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A voz de não-todo trans!

Gabriella Dupim

Ao receber o convite para comentar os recortes da entrevista com Andreina Gama, coordenadora do eixo ´Diversidade Étnico Racial, Gênero e Orientação Sexual´ da Fundação e da Associação de Pessoas Travestis e Transexuais da Paraíba, realizada por integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre o Feminino, exibidos na I Jornada da Seção Nordeste em dezembro de 2021 algumas questões me inquietaram. Longe da pergunta, o que a psicanálise nos ensina sobre os trans me pareceu mais coerente o avesso: o que Um falasser trans pode nos ensinar?

Posição correlata ao do analista de tomar sua fala como um texto escrito, recolhendo um saber nos próprios ditos de Andreina, dignificando sua voz ao lugar de sujeito ao invés de objeto. Para além do universal dos movimentos identitários em defesa dos direitos dos trans, mais do que necessário e fundante, a psicanálise se interessa pelo que há de singular, pela voz de não-todo trans.

Um corpo não é representado por um pedaço, uma genitália, inaugura a fala de Andreina que gentilmente nos assegura que a psicanálise é dócil aos trans. O que é o ser? Uma identidade de gênero que não é compatível com sua identidade biológica. Lacan inventa um neologismo, o parlêtre ou falasser, que é o sujeito mais sua substância gozante. Quer dizer, aquilo que se articula a cadeia significante e o que está fora, que se sente e afeta o corpo, impossível de ser nomeado por estrutura.

Mulher, travesti, orientação sexual heterossexual, nome e gênero readequado, mas não fez readequação da genitália. S1, S2, S3…, significantes múltiplos, L, G, B, T Q, I, a + … que identificam, nomeiam o falasser, no centro, ao mesmo tempo em que deixa aparecer nos intervalos os compassos dos pontos de ausência de significação, posto que se experimenta no corpo vivo, pulsante, com sua substância gozante jorrando fora da linguagem.

Nem todos, ou não-todos trans, ojerizam a genitália com que nasceram. Assim como não há diferença sexual que se inscreva no inconsciente, nos ensina Lacan. O gozo é do Um, singular a cada falasser. Cada qual se rearranja com seu corpo a sua maneira, não sem os traços que restaram desta alienação inaugural ao Outro, proveniente da nossa condição de existente antes mesmo de existir. O Outro da cultura, da filiação e do inconsciente, que muito embora pensemos que sejamos mais ou menos livres para escolher, a partir da lógica do objeto a, podemos inferir que se trata mesmo de uma escolha forçada.

A transição mostrou o amor que meus pais tinham por mim, nos indicando que a trans-formação atendia a inscrição de um desejo que não foi anônimo, produzindo marcas no falasser.  Aos 11 anos exigia que o cabelo não fosse mais cortado e que suas roupas fossem Unissex, ratificando que toda demanda é demanda de amor e que talvez a condição da fantasia fosse ser amada como única. Se antes o Unissex era a abertura para o não-binarismo, hoje cada um pode se tra-vestir como quiser de forma singular.

Não há entendimento do que é um corpo travesti, transexual. Não nasci fêmea, mas me tornei mulher, e para tal era necessário atender a um padrão de corpo feminino. Entrou na ditadura para se enquadrar em um estereótipo universal, introjetando silicone nos quadris para parecer uma verdadeira mulher. De nada adiantou, continuou sendo degradada, chamada de viado travestido, uma vez que uma mulher não se define apenas pelos contornos do corpo. Se A mulher não existe, trata-se mesmo de uma impossibilidade estrutural por definição. Para a psicanálise, a verdadeira mulher só existe na psicose, àquela, sem a barra, que encarna um todo feminino, um gozo Outro sem a mediação do falo.

O padrão de beleza mudou, mas continua um novo padrão, uma objetificação do corpo feminino que nos obriga a se enquadrar como objeto fetiche para um homem: cabelos longos e lisos, salto alto, seios e quadris largos, a lista é grande. Muito embora algumas transexuais tenham feito readequação sexual buscando atender a esse enquadre, não é raro que se arrependam, dizendo que as intervenções no corpo de hormônios, silicones e porque não, de uma vagina não as fez mais ou menos mulher.

