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ARGUMENTO

“E o analista em tempos de evaporação do pai?”

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A civilização caminha acelerada. Nossos tempos mudam e, com eles, muda, também, nossa maneira de ser e de gozar. Com e apesar disso, Lacan nos recomenda que o analista deva estar à altura de sua época.

Procura-se, incessantemente, o novo, porém, o novo já se tornou velho no amanhã. Estamos sendo conduzidos pela ditadura do “novo”?[1].

Nesse contexto, a expressão lacaniana “evaporação do pai”[2] apela, de imediato, a uma indagação: a qual pai ela se refere?

O Nome do Pai se introduz com Lacan muito cedo como um significante singular que ordena e legaliza o simbólico. Prosseguindo a partir do Seminário 3[3], com a teoria da forclusão e até seu último ensino, Lacan vai desdobrando e atribuindo ao conceito as funções de nominação e de enodamento concedendo a ele maior consistência.

O tempo corre muito rápido. Difícil para os analistas acompanharem a dinâmica temporal, evitando se desviar nos redemoinhos dos ventos ou se perder nas correntezas das águas.

Antecipando-se, Lacan apresenta, já no Seminário 8[4], o pai humilhado, na trilogia literária de Paul Claudel, enfraquecido em sua função na família.

Ao longo do tempo que segue, acentua-se a declinação do significante Nome do Pai, solidária a uma fragilidade do próprio registro do simbólico.

Mais uma vez, o dizer antecipado de Lacan[5] se fez ouvir quando, em 1968, anunciou a “cicatriz da evaporação do pai”, lugar da segregação.

Desse deslocamento do significante destacamos o efeito real que dele resta. Um resto que, em vestimentas imaginárias, vai desenhando marcas profundas na civilização.

A segregação, bem como as mutações na subjetividade dos falasseres e da organização da ordem familiar, assinalam resíduos de um Nome do Pai evaporado nos chegando à esteira da corrida dos tempos. Miller nos brinda com uma valiosa formulação para essa época: “Desabam-se as colunas do templo.”[6]

O pai já não impacta mais a família! Dissolvido de sua função propulsora ao evento do desejo, tão caro aos acessos pulsionais que comandam os sujeitos nos tempos do Outro rompido, fica a pergunta: como operar no acolhimento de determinadas urgências, quando os intervalos que alojam esse desejo são governados por um gozo que só faz agitar?

A família e suas novas configurações vivem hoje essa aflição em maior escala, pois, longe de poder se haver com o mal-entendido da transmissão, submete-se aos projetos de comportamentos, dados muitas vezes pelos discursos pedagógicos, que prometem um paraíso imaginário inabalável, fazendo crer, saber, ensinar o que é ser papai e mamãe, e como se deve criar as crianças.

Em um tempo em que o pai anda lá pelas nuvens, evaporou-se, já que sua função foi usurpada pelos sistemas que tiram partido das algaravias do tropeço da linguagem, não encontramos mais uma família que se inscreva pelos significantes que aparelham o gozo. Segundo Daniel Roy[7]: “a família pós-moderna não é mais um significante dado de antemão, inscrito no simbólico […], mas marcada pela inconsistência dessa inscrição”.

Inconsistência que faz penetrar toda sorte de discurso na busca de ter a criança perfeita. Epa! Vírgula! Se o real em jogo não fosse denunciado pelas próprias crianças e/ou adolescentes, vivendo “sob o mesmo teto, até que a casa caia”[8].

Agitação, gritos, violência. Crianças terríveis – pais exasperados, diz-nos Roy. CRISE! Não a família em crise, ele nos diz, mas a crise como princípio organizador da família pós-moderna. A cena é sempre a do gozo que junta todos “sob o mesmo teto até que a morte os una”[9].

Como promover intervalos ao vigor de um gozo que insiste em condensar todos à mesma língua? Família holófrase, expressão de Eric Laurent, tomada por Roy[10] para nos indagar o que pode o analista em um espaço tão denso que só mostra a opacidade do S1?

“Como proteger as crianças do delírio familiar?”[11]. É uma pergunta que Eric Laurent nos deixou na entrada deste século, uma pergunta para os psicanalistas diante das novas ficções que insistem em eclipsar o real do inconsciente tão aceso nas crianças. Elas sabem, elas falam, elas dizem, é só lhes dar a palavra!

