O estilo que faz Escola Késia Ramos (EBP/AMP) Esses tais artefatos que diriam minhas angústias,…
Aposta no Passe hoje
Sandra Arruda Grostein
Caros colegas da Seção Nordeste da EBP: é com muita alegria que estou hoje aqui com vocês para apresentar uma reflexão sobre o Passe na EBP hoje.
Dividi minha fala em três pontos:
- Breve histórico do Passe na EBP:
Este ponto obedece, de um lado, ao que aprendi no mestrado e doutorado em História da Ciência, isto é, que é preciso ser fiel às fontes e documentos e, de outro, ao que aprendo diariamente em minha formação como psicanalista: que a memória falseia. Por isso, vou recorrer a alguns relatos pautados em minha própria vivência como membro fundador da EBP, tendo participado do movimento lacaniano em São Paulo desde o final dos anos 70, e, finalmente, participado do dispositivo do passe em todos os lugares a ele reservados.
- Aposta no passe. Extrairei algumas ideias do livro organizado por Ana Lydia Santiago, composto por textos de J.-A Miller sobre o tema, e os primeiros testemunhos dos quinze AE nomeados até o momento do lançamento do livro, isto é, de 1996 a 2017.
- – Passe em crise na AMP. Tratarei da suspensão do dispositivo do passe na ECF, da leitura feita por Miller publicada na revista Opção Lacaniana nº 85, e das considerações publicadas no livro “Como terminam as análises”.
Os oitenta números da Revista Correio são o principal documento que visa acompanhar a cronologia do passe na EBP. O registro mais antigo está no número 3, de setembro de 1993, em uma entrevista realizada com Lilia Majoub – “O passe em detalhes, a garantia e os avanços da psicanálise”[1], donde se pode retirar a resposta à seguinte questão: por que o Passe é considerado um ponto central na Escola de Jacques Lacan?
Sua resposta se sustenta na garantia que a Escola pode oferecer para a sociedade, isto é, que seus membros são analistas confiáveis. Seja pela demonstração da prática, representada pelos AME, seja por estes analistas terem passado por um julgamento, do qual se destacam três pontos fundamentais:
- Julgar se houve uma verdadeira entrada em análise, através da formação de um sintoma que constituiu uma demanda.
- Como esta demanda se articulou a um determinado analista.
- O percurso da análise, seu desenvolvimento, como a demanda evoluiu, quais foram os grandes momentos, as etapas, os pontos de virada, como as identificações puderam ceder. Como as insígnias às quais o analisante está engajado tem a ver com o pai, e se as pode provar em seu discurso, isto é, sua relação com o Outro.
A título de registro, o cartel do passe da ECF em 1993 era composto por Éric Laurent, Alain Merlet, J.-A Miller (+1), Geneviève Morel (passador) e Lilia Majoub (eleita pela Assembleia).
Aqueles que queriam fazer o passe deveriam se dirigir à secretaria do Passe composta por três pessoas que acolhiam o pedido a partir de um conjunto de entrevistas. Tratava-se de saber o porquê da demanda de passe e diferenciá-la de uma ilusão, de um acting-out ou até mesmo de um delírio. Majoub argumenta que há um trabalho clínico a ser feito. Constatada a justeza do pedido, o passante sorteava os passadores.
Este procedimento corresponde ao que se pratica hoje na EBP, com pequenas variações, como o fato de a secretaria do passe ter deixado de existir como tal e o secretário ser escolhido entre os participantes do Cartel do passe.
O próximo documento trabalhado é o número cinco do Correio, de dezembro de 1993, cujo texto escolhido é o depoimento de Samuel Basz[2], presidente, à época, da EOL.
Ele diz que não há passe sem Escola nem Escola sem passe, pois o passe é o lugar para se interrogar o que é o psicanalista, já que não existe um conceito que abarque este termo.
Portanto, o dispositivo do passe é o que permite produzir um saber a respeito do que é o psicanalista, exatamente o que a Escola não sabe.
Na EOL, em 1993, havia uma Comissão específica para encontrar os meios para implementar o dispositivo do passe. Vale lembrar que a EOL foi fundada em 1992, dias antes da fundação da AMP, que com as outras três Escolas – ECF, Escola de Caracas e a Escola Europeia – deram início à AMP.
