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Corpos e discursos

Patricia Badari

“Quero ficar no teu corpo feito tatuagem (…). Quero brincar no teu corpo feito bailarina (…). Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva (…)”. Escreveu, cantou Chico Buarque, em sua letra de música Tatuagem, de 1973.

Mas, mutatis mutandis[1]. Multiplicidade dos gêneros, diversidade das identidades e dos objetos sexuais. Transformações de um corpo em outro. Fatos que estão dados em nossa atualidade. E as práticas amorosas não passam ilesas. Mutatis mutandis, também.

Lacan, em 1960, em seu texto Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina nos diz sobre “as incidências sociais da sexualidade feminina”[2]; e Christiane Alberti, ao retomar este texto de Lacan no X ENAPOL, ressaltou que a “‘instância social da mulher’ traça um caminho para além da norma masculina e transcende a ordem do contrato”. E acrescentou: “o ensino que Lacan extrai do movimento das Preciosas mostra que, em nome de um novo discurso sobre o amor, esses círculos femininos introduziram, uma a uma, com sua invenção singular, modificações duradouras na linguagem até o ponto de marcar toda a sociedade nessa vertente erotomaníaca. O gozo feminino, que se apresenta sob a forma erotomaníaca, afeta a civilização como um todo, para além do laço propriamente amoroso e sexual. Neste sentido, o que tende a ir além dos limites de uma conformidade sem visar o ‘todo’ e o ‘todos’ está impregnado de feminilidade e contraria a relação homogeneizadora das comunidades masculinas. A letra que feminiza marca o social com seu selo”.

Poliamor, relações livres, trisal, orgias… bem como as “não práticas” que não deixam de ser práticas: herbívoros, celibatários, assexuados… Mudanças que estão dadas – fatos consumados. E a psicanálise não é indiferente aos efeitos destas mutações sobre os modos de satisfação e os novos sintomas que podem daí advir.

Uma das leituras que podemos fazer destes fatos é que parecem vir demonstrar, de modo cada vez mais claro, o que Lacan formulou no seminário Mais, ainda e que Jacques-Alain Miller retoma a propósito do sexto paradigma do gozo[3]: o gozo é um fato! Só há gozo, gozo Uno, separado do Outro, um gozo não endereçado ao Outro.

Há o gozo do corpo que se goza que não é da ordem do ser e do que seria a relação sexual se ela existisse. Há o gozo do corpo que se goza, mas que é da ordem do existir. E o que pode fazer a relação do Um sozinho e o gozo é o sinthoma. O sinthoma repercute essa estrutura, essa relação do Um sozinho e o gozo. E se os discursos, os semblantes variam, o sinthoma não, ele repercute a mesma estrutura.

Logo, podemos escutar, juntar, acompanhar as variações da ontologia do discurso de um paciente – variações daquilo que toma sentido para cada um. Mas, depois esse sentido desbota, enfraquece, desvanece.

Do “insucesso do Inconsciente” de escrever a relação sexual que não existe e que valeria para todos. Do insucesso do lugar do ser onde se alojam as ficções só se chega à verdade mentirosa. E ao que não existe, a ficção e o discurso podem dar sentido. Mas, um ser e a existência fazem dois e não um.

Podemos deduzir que temos hoje uma diversidade de interpretações, sentidos e significações sobre o ser. Mas, “o ser é também equívoco por estar ligado ao discurso, ao que é dito”[4]. Podemos dizer que os semblantes desses seres de linguagem podem mudar, podem surgir novos modos de gozo, novos discursos, inclusive, sobre o amor – significações equívocas e variáveis para fazer aí, no nível do discurso, com que haja relação sexual. O ser depende do discurso. No entanto, “não há discurso que não seja semblante”.

Estas mutações, das quais falamos, parecem colocar a céu aberto o enfraquecimento do Nome do Pai, a inconsistência do Outro e da significação fálica… Ou seja, demonstram mais e mais a não relação do significante e do significado, a não relação do gozo e do Outro, a não relação do homem e da mulher “sob a forma de A relação sexual não existe[5] que muitas vezes é levada às últimas consequências.

