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Afah! Ahhh, Fahhh! Ahhh!, Faaa.

Francisco de Assis Xavier Neto – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Psicanálise e Autismo (PE)

Atendo Martin desde 2016, ano que entrei no setor de autismo de uma instituição em que trabalho, um Centro Especializado em Reabilitação (CER). Martin chegou com 5 anos de idade, em nosso encontro, de início, se mostrou em franca defesa à minha presença. Quando entrava na sala, logo largava minha mão, limpando-a em sua roupa e dirigia-se para longe de mim. Sempre tapava os ouvidos quando lhe falava alguma palavra (o autista se defende da palavra. Para ele a palavra é ameaçadora e invasiva). Em sua “Alocução sobre as psicoses da criança”, em uma Jornada organizada por Maud Mannoni, a respeito de um caso apresentado por Samy Ali, Lacan dirá:

“Quando uma criança tapa os ouvidos, ela está para alguma coisa que está sendo falada – já não está no pré-verbal visto que se protege do verbo, o que atesta a sua relação com o Outro e permite afirmar que o sujeito autista está na linguagem, ainda que não fale”.

Considero essa defesa já como uma resposta, uma invenção do sujeito frente ao Outro ameaçador.

A direção do tratamento, nesse primeiro momento, seguiu outra preciosa orientação que Lacan nos deixou, na Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975), em mais um dos poucos momentos em que falou sobre o autismo:

“Eles não chegam a ouvir o que você tem a dizer-lhes, na medida em que você se ocupa deles.”

“É justamente o que faz com que nós não os ouçamos. É que eles não nos ouvem. Mas enfim, há certamente algo a dizer-lhes.”

Esse não se ocupar deles, aponta para que lugar o analista deve se posicionar na clínica do autismo. Mantive distância de Martin e tentei ser o mais dócil possível, desviando meu olhar e calando minha voz estrondosa. Maria do Rosário Collier do Rego Barros, em um encontro de nosso grupo de trabalho sobre o amor no autismo para o X ENAPOL, ressaltou à importância de ser dócil ao furo, retomarei isso adiante. Depois de um tempo, agora já atendendo sozinho, ele me chega fazendo um som repetidamente: “Afa!” e o fazia de forma enfática, forte e olhando para mim. Foi então que comecei a fazer esse “Afa!” só que de forma diversa, incluindo um intervalo, primeiro fazia “ahh” e em seguida o “Fah!” com mais ênfase.

Para minha surpresa, Martin se pôs a fazer o mesmo logo em seguida, olhando para mim. Desde aí os atendimentos já começavam com essas emissões sonoras. Introduzi variações de tempo e de entonações, fiz um “ah” mais longo, depois um “fah” com uma entonação mais forte e vice e versa e  Martin me acompanhava, respondendo a esse primeiro esboço de estabelecer alguma conexão. Em seguida, introduzi o corpo. Levantava os braços quando fazia o “ahh” e só baixava quando Martin dizia “fah”. Os movimentos dos braços seguiam a entonação de Martin, às vezes rápida, com uma entonação forte, às vezes lenta, com uma entonação mais sutil. A distância entre mim e Martin continuou.

Certo dia, começando o atendimento depois de muito fazermos o “ah” “fah”, Martin vem até mim e senta em meu colo. Sutilmente e bem baixinho faço “ahhh” e logo em seguida Martin faz um “fah” bem forte. Me arrisco então a emitir esse som mais alto e Martin segue fazendo o “fah” também em tom mais alto. Aumento ainda mais minha voz, chegando quase a gritar e Martin responde sem tapar os ouvidos, sentado no meu colo. A partir daí, Martin começa a se aproximar mais de mim e a fazer gestos, sempre olhando para mim. Imito alguns desses gestos e introduzo alguns outros bem sutis e noto que Martin também imita esses gestos que introduzo.

Certa vez me posicionou em um determinado lugar e começou a fazer movimentos para que eu o imitasse, como numa aula de aeróbica. Desde o início, Martin conduziu o tratamento, me apontando como eu deveria ficar, sem demandar algo dele, esperar ou “querer” tratá-lo, ou cuidar dele. Ao fazer uma escansão no que Martin trazia como defesa ao outro, essa emissão maciça “afa!”, foi possível surgir algo da ordem de um espaço, já tão presente na distância que ele manteve de mim por um bom tempo. Mas isso apontou para um intervalo onde o sujeito pudesse se dirigir até mim, sentando no meu colo, suportando o som da minha voz sem ser invasivo ou angustiante. Martin passou inclusive a utilizar meu corpo nos atendimentos e, mais a frente, me dirigir palavras.

O encontro com um analista produz efeitos no sujeito autista, sua presença cuidadosa, dócil, respeitosa, cordial, faz advir algo da transferência e, portanto, algo do amor. Do amor não entendido como repetição e sim como algo da ordem da invenção, da criação. Não estaríamos aí no terreno do que Lacan chamou de amor real? Não são os autistas os que nos dão a prova do que se pode inventar a partir do troumatisme, a partir do Um sozinho?

No seminário “Os não-tolos erram” de 1973/74, Lacan diz:

“o inconsciente não descobre nada, não há nada para descobrir no real, só que existe ali um furo, então o inconsciente inventa. Todos nós inventamos algo para tapar o furo no real, ali onde não existe o rapport sexual. Ali onde se produz um troumatisme Um inventa, inventa o que pode”


Referências:
Lacan, J.(1967/2003) “Alocução sobre as psicoses da criança” in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 361-368.
LACAN, J. (1975). “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.23, 1998, p.6-16.
LACAN, J.  O Seminário 21, inédito, Os não tolos erram, aula de 19 de fevereiro de 1972.
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