O outro texto escolhido foi publicado em setembro de 1994, no Correio número 9 (ainda anteriormente à fundação da EBP). Trata-se de um texto teoricamente consistente, um comentário feito por Serge Cottet[3] sobre o VIII Encontro Internacional do Campo freudiano cujo título era “Como terminam as análises”. Ele propõe que o passe força a dar forma à confrontação da doutrina com os resultados, a partir da apresentação do caso clínico, diferenciando a lógica do tratamento do acúmulo de dados biográficos. Ele diz: “O passe fornece o melhor ponto de observação para avaliar o desenvolvimento de uma análise. A decifração lacaniana da história de uma análise robustece a oposição entre efeito terapêutico e efeito didático”[4]
Conclui dizendo que fazemos parte de uma comunidade para a qual o analista não é o produto de uma norma conhecida de antemão, reproduzível pelo automaton. O analista resulta a um só tempo do acionamento do Inconsciente e de seu encontro com a transferência da Escola sobre a doutrina.
O próximo número do Correio pesquisado foi o 12º, de agosto de 1995, logo depois da fundação da EBP, em abril deste mesmo ano.
A entrada pelo passe proposta pela AMP foi instituída por voto secreto e unânime de seus membros, reunidos em 1º de maio de 1995, onde se decidiu que a entrada na EBP dar-se-ia através do Passe de Entrada.
O número 25 do Correio traz um texto de Iordan Gurgel onde ele retoma a constituição da Escola Una. Neste texto, cujo título é “O Passe e a Escola Una – o futuro chegou!”[5], ele ressalta a característica da EBP de ter nascido já sob o regime do passe, atendendo, portanto, ao pressuposto de que para ser analista é preciso se analisar: “é indispensável se submeter a uma análise. Poder-se ia dizer que com isto busca-se conciliar o Lacan radical da Carta aos Italianos (que toda entrada na Escola seja pela via do passe) com o Miller pragmático da pergunta de Madri (o passe que testemunhe a condição de analisante)”[6].
Do Correio 27 retirei o texto de Joseph Attié, no qual ele desenvolve a ideia de que Lacan, ao conceber o dispositivo do passe na Escola, introduz a instituição no cerne da experiência analítica, isto é, a experiência da Escola é a experiência analítica duplicada por uma experiência de transmissão[7].
O AE pode ser definido como o analista da experiência Escola, onde tem o privilégio de ter-se balizado em relação à experiência do seu próprio real. A Escola do passe, então, segundo Attié, designa a Escola atravessada pelo real do passe.
Dando um salto no tempo, vamos para 2011 no Correio 69, em que Elisa Alvarenga[8] teoriza sobre o passe ao se perguntar, com Miller, se haveria identificação ao sinthoma sem atravessamento da fantasia. Ela pergunta qual a diferença entre sinthoma e restos sintomáticos.
O pequeno a/ (–phi) é a maneira mais elementar de representar essa conjugação entre dois termos pertencentes a duas ordens distintas: o buraco do simbólico e o tampão imaginário.
É esse o algoritmo do passe que propõe Lacan: o fim da análise teria estas duas versões: ou aceder à brecha do complexo de castração (-phi) ou aceder ao objeto que a obtura (objeto pequeno a).
Neste momento, Lacan dá ao gozo o status do imaginário; já num outro momento, o núcleo do gozo será real.
Ela atribui ao resto ineliminável, um caminho que vai do pedaço de real dos restos sintomáticos, ao sinthoma como uma segunda versão do real, para além dos restos sintomáticos
Acreditava-se que a última palavra era “não há relação sexual”, mas há o sinthoma. Ou seja, para além da relação sexual que não há, há uma solução sinthomática própria ao sujeito, que se trata de verificar no passe.
A última referência está na revista Correio de número 77, no texto “O Passe”[9], de Maria Cecília Galletti Ferretti. Neste, Cecília relembra que o passe entendido como atravessamento da fantasia fundamental pressupõe que a operação analítica sobre a fantasia tem suporte em “uma criança é espancada”[10].
O texto aborda a frase “uma criança é espancada”, como uma cadeia significante, e a fantasia como um acréscimo a ela com um efeito de sentido e um efeito de gozo. Conclui que o passe do falasser não é testemunhar sobre a travessia da fantasia; trata-se mais da elucidação da relação do falasser com o gozo e como foi possível, a partir disso, adquirir um saber com a parte do gozo que não se modifica no trabalho de análise. Há algo no gozo que resiste à análise.
Um vez feito este breve histórico do Passe na EBP, a referência para desenvolver o segundo ponto baseia-se na “Aposta no Passe”, isto é, em manter o passe no nível da aposta e não da consagração. A referência é um livro de mesmo nome[11], organizado por Ana Lydia Santiago, composto por alguns textos de Jacques-Alain Miller sobre o tema e pelos primeiros testemunhos dos quinze AE nomeados na EBP de 1996 até 2018. Além destes AE nomeados, até o momento a EBP contou com mais três, cujos testemunhos não estão aí publicados.
