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Comentários sobre o texto Corpos e discursos, de Patrícia Badari

 Maria do Carmo Dias Batista

 

O texto Corpos e discursos, de Patrícia Badari, é sinuoso e envolvente. Em cada curva volta à questão do corpo e sua ligação com o discurso, tema do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Corpos aprisionados pelo discurso… e seus restos.

Elege a música e, sobretudo, o cinema como índices para atualizar a psicanálise, “colocá-la em ato” e inseri-la no contemporâneo.

Corpo, discurso, cinema, música…

Vias privilegiadas de transmissão da psicanálise, pois “a verdade mais oculta se manifesta nas revoluções da cultura.”[1]

Coteja o filme de 2022, Crimes do Futuro, de David Cronemberg, com o filme de 2023, Oppenheimer, de Christopher Nolan, designando-o como “Crimes do Passado.” Muito perspicaz a analogia construída por Patrícia entre os dois filmes, “Crimes do Futuro x Crimes do Passado”. Primeiro, por romper com a cronologia – o passado vem depois do futuro – e também porque o passado (Oppenheimer) implanta o projeto Manhattan, no deserto de Los Alamos, depositário de muitas aspirações de futuro. Ali, em setembro de 1942, foi criado o Laboratório Nacional de Los Alamos, dedicado aos estudos sobre armas nucleares e de onde partiram as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945.

Cronemberg faz os Crimes do Futuro referirem-se ao corpo e ao gozo. “A cirurgia plástica é o novo sexo”, diz uma das personagens, quando toca com volúpia outro corpo com uma cicatriz cirúrgica aberta, deiscente. Os “neo-órgãos”, tatuados, formam-se e se reproduzem a partir de causas obscuras, diferentemente dos órgãos originais. As cirurgias para extirpá-los vêm carregadas de erotismo e são o ápice do filme.

Se somos “animais doentes do próprio gozo”, como diz J.-A. Miller[2], o gozo explicitado na tatuagem dos “neo-órgãos” e no tato aponta magnificamente, no filme, para a pele como objeto pulsional a ser ainda melhor explorada pela psicanálise. Um novo objeto a?

Na clínica, as hoje frequentes mutilações e cortes na pele, sub-reptícias manifestações da pulsão de morte, e os casos de psoríase, acrescentam exemplos à pesquisa da pele como objeto causa de desejo.

Patrícia cita a música Tatuagem, de 1973, de Chico Buarque: “Quero ficar no teu corpo como tatuagem […]. Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva […].

Antecipações da arte… (da música, do cinema). Gostaria de comentar, a seguir, o ponto inicial do texto. A erotomania.

Patrícia a discute a partir de uma certa generalização do conceito proposta por J.-A. Miller em O osso de uma análise, onde define que “o parceiro-sintoma do falasser feminino tem a forma erotomaníaca”[3]. A erotomania, como sintoma, praticamente constitui o feminino. Parece-me importante aferi-la com a erotomania na psicose, o delírio de ser amada, ou Doença de Clérambeaut, autor do conceito. Aqui há a certeza delirante de ser amada pelo Outro. O médico assistente, o governador, o rei, o presidente, o escritor renomado, essas figurações do Outro “a” amam.

A extensão do conceito de Clérambault permite afirmar: “o gozo feminino afeta a civilização como um todo, para além do laço propriamente amoroso e sexual”, como o faz Patrícia no texto.

Quanto às “supostas comunidades de gozo”, são discutidas pela autora como “fixação, repetição e escravidão do falasser ao significante-amo”, a partir da pluralização dos Uns, correlativa à queda contemporânea do Outro. Porém, é preciso pensar se não seria justamente o significante-mestre comum o Outro das comunidades de gozo. O Outro existiria materializado na fixação ao significante do gozo.

Por que supostas comunidades? Porque Patrícia toma o Um + Um + Um + Um, plurais, mas isolados, enlaçados somente pelas práticas sexuais comuns. Se inserirmos o significante-mestre no lugar do Outro, como no discurso histérico, teríamos, então, uma comunidade de gozo propriamente dita?

A segregação pode estar justamente aí, nesse racismo de iguais, identificados ao significante comum, irmãos na raiz (raça) do corpo; “o racismo se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo”, diz Lacan no Seminário 19[4]. Vale lembrar: a fraternidade se origina da segregação. “Só conheço uma única origem da fraternidade – falo da humana, sempre o húmus –, é a segregação. […] Simplesmente, na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação, e a fraternidade em primeiro lugar.”.[5]

Se “a mentira é a pérola secretada pela concha da verdade”[6] e se há mais de 23 diferentes citações sobre a relação entre a verdade e a mentira nos seminários de Lacan, tratemos agora da “verdade mentirosa”, apontada por Patrícia no texto. Há um mais-além da verdade, a mentira, uma não existe sem a outra. Entretanto, a “verdade mentirosa” é uma proposição do final do ensino de Lacan, mencionada no último de seus escritos [dos Outros Escritos], o Prefácio à edição inglesa do Seminário 11,[7] de 17/05/1976. Refere-se à coragem em se arriscar dos AE [os esparsos disparatados], ao fazer o passe e testemunhar sobre a verdade, naquela altura sabendo-a mentirosa. À verdade mentirosa, à descrença na verdade, chega-se sempre no final de uma análise e os AE têm por mister comprovar essa descrença para o conjunto da Escola. O verdadeiro joga com o falso e a verdade e a mentira coexistem, porém, a passagem do verdadeiro ao real é o pulo do gato, anunciado pela “verdade mentirosa.”

Para finalizar, gostaria de colocar uma questão sobre os corpos attrapés[8] pelo discurso, parte do título do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, citado no início deste comentário. Os corpos estão imersos no discurso, porém, não podem nadar livremente, pois o discurso os captura e neles se agarra, gruda como areia (ou uma alga)… A metáfora da submersão pode ajudar na diferenciação entre corpo e discurso. Diferença que, a princípio, parece fácil, pois corpo é coisa e discurso é palavra, mas, como falar do corpo sem as palavras? A areia se infiltra… Palavras e coisas lembram um belo livro de Foucault.[9] Palavras e coisas são o coração da existência humana. Diz Patrícia que o corpo preso, agarrado ao discurso do mestre faz sintoma. Podemos aí incluir a inibição? E a angústia? Inibição, sintoma e angústia são o coração da ex-sistência do inconsciente.


[1] LACAN, J. “A Psicanálise e seu ensino”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 460.
[2] MILLER, J.-A. “Comentário sobre A Terceira”. In: A terceira; Teoria de Lalíngua, Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 74.
[3] MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 94.
[4] LACAN, J. O seminário – livro 19. Ou pior… Rio de Janeiro: Zahar, lição de 21 de junho de 1972, 2012, p. 227.
[5] LACAN, J. O seminário – livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, lição de 11 de março de 1970, 1992, p. 107.
[6] LACAN, J. O seminário – livro 16. De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, lição de 12 de fevereiro de 1969, 2008, p. 170.
[7] LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 569.
[8] LACAN, J. LE SEMINAIRE livre XIX … ou pire. Paris: Seuil, Chapitre XVI, 2011, p. 221.
[9] FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 385. “A psicanálise, de fato, liga-se de perto a essa função crítica interior a todas as ciências humanas. Atribuindo-se o papel de fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente, a psicanálise avança na direção dessa região fundamental onde se jogam as relações da representação e da finitude.” Tradução nossa.
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