E tal como Miller nos diz, que o seminário Mais, ainda é o seminário das não relações, podemos dizer que estes fenômenos são fenômenos das não relações e, de certa forma, generalizadas. Todos os semblantes que existiam como certos organizadores, estruturantes e condicionantes caem por terra, tornam-se meros conectores do laço social e até mesmo do laço sexual. Assim, poderíamos nomear estes fenômenos de práticas, pois se não têm elementos estruturantes que os articulam, que prescrevem lugares, que produzem efeito de sentido, dependem de uma prática, de uma experiência diária e inventiva.

Mas, talvez, tais experiências acabem por nos revelar que elas são, tal qual em outros formatos de práticas amorosas, o encontro com o que de fato é a verdadeira parceria do sujeito: as formas da contingência de seu gozo[6] que ele, que cada um vai encontrar naquele(s) ou naquela(s) parceira(s) ou parceiro(s) que para ele parece ser necessária(s) ou necessário(s).

Eis o gozo Uno, o gozo disjunto do Outro, mesmo com múltiplos objetos sexuais, mesmo com práticas variadas. Daí, mais uma vez, podermos ver o impasse que é para todo falasser: o gozo sexual do Outro como ser sexuado, o gozo de um Outro corpo diferentemente sexuado, já que o gozo como tal é sempre Uno, independente das práticas amorosas e de o sujeito se contar como homem, mulher, bi, trans, herbívoro, etc.

No entanto, cabe nos perguntarmos: o que viria fazer laço entre dois, três, quatro… seres sexuados e, sobretudo hoje. O que viria fazer laço nestas práticas amorosas? Constituírem-se em supostas “comunidades de formas de gozo”[7], nas quais se põem de acordo com o valor das palavras e compartem uma forma de vida; tendo o discurso como princípio do laço social, pode ser uma tentativa de laço. Mas, geralmente o que vemos é a multiplicação dos Uns, acompanhada de sua pluralização e a fixação, repetição e escravidão do falasser em relação ao significante amo que o representaria verdadeiramente nestas supostas comunidades.

Uma causa comum, traços que se assemelham podem fazer comunidade, podem fazer grupo para que o “nós” se faça escutar e tenha seus direitos nos diferentes níveis de poder. No entanto, será isto que Lacan irá trabalhar, ao final do Seminário 19 sobre o racismo de irmãos. Relação entre os iguais, os quais se identificam a partir de um traço comum. Mas, isto pode levar a novas formas de racismo e segregação, já nos indicou Lacan.

Mas, quais as saídas possíveis para que estes novos significantes mestres não ampliem ainda mais os processos de segregação? Uma orientação que propõe a psicanálise é um reviramento do discurso do mestre. Uma saída que não é gerar, mais e mais, ad infinitum, grupos sociais e tampouco Um-dividualismo (“a ascensão ao zênite do ego no mundo moderno, o sujeito se auto nomeando, o sujeito que tem sua autonomia, o sujeito auto engendrado, auto determinado, etc”[8], como nos diz Brousse).

Do que se trata na psicanálise é visar o Um-sozinho e não o Um-dividualismo.

Somos “animais doentes do próprio gozo”, nos diz Miller[9], e os discursos de ódio, de racismo, segregativos evidenciam mais e mais do que somos doentes.

A diminuição da incidência do discurso do Outro e o real da ciência tomando a cena cotidiana são nossa realidade hoje. Vemos isto no que diz respeito às tradições no nível simbólico, no que diz respeito ao corpo e ao gozo corporal. Vemos o humano reduzido às células, ao espermatozoide e ao óvulo e o impasse que é o corpo do Outro sendo deixado de fora[10].

Dadas todas estas mutações na civilização, “a significação fálica fica mais e mais separada do Outro e vemos mais fenômenos de gozo do corpo; mais multiplicação dos objetos, das identidades sexuais e intervenções no real do corpo para dar suporte ao simulacro da sexualidade e localizar algo do gozo”[11].

Nestes termos, o que Lacan chamou de sexuação – a assunção do sujeito ao seu próprio sexo – e que supõe uma implicação subjetiva do sexo, mais além das determinações biológicas, torna-se ainda mais problemática em nossos dias.

