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Amor, desejo e gozo
Rosane da Fonte
O tema de hoje, Amor, desejo e gozo, convoca-nos a falar de encontros.
Vamos iniciar pela direção do tratamento em que se constitui um encontro com um parceiro novo, com o qual se inicia uma partida, um jogo de xadrez, como dizia Freud. Nesse contexto as peças são as palavras que se desdobram em inúmeras variáveis. As jogadas são tortuosas, repletas de impasses problemáticos, muitas vezes porque são marcadas por um mal-entendido estrutural. Nesse encontro se atravessam o desejo, o gozo e o amor.
Para configurar esses três campos, iniciaremos pelo desejo.
No primeiro momento do ensino de Lacan (1958/1998), no seu texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, ele toma o desejo como a bússola da direção do tratamento.
Miller (2005), em seu texto La invención del partenaire, salienta que o desejo está sempre ligado a uma pergunta: que desejo? e seus deslizamentos: É permitido? É proibido? Agrada? Desagrada? Perguntas que se expressam na demanda. O ser falante demanda o que acredita desejar.
A demanda é uma variante do sujeito dividido, presentifica sua falta e convoca o Outro a resolvê-la. Pede ao Outro um complemento que possa obturar a falta que o anima e se renova cada vez que a demanda se produz mais além da necessidade, em direção ao desejo. Isso gera uma trajetória infinita, que marca seu destino estrutural, sua intransitividade, seu enodamento a um impossível. Não há complemento para ela, a demanda, porque ao sujeito falta, e ao Outro a quem se demanda, também falta. Esse Outro faltante abre para o sujeito o campo do desejo. O desejo para Lacan é sempre desejo de outra coisa.
Nos Escritos, Lacan (1958/1998, p. 633) afirma:
O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta a ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.
Esse circuito intermitente vai e vem, às vezes circula, às vezes se anula, e quando se eclipsa, o sujeito frequentemente se deprime. Por outro lado, quando o sujeito deseja algo fortemente e o obtém, algumas vezes o desejo desaparece, desloca-se, anula-se e apaga-se. Freud (1972) ilustra preciosamente esse ponto no seu texto Os arruinados pelo êxito.
Traz como exemplo: o desejo do sujeito depende sobretudo do desejo do Outro, seu primeiro habitat. É preciso que o Outro seja barrado, deseje, para o sujeito tornar-se desejante. Caso contrário, quando o Outro se apresenta como completo, não há lugar para o sujeito colocar-se no campo do desejo. A clínica nos coloca isso “a céu aberto” naqueles analisantes em que, na sua trajetória de vida, se instalam sempre como aquele que não tem lugar, quer seja no trabalho, quer na vida amorosa, etc.
É pertinente ressaltar que o desejo do Outro que anima o sujeito deve ser ultrapassado para que o sujeito possa desejar outra coisa em nome próprio, assumindo seu desejo singular.
Lacan (1958/1998), no texto referido, A direção da cura e o princípio de seu poder, concebe o desejo como a metonímia da falta-a-ser que se desliza no discurso entre os significantes. Convida-nos a levar o desejo a sério como o fez Freud desde o projeto.
Passamos agora do deslizamento do desejo à fixação do gozo.
Nesse campo não há parceiro humano. Há um imperativo de satisfazer-se sobre si mesmo. Uma exigência que não se traduz em palavras, não conhece limites, que quer sempre mais. Cuja ordem é, gozar!
Freud (1937/1996), em seu texto Análise terminável e interminável, isolou como restos sintomáticos aquilo que permanece, insiste, não cessa na experiência analítica como ponto obscuro, levando-o a sugerir a retomada da análise a cada cinco anos. Atualmente, temos acompanhado diversos AEs que retomam a experiência analítica após certo tempo (SCHEINKESTEL, 2016) de sua conclusão. Isso porque um real insiste.
Esse núcleo obscuro que não cessa de não se escrever foi produzido pelo encontro contingente do corpo com o significante, instaurando um acontecimento de corpo – marca de gozo decorrente desse encontro sempre contingente que reitera sem cessar.
Freud a reconhece, inicialmente, em fragmentos do corpo, abordagem que põe em primeiro plano a fixação.