O que é uma mulher? Certamente não é uma vagina, embora uma grande Diva vermelha esteja cravada em terras pernambucanas fazendo visível a rachadura de onde todos advêm, tornando visível à causa feminista, que deveria ser essa sim, universal, para-todos, pela inclusão do não-todo no social como objeto agalmático e não mais degradado.

Seria a testosterona, um dos nomes do viril? Como nos lembra Andreina, o hormônio masculino também é desejo, nos indicando que o falo não é dispensável. É preciso que este se inscreva para não se perder nas ausências do não-todo. Se o falo é para todos o não-todo pode ou não se increver, de forma contingente, experimentada a cada vez e de uma maneira Outra até mesmo para àqueles que nasceram com um corpo biológico de mulher.

A gente é um CID! Essa afirmação coloca em evidência que ao longo da história todos àqueles que estavam fora da norma fálica eram rechaçados e patologizados, a começar pelas mulheres que em sua maioria encarnavam o feminino que preferimos chamar de não-todo. O normal é o patológico! Se considerarmos que quem dita as normas da saúde mental sempre esteve alinhado com o discurso do capitalismo. Até que um dia resolveram não mais nos curar, uma vez que ser trans não é uma doença. Foi preciso que em determinado momento da história houvesse uma virada na norma. Se recordar é viver, porque não reviver o bom velhinho Freud, que contribuiu para tirar as histéricas e homossexuais da fogueira.

No cinema, Alice Júnior e Dani, mulheres pretas, trans da periferia, revelam a violência e segregação cotidiana, até mesmo no meio artístico que muitas vezes se negam a representa-las não incluindo atrizes trans no elenco ou apenas as reduzindo a papéis secundários. A negação de estar nos espaços, nos banheiros, a negação de ser chamada no masculino, a negação de gostar de futebol e ser classificada como macho.

A palavra transexual foi feita para higienizar a travesti, que fica marginalizada, muitas vezes como pobre e prostituída. Negar é interditar de ex-sistir, é fazer invisível o gozo Outro, e porque não Outra. A luta da mulher travesti é a mesma luta das mulheres que são violentadas. A estimativa de vida de travestis e trans é de 36 anos, sendo o Brasil um dos países com maiores índices de homicídio a essa população, mas também às mulheres, nos advertindo que as insígnias do feminino mobiliza o ódio daqueles que tem aversão ao não-todo mais além dos semblantes.

O processo de empoderamento feminista tem ampliado o acesso de mulheres e trans à cidadania principalmente através de medidas que visam à promoção de equidade entre gêneros. A despeito disso, a violência de gênero vem apresentando considerável recrudescimento, evidenciando a presença resistente de um ódio misógino. Esse ódio ao feminino, entretanto, não é praticado apenas por homens, expressando-se igualmente como uma questão delicada mesmo entre e para as mulheres. Para a psicanálise, o ódio violento traz a marca de um excesso de gozo Outro, rebelde ao significante, deslocalizado no corpo e cuja falta de limites causa um empuxo à infinitização. Tal gozo torna aqueles em posição feminina mais vulneráveis às situações de violência.

As portas que nos são abertas à noite são as mesmas que são fechadas de dia. Faço então um chamamento a nossa comunidade de psicanalistas. Uma troça, talvez um slogan para os psicanalistas no século XXI. Sejamos, não-todos trans! Ratificando o discurso do analista sempre subversivo, avesso a qualquer tentativa de normatização, fazendo furo na fixidez do discurso neoliberalista que pretende classificar, contabilizar e avaliar os falasseres, reduzindo-os a um corpo universal meramente biológico, medicado e higienizado.

Que possamos ser analistas cidadãos como nos instigou Laurent, nos ocupando das questões concernentes a nossa época, sustentando o desejo do analista em ato. Abrindo as portas e ouvidos, não recuando frente aos trans. E que estes possam assim, abrir suas couraças e suas caixinhas de pan, assim como Dora, fazendo falar ao invés de calar o sintoma com pílulas da felicidade

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