O estilo que faz Escola Késia Ramos (EBP/AMP) Esses tais artefatos que diriam minhas angústias,…
Aquilo que repercute
Cassandra Dias Farias EBP/AMP
Diretora Geral da EBP Seção Nordeste
Lacan inicia sua coletânea dos Escritos com a seguinte frase: “O estilo é o próprio homem”[1]. Em outubro de 1966, entrega o compilado de uma produção com estilo único, singular. E continua:
É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon[2], era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber. Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si[3].
Assim ele nos entrega os seus Escritos.
Se para Buffon: “Escrever bem consiste em pensar, sentir e expressar bem, em clareza de mente, alma e gosto…”[4], para Lacan, a relação com a escrita diz de algo que, do objeto, precisa cair para veicular a própria escrita. A causa do desejo funcionando como motor para que se possa endereçar um produto.
O estilo de Lacan pressupõe – ele próprio nos diz – a consequência de que se precise colocar algo de si. Lacan não é evidente, o seu ensino tem a marca do que se transmite para cada um. Ele nos convoca a sair de uma posição passiva em relação ao saber e ocupar um lugar de enunciação a partir da relação singular com o objeto, pois “é o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída”[5].
Apoiado em Joyce, que lhe inspirou para formular a noção de sinthoma, Lacan introduz a lógica dos nós para dizer que “eles sustentam um osso”[6], portanto, os “ossobjeto [osbjet]”[7]. O osso de cada um às voltas com a satisfação paradoxal extraída do sintoma, aquilo que nunca se decompõe, sendo o que resta do corpo vivo; o irredutível de uma letra que está escrita em um modo de gozar. Esse objeto, único, não coletivizável, em torno do qual se enlaça um modo de funcionamento subjetivo.
O sujeito não sabe que aquilo a que ele visa e que o guia é o objeto.
E como a relação com o objeto se reflete na produção de um cartel?
Lacan vai propor a estrutura desse pequeno grupo com o objetivo de executar um trabalho: lançar a base de um percurso de formação para os psicanalistas e reconquista de um campo – esse freudiano. O seu ato político em 1964 subverteu a lógica ortodoxa da Internacional propondo, em seu lugar, uma Escola. Colocado como célula central e base de operações, o cartel, assim como o passe, constitui a aposta de Lacan em “constituir a psicanálise como uma experiência original”[8], na qual a relação entre saber e desejo é subvertida.
É no seio do cartel, essa pequena célula, que a grande viagem pode ter início. Um trabalho em curso que só encontra seu sentido se puder oferecer a uma comunidade o seu produto. Diferenciando-se de um grupo de estudos pela relação com o saber, o cartel requer a elaboração de um produto pela escrita.
Que quer dizer isso, a escrita? (…) ela é alguma coisa que, de certo modo, repercute na fala[9]. Por ser a representação da fala, a escrita é algo que se constata não ser uma simples representação. Representação também significa repercussão, porque não é nada certo que, sem a escrita, houvesse palavras[10].
Na escrita, as palavras adquirem outro peso por portarem, a meu ver, a possibilidade de repercutirem, como instrumentos de percussão, considerados os mais antigos instrumentos que a civilização humana produziu, encontrados em todas as culturas primitivas, originados da coleta do homem de materiais da natureza como pedras, ossos e conchas, que batidos uns contra os outros criam diferentes sonoridades.
Sonoridades que, posteriormente, encontraram a possibilidade de registro material escavando a pedra, inaugurando a escrita das vivências e da história para o homem.
Portanto, a capacidade da palavra em repercutir, ser fixada e impressa como marca foi tomada por Lacan como sendo o produto esperado para o dispositivo do cartel. Esperado, mas não obrigatório, acrescento com Marilsa. O analisante – à maneira de um escriba – extrai da sua relação com a língua uma escritura. Ressalta-se assim, o estilo de cada falasser nessa torção, nessa virada em que o saber sobre esse estranho objeto da satisfação pulsional toma à frente em relação ao Outro, orientando o percurso de uma análise pelo real do gozo, esse ineliminável como o osso, que não pode ser todo dito, mas que pode ser mostrado, manipulado, torcido, cingido, escrito.
A posição analisante repercute na experiência com o cartel e essa é a beleza dessa viagem. Não recuar dessa posição constitui o cerne da política da psicanálise. E da posição cartelizante, recusar à posição de mestria, atentar para os efeitos identificatórios inerentes ao grupo e ter no horizonte um novo acordo entre saber e verdade, pressupõe uma relação que passa pela escrita. Essas duas posições – analisante e cartelizante – se entrelaçam na sustentação da causa analítica, na medida em que, na experiência com o cartel, um produto é produzido e ofertado.
A psicanálise sempre esteve ameaçada, desde sua origem com Freud. Em tempos onde o funcionamento cerebral conduz a terapêutica acerca dos sintomas de nossa época, o discurso analítico continua tendo que salvaguardar a hipótese do inconsciente. Essa, que coloca a posição analisante como aquela que norteia um percurso de formação, mantendo aberta a questão “o que é um analista”?
É a direção da experiência analítica que poderá levar a uma travessia. Pelo saber fazer com o incurável de cada um que aponta para “a sombra espessa”[11] da passagem de analisante para analista, que precisa ser escrita sobre uma superfície, traduzindo o estilo, como nos diz Lacan: “Tal como é feita a língua, só se precisaria, em meu lugar, de uma caneta [stylo]. Quanto a mim, para sustentar esse lugar, preciso de um estilo [style]”[12] Para esse style, o lugar do analista, que faz semblante do objeto.
Nesse sentido, podemos aproximar estilo e sinthome? A invenção particular do sujeito levando em consideração aquilo que ele não pode se desembaraçar, a singularidade radical do modo de gozar desvinculado do sentido do sintoma? Um saber fazer (savoir-y-faire) com a letra que traça uma borda frente ao que há de mais real para cada um, seu modo de gozar. De acordo com o sinthoma, depreende-se o estilo.
“Em suma, o nó do sintoma será uma letra que se repete no real. Aqui, a verdade não se fala, não se grita, ela se escreve”[13].
[1] LACAN, J. Abertura desta coletânea. In: Escritos, Jorge Zahar Editor, 1999, Rio de Janeiro, p 09.
[2] Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon. Naturalista, matemático e escritor francês. Suas teorias influenciaram duas gerações de naturalistas, como Jean-Baptiste de Lamarck e Charles Darwin.
[3] Id ibid, p 11
[5] Idem.
[6] LACAN, J. – O Seminário, livro 23, Jorge Zahar Editor, 2007, Rio de Janeiro, p 141.
[7] Idem.
[8] LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, 2003, p 251.
[9] LACAN, J. O Seminário, livro 18, Jorge Zahar Editor, 2009, Rio de Janeiro, p 77.
[10] Id ibid, p 84.
[11] LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p 258.
[12] LACAN, J. Aviso ao leitor japonês. In: Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p 500.
[13] BELAGA, G. – Sintoma e sinthoma. In: Scilicet Semblantes e sinthoma, Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2009, p 345.