Se a sexuação depende do significante fálico e como o sujeito se posiciona a respeito de tal significante, se consente ou o refuta[12], na medida em que este significante fica mais separado do Outro, observamos a multiplicidade das significações do falo para significar o desejo e dar ao objeto sua significação sexual e, até mesmo, transformações de um corpo em outro são observadas.

Estas mudanças trazem novos questionamentos à psicanálise e aí está toda a atualidade do último ensino de Lacan, pois ele muda a perspectiva da prática psicanalítica. Ao tomarmos a vertente do corpo falante, que implica na disjunção do falo como significante e o gozo do corpo, se requererá de cada ser falante que precise as coordenadas a partir das quais acederá em sua posição sexuada diante do corpo vivo.

Para a psicanálise, a sexuação como efeito do discurso analítico diz respeito a uma eleição em função do real ao qual cada um está confrontado, para além dos enunciados petrificados. E esta é a escolha que tem que ser feita por cada sujeito e de modo mais individual, solitário e diversificado, em nossos dias[13].

“O ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo… e de alguns, é neste sentido que há eleição”, nos diz Lacan[14]. O que implica para todo falasser a experiência de gozo e sua inscrição, justamente onde não há um correspondente subjetivo.

As práticas amorosas, as “poli-práticas” podem inscrever a experiência de gozo de um sujeito. Podem ser o modo pelo qual o falasser pode passar pelo corpo do Outro, para que haja aí o encontro de dois corpos falantes, que é sempre hétero seja ele de qual sexo for – do mesmo sexo, diferente ou múltiplos.

Um sujeito pode seguir firme em sua singular forma de gozo, daí a comunidade e casal poderem variar ao infinito. No entanto, ele ou eles nos fazem ver que o gozo não faz comunidade, só supostamente.

Estes corpos em excesso. Corpos marcados por signos, por classificações anônimas podem constituir uma organização. São tentativas de soluções que nos apresentam alguns seres falantes. No entanto, cabe-nos perguntar: haveria aí a possibilidade da produção de um sintoma? Um sujeito se interrogaria sobre o mal-estar em seu corpo e o gozo que o habita? Ou só fariam “crônicas de viagens ao país do gozo”[15]? Relatos sobre as diversas maneiras em que o gozo marca o corpo.

Só poderemos ver sujeito por sujeito, falante por falante! Pois, poderá haver uma inscrição contingente em uma destas viagens!

Mais mutatis mutandis

Mas, mais mutatis mutandis. Mais mudanças se avizinham?

Se iniciei minha fala com Chico Buarque: “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem (…). Quero brincar no teu corpo feito bailarina (…). Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva (…)”. Podemos dizer que esta inscrição da tatuagem talvez tenha mudado em decorrência das “incidências sociais da sexualidade feminina”[16]. Veremos!

Mas, também podemos dizer sobre as tatuagens, com as quais cada sujeito, em sua singularidade e seu modo de viver a pulsão, “escreve, ao modo de uma inscrição simbólica, no real do seu corpo. (…) E em alguns casos, as tatuagens são artifícios para se fazer um corpo ou como modo de enlace com o Outro”[17].

Retomo o verbete Tatuagens de Letícia A. Acevedo, em Scilicet: O corpo falante. Ela nos traz com Lacan que “(…) a libido é o órgão irreal ‘essencial para compreender a natureza da pulsão”, e “uma das formas mais antigas de encarnar, no corpo, esse órgão irreal é a tatuagem, a escarificação. O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de nele situar o sujeito’ (Seminário 11. P. 195). Lacan assinala que além de ter a função social, o entalhe possui uma evidente função erótica”.[18]

E David Cronenberg, em seu filme Crimes do Futuro parece nos dizer que “o entalhe possui uma evidente função erótica”. E mais, Cronenberg nos diz que há um novo “conceito de tatuagem”. O “conceito de tatuagem de registro. Tatuar órgãos novos ou órgãos idiopáticos”[19], órgãos que se formam ou se manifestam espontaneamente ou a partir de causas obscuras ou desconhecidas; “neo-órgãos”, como são chamados no filme, e que não estão associados a doenças. E a cirurgia para retirar esses órgãos que se reproduzem e são tatuados é o novo sexo: “A cirurgia é o novo sexo”, nos diz Saul Tenser um artista performático, personagem do filme.