O primeiro texto deste livro a ser comentado, “É passe?”[12], é a intervenção de J.-A. Miller pronunciada por ocasião das Jornadas da ECF, em abril de 2010, onde ele diferencia as respostas do passe diante do sim e diante do não.
Se a resposta é positiva, sim, há um passe, então se tem um efeito propulsivo; já se a resposta é negativa, há um efeito restritivo, isto é, retém-se o discurso.
O passe não verifica a competência como analista daquele que pede para fazer o passe ou mesmo daquele que foi nomeado AE, isto não está em julgamento, pois o que se espera de um testemunho é uma performance.
Trata-se de uma performance que inclui a certeza antecipada à qual é preciso acrescentar um aspecto não eliminável para o passante, a saber, a aposta do passe, “aposta que nunca se está certo de ganhar”.[13]
Miller ressalta também que há uma clínica do passe à qual o analista, em sua posição, não teria acesso e, portanto, só poderia ser ouvida no dispositivo do passe. Uma clínica do final da análise que não está ao alcance do analista exatamente no momento da báscula da enunciação, quando o analisante se põe a falar para alguém que não é o analista, isto é, para uma coletividade, e a isto o analista não tem acesso.
O passe, portanto, é sua interpretação, a interpretação do passante; não se trata de conteúdo ou de enunciados e sim da enunciação.
Nesta mesma intervenção, Miller formaliza os três passes:
Passe 1: passe durante a análise quando se ultrapassa algum ponto sintomático específico.
Passe 2: É o próprio procedimento do passe como apresentado nas Escolas.
Passe 3: O passe que se faz diante do público durante o testemunho.
O passe 2 retroage sobre o passe 1 e o passe 3 sobre o passe 2.
Ele conclui que “apesar dos impasses, dificuldades e paradoxos o passe permanece indispensável.”[14]
Para concluir, retomo o terceiro e último ponto retirado da Liminar do livro “Comment finissent les analyses” e as Oito pontuações sobre o passe, publicada no Opção Lacaniana nº 85, ambos de J.-A. Miller.
Ele retoma Freud em “Análise terminável e interminável”[15] para dizer que a diferença dos sexos apresentada neste texto se revela ser uma separação dos sexos. Neste ponto, ele diz, Lacan segue Freud e o traduz ao dizer: “o diálogo de um sexo a outro está interditado , portanto, não há relação sexual”.
A partir desta ideia, Freud coloca que no final da análise há um impasse condicionado pela hipótese da existência de uma rocha biológica – a rejeição à feminilidade – que separa um sexo do outro, um real da biologia, impossível de ser ultrapassado.
Lacan, através da experiência analítica, propõe que a perspectiva pulsional promove uma saída do impasse, verificável no final da análise, ao considerar que o objeto e finalidade da pulsão são inarticuláveis.
Lacan recusa então a concepção do obstáculo biológico no qual Freud se apoia para dizer de um impasse no final da análise, e abre a possibilidade de um passe que obedece à lógica.
Miller se expressa da seguinte maneira quanto a isso: “Torção magistral: a questão do final da análise é abordada por Lacan a partir da entrada na análise.”[16]
Finalmente, em 2021, durante as Jornadas da ECF, surge um momento de crise do passe a partir do mal-estar gerado na plateia por alguns testemunhos apresentados.
Miller faz um levantamento de oito pontos a serem considerados nesta crise, publicados na Opção Lacaniana nº 85:
- Pontos candentes – pode-se dizer que nos mantemos afastados.
- Homogeneização entre as Escolas – disfunções e suas eventuais soluções são próprias a cada Escola.
- Regionalismo e localismo – a questão do êxtimo.
- Fazer ondas – produzir efeitos.
- Por que o AE? – discussão permanente mesmo depois de 40 anos de experiência.
- Retificação – um regulamento não pode remediar a falta de discernimento.
- O passe uma só vez?
- Eventualmente duas vezes.
Concluo dizendo que a ECF encontrou uma saída para a crise através da formação de um Colégio do Passe. Algumas conclusões podem ser tiradas, no entanto, ainda preliminares, tanto no âmbito do Conselho da ECF, quanto da AMP.
O que me parece fundamental é retomar que o passe, o cartel, a Escola, são dispositivos psicanalíticos sujeitos a revisões e retificações constantes. Em se tratando do passe, o mais importante a salientar é que não se pode perder de vista seu caráter de aposta que implica necessariamente risco e perda.