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Apenas a leitura de uma noite

Lídia Pessoa[1]

“A carne seca é servida” na cerimônia de abertura da Noite da Biblioteca da Seção Nordeste, ocorrida em 24 de agosto de 2021. Com um toque da poesia de Torquato Neto de “todo dia é o mesmo dia de amar-te amor-te morrer, todo dia menos dia mais dia é dia D”.

Cassandra Dias, Francisco Xavier e Carolina Marques nos convidam invocando a refletir, dialogar sobre a noção de pulsão de morte concernido ao campo da repetição e da criação, extraído do texto Mais Além do princípio do prazer que fez 100 anos em 2020.

É interessante a escolha que fizeram: em primeiro lugar, trazer as referências da poesia, da arte, do cinema, da música, da dança, da fotografia seguida das falas dos psicanalistas convidados Gilson Iannini e Sérgio de Campos sobre o texto em apreços somente a posteriori.

Freud construiu várias teorias estéticas interpretativas, durante seu percurso, sobre a arte, a literatura e a psicanálise. Uma das suas ideias importantes é a relação da obra, do artista e do leitor. No texto o Chiste e sua relação com o inconsciente (1905/1996) Freud descobre a impossibilidade da interpretação dizer tudo sobre a obra de arte, e é desse reconhecimento que ele chega a enfocar, na teoria da arte, a estética dos efeitos ou a teoria da recepção psicanalítica da obra de arte. Nessa perspectiva, é que não se divide, de um lado, o texto literário e, de outro, a teoria psicanalítica. É do próprio texto, na sua construção narrativa, que podem surgir os efeitos no leitor.

Creio que aqui trago expressões que ressoaram dessa noite em mim. Fragmentos do filme Bacurau foram exibidos e o efeito é a ideia de nos distanciarmos de um lugar onde estamos e nos dirigirmos a novos lugares. Com esse filme André Mendonça Filho e Juliano Dorneles conquistaram em 2019 o prêmio do júri no Festival de Cannes. Comentário extremamente interessante a respeito do filme construído por André: Esse é um momento muito importante no nosso país. E esse é um filme sobre resistência, sobre educação e sobre ser brasileiro no mundo”. Acrescento o nosso dilema de ser nordestinos no Brasil.

A intervenção no bairro do Bessa em João Pessoa foi um momento precioso. Essa cena foi criada a partir de uma fotografia de Freud trabalhada, ampliada e colada em um muro. Na exibição do vídeo foi acrescentada uma canção da banda de rock norte americana Nirvana que transforma os gestos dos coladores em dança. Os traços de memória tornaram-se suportes da criação. A arte que opera a partir do feminino trazendo um significante novo organizando o nosso próprio mundo interior num tratamento possível pelo real.

Vê-se que a pulsão de morte perdura em uma forma particularmente viva quando lemos a arte. Traz o efeito de uma transformação a partir de uma invenção outra para contornar o vazio num caminho impossível de preenchê-lo.

Desta noite me vieram perguntas sobre a arte e a psicanálise: a psicanálise pode avançar a partir da arte para perceber o que desconhecemos? A arte propicia atualizações de leituras dos textos psicanalíticos? A Biblioteca Viva da Seção Nordeste deixa em aberto essas questões acentuando que a psicanálise viva se dá a partir da pulsão de morte e o desejo singular, mas não sem o coletivo de Escola.

A letra D escrita do poeta pode indicar que no campo da satisfação e prazer muitas invenções possam ser produzidas na arte e na vida humana. O ato criativo, como o encontro entre a materialidade do corpo e as representações advindas dele.

Mais além do princípio do prazer, além de um texto paradigmático nos convoca a reflexões estéticas, clínicas e políticas sobre o Brasil de hoje.


[1] Cartelizante da EBP-Seção Nordeste, Professora da Universidade Federal do Piauí, analista praticante da Associação de Psicanálise do Piauí – CEPP.
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