E se Lacan em 1964 colocou em questão uma tatuagem, que até então ninguém tinha pensado: “uma tatuagem desenhada no órgão ad hoc, em estado de repouso, e tomando em outro estado sua forma, se ouso dizer, desenvolvida”.[20] Hoje isto é um fato, e em Crimes do Futuro, isto vai mais longe. Os “neo-órgãos” são tatuados, a imagem dos órgãos participa da economia do gozo. Há inclusive um novo conceito de concurso de beleza, no filme: Concurso de beleza interior, com a categoria o melhor órgão original.

Bem, se Lacan nos falou sobre “as incidências sociais da sexualidade feminina”[21], ele também nos falou sobre a diminuição da incidência do discurso do Outro e o real da ciência tomando a cena cotidiana. Isto, hoje, é um fato em nossa realidade. E, tal como o argumento de nosso Encontro nos propõe, trago a seguinte questão: Como “podemos interpretar o mal-estar contemporâneo a partir da aliança entre o falso discurso capitalista e o discurso da ciência”[22]?

Aqui vale um esclarecimento que a própria Comissão Científica já nos deu. “O discurso capitalista não é um discurso inscrito na estrutura que Lacan propõe, ele é uma derivação do discurso do mestre, tornando-se o discurso do mestre contemporâneo, mas às custas de ‘foracluir’ o sujeito. Neste sentido, o que é falso é o discurso e não o capitalismo”.

Sendo assim, podemos nos perguntar como está nossa civilização no que diz respeito ao laço amoroso e sexual quando colocamos uma lupa no avanço da ciência. O que são os corpos hoje? Como são tomados pela ciência e, inclusive pela arte, com as novas tecnologias e o capitalismo selvagem? Mutatis mutandis!

Se no século passado com o avanço da física tivemos a criação da bomba atômica e toda consequência que esta descoberta e avanço científico nos trouxe; todas as questões éticas que vimos colocadas em questão no filme ganhador do Oscar, Oppenheimer, podemos dizer hoje que talvez este não seja um crime do passado, ou que não existirá mais. Vivemos com esta ameaça em um mundo onde as guerras parecem ser a saída para a dominação ou extermínio de um povo, além de todo lucro que advém dela. O capitalismo é selvagem e avança desmesuradamente.

E se Cronenberg nos traz em seu filme um mundo que parece distópico, ousaria dizer que talvez não seja um crime do futuro! Os ditos “neo-órgãos” do filme, além de produzirem significado ao “corpo que era vazio de significado”, são necessários por ser preciso “a criação de um sistema que possa digerir plásticos, materiais sintéticos”. “É hora da evolução humana se sincronizar com a tecnologia humana”, nos diz um dos personagens. E por meio da performance Autópsia de Brecken (Brecken um garoto ou criatura morto por sua mãe) se demonstra o que chamam no filme: “a anatomia da patologia de hoje”.

Cronenberg nos traz a pergunta que nos coloca a Comissão científica no argumento do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: “(…) qual discurso alcança os corpos hoje? Sobretudo o Discurso do mestre”. E, citando Lacan, o argumento complementa: “…mas persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico, coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar corpos…. No nível do discurso do mestre, isso fica evidente. No discurso do mestre, vocês como corpos, estão petrificados”. (…) “Cabe a nós (analistas), portanto, delinear a estrutura do discurso do mestre contemporâneo e, a partir desse ponto, investigar de que modo tais corpos são aprisionados, ou seja, como eles são constituídos e responsivos aos significantes mestres da época. Com isso, entramos no campo do sintoma”[23].

Bem, se o falasser fala, faz sua construção linguística. Não podemos esquecer que “existe na fala algo que é anterior à distinção entre significante e significado. (…) a estrutura de linguagem é secundária em relação ao ronron; o significante é apenas uma construção linguística que supõe a anulação, o esvaziamento da substância sonora, aquela em que se produzem assonâncias e homofonias (…)”[24], nos diz Miller em seu Comentário sobre A terceira, de Lacan.

