de uma  normativa. Nas palavras da Laerte: “A vida humana é para ser boa, independente do gênero.”


Referências: 
SANTIAGO, J (2021) Sobre a clínica do corpo falante: sexuação, diferença sexual e relação sexual Em:  https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2021/sobre-a-clinicado-corpo-falante-sexuacao-diferenca-sexual-e-relacao-sexual/
LACAN, J.  (1985) O seminário Mais ainda Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J.  (2012) O seminário, livro 19…o pior Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LAURENT, E. (2021) Conferência: A promessa do novo no amor apresentada durante o ENAPOL-  O novo no amor. Modalidades contemporâneas dos laços” nos dias 8, 9 e 10 de outubro.
MILLER, J-A Mulheres e Semblantes II Revista Opção Lacaniana Online nº 01 marços 2010 ISSN2177-2673 Em:  http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_ii.pdf

[1] Correspondente da Seção Nordeste- EBP. Professora Adjunta da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise de Orientação Lacaniana (LAPSO/ UFCG) Participante do observatório infâncias- FAPOL
[2] Em psicanálise há uma distinção entre o feminino e a mulher, o primeiro remete ao modo de gozo específico que se situa para além do falo. 
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