Em tempos de família holófrase, seria o analista aquele que pode vir ocupar o lugar de hífen? Esse que Roy cuidadosamente coloca entre pais e filhos, entre o  terrível e o exasperado, entre gozo e desejo?

Evidenciamos, ainda, que as marcas dessa inexistência paterna, por outro lado, situam o lugar onde Lacan colocou a segregação. Segregação que localizamos, também, na produção do pseudo discurso capitalista. Nele, o ódio que surge se articula com a violência da pulsão de morte resultante da perda da função de agenciamento do S1, nesse discurso, diluído e substituído pelo gozo em $ em sua relação direta ao pequeno a.

Gozo que extrapola a veia estruturante do ódio quando produz fenômenos espetaculares cabíveis nas passagens ao ato que eleva o objeto à condição de destruição: destruir, punir, torturar! Faltam palavras, falta dizer. A propósito, há saber no ódio? Qual a sua visada, quando ultrapassa os limites? Só excessos? Nada a sublimar?

Segregar!!!

Recentemente, Brousse[12], tratando da evaporação da exceção paterna representada pelo Um na ordem simbólica, acentuou a fragilização dessa instância, quando a inexistência do Pai flutuou com o seu Nome nas nuvens. “Todo mundo é louco”, afirma Lacan[13], sinaliza o resto dessa evaporação.

O texto de Brousse prossegue sugerindo colocar, na atualidade, sujeitos em uma posição egoica sustentados em uma exacerbação imaginária, valorizando suas imagens e uma palavra singular. A esses eus isolados, se permite a divulgação de todos os tipos de imagens, em redes sociais e de comunicação, onde proliferam as palavras vazias. A tese que daí decorre será a de um inconsciente recoberto pelo imaginário.

Aos analistas, nos tempos que correm, o alerta de estarem atentos ao furo real na sexuação! Analista: presente!

Considerando, também, o gozo como sendo do corpo, singular e autista, como interpretar o que não é interpretável? Como evitar dar sentido amalgamando significante e significado?

Para além da nostalgia de um mundo que nos restou contingente e transitório, propomos para esta Jornada, convocar o analista a refletir possíveis despertares.

 

Gisella Sette Lopes
Sandra Conrado

[1] Miller, J-A. Miller, J.-A. (2015[2007-2008]). Todo el mundo es loco. Paidós, Buenos Aires.
[2] Lacan, J. (2015[1968]). “Nota sobre o pai”. In: Opção Lacaniana, n. 71, p. 7.
[3] Lacan, J. (1985[1955-1956]). O seminário, livro 3: as psicoses. Zahar, Rio de Janeiro.
[4] Lacan, J. (1992[1960-1961]). O seminário, livro 8: a transferência. Zahar, Rio de Janeiro.
[5] Lacan, 2015[1968], op. cit.
[6]    Miller, (2013[2006/2007]). El ultimísimo Lacan. Paidós, Buenos Aires, p. 233
[7]   Roy, D. (2021). Parents exaspérés, enfants terribles. Texto de orientação para a 7.ª Journée de l’Institut Psychanalytique de l’Enfant. <https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/ PARENTS_EXASPERES.pdf>. Recuperado em 9 de julho de 2021.
[8]    Buarque, C. (1979). “O casamento dos pequenos burgueses”. In: BUARQUE, C. Ópera do malandro. Trilha sonora de Peça Teatral. Gravadora Philips.
[9]    Ibidem.
[10]  Roy, op. cit.
[11]  Laurent, E. (2011). “A análise de criança e a paixão familiar”. In: Laurent, E. Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Scriptum, Belo Horizonte, p. 27-43, p. 38.
[12] Brousse, M. H. (2021). “Malestar en la Cultura en el S. XXI: los Unos-Solo y Orientación Contemporánea por la Dimensión de lo Posible”. Conferencia en el XIII Congresso Internacional de Investigación y Práctica Profesional en Psicología por la Facultad de Psicología de la UBA. Malestar en la Cultura en el S. XXI: los Unos-Solo y Orientación Contemporánea por la Dimensión de lo Posible. Salvador, BA, em 26 de novembro de 2021.
[13] Lacan, J. (1978). “Transferência para Saint Denis?” In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, p. 31.
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