Neste sentido, ao tomarmos “o caráter primário do gozo”, se faz necessária uma “desvalorização do pensamento, bem como da verdade e do sentido: (estes, a verdade e o sentido) são apenas representações imbecis introduzidas por lalíngua no corpo”, nos diz Miller, novamente em seu Comentário sobre A terceira.

E isto já nos remete ao que ele próprio trabalhará sobre a escrita – uma escrita que não é da fala; uma escrita pura, uma escrita manejo da letra, do rastro. Miller, em seu curso O Um-sozinho, diferencia o que é da ordem do Um do ser e da palavra e o que diz respeito ao Um da existência deduzido do corpo. Uma orientação pautada no héteros, no furo e no corpo.

Parece-me que se trata hoje de “introduzirmos” o real que Lacan reduz à função de furo[25]. O real com o qual podemos jogar nossa partida, como nos colocou Christiane Alberti. Que é o avesso do real da ciência, do discurso do mestre e do capitalismo selvagem. No filme de Cronenberg, a “síndrome da evolução acelerada é patológica, é falha do sistema. Um organismo precisa de uma organização, caso contrário é um câncer de luxo”. Uma organização, poderíamos dizer, que não é orientada para o real em sua função de furo.

“Há Um”, nos disse Lacan, e este não para de se escrever na iteração. Daí termos como orientação na experiência analítica, a instância da escritura que não é da palavra. Escritura que se manifesta na iteração de um acontecimento de gozo que ressoa no corpo do falasser. É isto que está posto na experiência analítica, apesar e mais além do discurso do mestre, da ciência, do capitalismo, da linguagem neutra etc.

“Lalíngua não se apreende; nós a recebemos daqueles que nos são mais próximos, sob as marcas do equívoco e do mal-entendido que resultam da maneira como uma língua é falada e entendida em sua particularidade. Assim, ela será sempre singular, única a cada um”[26], nos diz Heloísa Telles, em Scilicet.

“Para cada ser, seu inconsciente é um discurso que ele recebe, emitido por um outro, um parceiro íntimo, desconhecido, sem rosto, o Outro, que mobiliza o sujeito no cerne de sua identidade; um Outro que pensa no sujeito pensante, ali onde ele não pode mais dizer (…) ‘Penso, logo sou’. É o discurso do Outro que prossegue nos sonhos e, também nos sintomas”[27].

Lalíngua “só se sustenta pelo mal-entendido, no qual vive, de que se nutre (…)”[28] e “cada discurso inventa uma referência para lalíngua, já que ela não o tem[29].

Os discursos criam referências para lalíngua. E lalíngua se sustenta do mal-entendido. E é disto que se trata na experiência analítica e que parece estar posto na civilização. Uma civilização que nos demonstra que há um gozo do corpo não todo apreendido na dimensão fálica, “um gozo do corpo, indizível, sem forma e nem razão”[30] – o gozo como acontecimento de corpo.

Temos “um enxame de significantes mestres suscetíveis de nomear os modos de gozar de uma época. Essa pulverização dá conta das mutações contemporâneas e, em particular, da grande diversidade da vida sexual: cada um inventa sua maneira de gozar e amar (…)”[31], nos diz Alberti.

Vemos, mais e mais, o falasser se ligar a alguns discursos que produzem um sentido, um efeito de verdade, mas esses mesmos discursos tendem a apagar o real que Lacan reduz à função de furo[32]. Também vemos alguns desses falasseres se ligarem somente à repetição de um gozo fora do sentido que só tem relação com o significante Um, com S1 e não tem relação com S2 que representa o saber.

No entanto, isto mesmo ilustra os impasses, os mal-entendidos, os sintomas atuais em nossa civilização.

Podemos dar um viva a estes impasses; dar um viva ao mal-entendio e à falha dos semblantes. Podemos dar um viva à via do sinthoma que nos feminiza ao estar articulado ao não-todo, ao gozo suplementar e indizível. Que o falasser se insinue entre os discursos estabelecidos, apoiando-se na escrita de seu sinthoma, é a aposta da psicanálise.