Nessa via, Miller destaca que o gozo em Lacan é deduzido da pulsão freudiana pela pergunta: quem sou eu? Uma pergunta sobre o gozo. Gozo extraído do real da pulsão que se repete em uma modalidade de gozar sempre singular.
Em Elementos de biologia lacaniana, Miller (2000, p. 8) lembra Lacan quando diz: “O saber sobre o gozo talvez seja o único saber psicanalítico que temos sobre a vida, sobre o que é o ser vivo. […] Não sabemos o que é a vida, só sabemos que não há gozo sem a vida”. “Não sabemos o que é o ser vivente exceto que é um corpo, isso se goza”.
Nessa via a clínica nos impõe uma mudança radical: fazer uso da função de nomeação com o objetivo de decifrar o nome do gozo incluído no sintoma de cada falasser (SOLANO, 2005).
Dar nome, nomear é algo que toma um lugar fundamental no último ensino de Lacan. Já que o gozo quando nomeado localiza-se na ordem simbólica.
Trata-se de um novo saber, o saber de seu gozo. Assim, Lacan dá uma reviravolta em suas elaborações e traz no seu último ensino o gozo como ponto de partida para a orientação do tratamento.
Perguntamos: se nossa prática clínica resulta na pressão constante de fazer do gozo parasitário, asfixiante e repetitivo um lampejo de desejo, o que pensar do amor para efetuar essa transformação no ser falante? (RACKI, 2021).
Gabriel Racki (2021), no seu texto Novos poros do amor, lembra que devemos estar advertidos dos nossos furos por onde a animação da vida entra nos corpos. Sem furos verdadeiros, a palavra de amor, a ressonância amorosa não encontra passagem.
É o amor, segundo Lacan, que permite o gozo condescender ao desejo (LACAN, 1962-1963/2005).
Como entraria o amor em uma época marcada pela ânsia de satisfazer gozo e identidades que saturam a divisão subjetiva; de onde o amor surge? O amor consente com certo vazio de significação; somente a partir desse vazio, é possível amar (RACKI, 2021).
No Seminário 8, A transferência, Lacan (1960-1961, 1992) afirma que no princípio da experiência analítica está o amor. A psicanálise é uma cura pelo amor.
Novo e diferente amor que permite operar sobre o fator quantitativo do sintoma produzindo a mutação do gozo em amor e desejo.
Retomando: o gozo, expressão da busca imperativa insaciável da pulsão, não conhece limites, não necessita do Outro para se realizar. Sua parceria é a própria satisfação sobre si mesmo, é autoerótica, autista.
Por outro lado, o desejo, sempre enigmático, é um laço, uma relação ultrassensível ao signo do Outro (MILLER, 2005).
Entre desejo e gozo, está o amor – encontro contingente que permite crer que é possível encontrar o Outro que faz falta ao desejo e também facilita o acesso à satisfação.
Há uma variedade imprevisível de encontros na sexualidade do ser falante, porque aí se atravessam o amor, as repetições do desejo e os traumatismos do gozo.
Fazer uma experiência de análise é esclarecer o modo no qual seu inconsciente interpretou o enigma sexual e encontrar uma maneira de fazer com ele.
O analista toma como bússola na direção do tratamento permitir ao falasser sair das respostas que insistem e encontrar uma maneira de saber fazer com ele.
Esse saber não é apenas saber do seu gozo, senão poder saber fazer algo melhor com ele. Saber com o fazer. Aí se abre o campo do amor. Segundo Miller (1991), o amor lacaniano é invenção.
No Seminário 20, Lacan considera que uma invenção pode vir a ocupar o lugar do vazio da relação sexual inexistente funcionando como suplemento desse furo no real. Continua: “O que vem em suplência à relação sexual – que não existe –é precisamente o amor.” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 62).
Para concluir:
O analisante, na experiência analítica, apresenta, de um lado, o desejo e suas variantes, e do outro, o gozo com sua fixação. Entre eles, há um abismo, e cada falasser, há de contorná-lo a seu modo. Estaria aí uma via do amor? Indagamos ainda se há entre eles, algumas vezes, um entrelaçamento.