Escutamos o ativismo, escutamos a linguagem neutra, escutamos os discursos estabelecidos para que cada falasser transforme esse ativismo em um ato; que transforme o ativismo reivindicativo de um direito ao gozo em um ato – ato no sentido de mudar sua relação com seu gozo. Um ato a partir do qual advém um sujeito (pois no ato não há sujeito); um ato a partir do qual advenha um sujeito modificado, após a perda de gozo. Pois, o ato implica em perda de gozo.

Na experiência analítica, trata-se de colocar o sujeito mais além de suas reivindicações, mais além de seus lugares de identidade; mais além de sua classificação em um grupo. Ou seja, levá-lo ao seu lugar de singularidade sintomática irredutível; que apareça sua singularidade, mais além da identidade.

Bem, fico por aqui para termos tempo de conversarmos, inclusive sobre inúmeras outras questões que Cronenberg nos coloca com seu filme.

Obrigada.


[1] N. A.: Mutatis mutandis: é uma expressão advinda do latim que significa “mudando o que tem de ser mudado.
[2] LACAN J., “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”. Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 745.
[3] MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online. Nova série, ano III, março 2012. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero7/texto1.html
[4] _________ Um sozinho. Curso inédito, aula de 16 de março de 2011.
[5] MILLER, J.-A. Op. Cit.
[6] LAURENT, É. O tecido da fantasia (ou A culpabilidade do fantasma). Opção Lacaniana. Op. cit. n. 54, maio 2009. p. 31.
[7] MILLER J. – A.; LAURENT É. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós. 2005. p. 88.
[8] Brousse M.-H. Um-dividualismo moderno. Lacan TV web.
9 MILLER, J-A. Comentário sobre A terceira. In.: LACAN, J. A terceira. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 74.
[10] BROUSSE, M.-H. A invenção de um corpo lacaniano. Entrevista por ocasião das Jornadas da EBP-SP, 2015. Disponível em: http://leonardocr93.wixsite.com/jornadas2015ebpsp/a-inven–o-de-um-corpo-lacaniano
[11] BASSOLS M. El objeto (a) sexuado. Disponível em: http://elcaldero.eol.org.ar/Ediciones/001/template.asp?El-objeto-asexuado.html
[12] BRODSKY, G. “Síntoma y sexuación”. In: Del Edipo a la Sexuación. Buenos Aires: Paidós. 2008.
[13] BROUSSE M.-H. “Psicanálise, gênero e feminismo”. Conferência proferida na USP, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B4NAsQ1kRgk
[14] LACAN, J. (1974-1975) Seminário 21, Les non-dupes errent. Inédito.
[15] LAURENT, É. Síntoma y nominación. Coleccion Diva. 2002. Buenos Aires, p. 18.
[16] LACAN J., “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”. Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 745.
[17] ACEVEDO L. A. Tatuagens/piercings. Scilicet. O corpo falante. Sobre o inconsciente no século XXI. EBP, 2016. p. 301.
[18] Ibid.
[19] CRONENBERG, D. Crimes do futuro, filme de 2022. N. A.: fala do personagem Wippet.
[20] LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 87
[21] LACAN J., Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 745.
[22] N. A.: Argumento do XXV EBCF, 2024. Disponível em: https://encontrobrasileiroebp2024.com.br/index.php/o-encontro/argumento/
[23] Ibid.
[24] MILLER, J-A. Comentário sobre A terceira. In.: LACAN, J. A terceira. Rio de Janeiro: Zahar, 2023 p. 66.
[25] LACAN, J. O umbigo do sonho é um furo – resposta a uma pergunta de Marcel Ritter. Opção Lacaniana, n. 82, abril de 2020.
[26] TELLES, H, Scilicet: A mulher não existe. p. 280.
MILLER, J-A. Comentário sobre A terceira. In.: LACAN, J. A terceira. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 64.
[28] _________ Teoria de lalíngua, Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 107.
[29]__________ Ibid. p. 109.
[30] ALBERTI, C. A mulher não existe. Scilicet: A mulher não existe, p. 32.
[31] _________ Ibid. p. 31.
[32] LACAN J. “O umbigo do sonho é um furo – resposta a uma pergunta de Marcel Ritter”. Opção Lacaniana, n. 82, abril de 2020.
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