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Os abonados do inconsciente e seus grampos

José Augusto Rocha – Participante da NPJ
Cartel: O que há de novo no contemporâneo?, mais-um: José Augusto Rocha

Duas frases

Para começar, gostaria de contar uma breve história anedótica. Certa vez, James Joyce e Ezra Pound encontraram-se. “‘Tenho trabalhado duro em Ulisses, disse James Joyce. ‘Escrevendo muito?’, perguntou Ezra Pound. ‘Duas frases’, disse Joyce. Pound, então, percebeu que Joyce não estava gracejando. ‘À procura do mot juste?’; ‘Não’, respondeu Joyce. ‘Já sei as palavras. O que procuro é a ordem certa delas na frase'”.

A ordem certa das palavras parece corresponder a tudo aquilo, em alguma medida, que a escrita joyceana, sobretudo a partir de seus trabalhos mais marcantes, não é. Afinal, esse Joyce que constrói a si mesmo[1], fabrica uma língua, muito mais que uma linguagem, para se constituir, ou, mais precisamente, uma língua para gozar do que para comunicar. A ordem certa, aliás, pode ser descrita como um encadeamento significante enquanto a escrita joyceana, em si mesma, é língua de gozo. Joyce é um caso paradigmático para pensarmos não apenas a relação entre psicanálise e literatura, mas o próprio campo da clínica. Foi Jacques Alain-Miller quem apontou uma prática pós-joyceana[2] como direção à psicanálise. Uma prática em direção ao sinthoma, que “não recorre ao sentido para resolver o enigma do gozo”[3].

Gostaria, assim, de iniciar essa pequena comunicação lembrando que é a respeito de Joyce que Lacan formula o termo desabonado do inconsciente. E que se há os desabonados do inconsciente, há os abonados. Gostaria, então, de partir deste ponto. Os abonados do inconsciente e seus grampos.

Os abonados do inconsciente e seus grampos

Durante uma supervisão, guardei uma observação do supervisor: “este sujeito não tem uma boa relação com o inconsciente”. Uma boa relação com o inconsciente não significa estar em dia com ele, nunca se está, como lembrou Miller; aponta, então, para uma relação entre o inconsciente e o sintoma. O que estava em jogo naquele caso. E que me levou, neste caso, a essa questão no Cartel: o que faz com que o sujeito se grampeie ao seu inconsciente? A princípio, “o inconsciente e o sintoma não pertencem a mesma ordem”[4]. Ou seja, eles podem manter uma relação, assim como também podem não manter. Se a relação é possível, é porque ela é grampeada, tal como duas folhas de papel, não porque o inconsciente e o sintoma sejam necessariamente a mesma coisa. O grampo é alguma coisa, portanto, alguma coisa, acrescente-se, com valor. Podemos destacar, como o faz Miller, o que assume essa função de grampo: o próprio falo, o Nome do Pai etc.

A Idade de Ouro da psicanálise, como descreve Miller, implicava na relação entre o sintoma e a verdade, pois “o sintoma se oferecia ao deciframento”[5] sem maiores dificuldades. A tal Idade de Ouro corresponderia à abertura, a esse momento inicial da Psicanálise.

Lembremos, por exemplo, como Lacan localiza o falo como significante, cuja função reside em “designar os efeitos do significado”[6]. É isto, aliás, que permite que se instale a “paixão do significante”[7]. Contudo, ocorre que, em determinados casos, a significação fálica não esteja instalada, muito provavelmente por haver uma invasão do imaginário[8]. Nestes casos, talvez seja preciso um empurrãozinho do analista. Algo que possa abrir, aos abonados, a experiência com o inconsciente, a esse inconsciente estruturado como linguagem.

O dado inicial, para Miller, contudo, não corresponde ao inconsciente, mas ao sinthoma, e duas considerações se fazem necessárias. Primeiro que o sinthoma “não é uma formação do inconsciente”, somando-se a esta uma outra — o sinthoma “designa precisamente o que o sintoma tem de rebelde ao inconsciente”. Não há deciframento, descoberta, revelação. Implicando “uma nova leitura do sintoma e um saber-fazer com a opacidade do gozo e com o real da pulsão, e nessa leitura podemos constatar que a interpretação analítica, tão enraizada na própria clínica, sofre uma mudança radical, passando a decifração do sentido para a leitura da letra de gozo”[9]. Portanto, uma psicanálise pós-joyceana “é uma prática mais centrada no sinthome que no inconsciente”[10]. Ou seja, os abonados do inconsciente são levados “ao incurável, ou seja, ao sinthome, que estava lá desde o princípio”[11]. Cada um é levado “às invenções possíveis que cada singularidade vai tecendo, vai construindo em uma análise”[12].

E os desabonados?

Quanto aos desabonados do inconsciente, por onde abri este trabalho, será necessário a continuidade do trabalho do Cartel. De todo modo, pode-se dar uma palavrinha ou duas antes de finalizar: desabonados do inconsciente não significa desabonados do sinthoma, com th. Fiquemos com este ponto.


[1] GARCIA, G. Joyce, construindo Joyce. Revista Brasileira de Psicanálise, 2007.

[2] MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 87.

[3] Ibid.

[4] MILLER, Jacques-Alain. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998. p. 366.

[5] MILLER, J. A. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p, 78.

[6] LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 667.

[7] Ibid. p. 695.

[8] Cf. MALEVAL, J-C. gica del delirio. Barcelona: Ediciones del sebal, 1998.

[9] GONÇALVES, N. Como ler um sintoma. In.: O campo uniano: o último ensino de Lacan e suas consequências. Goiânia: Editora Ares, 2022, p. 102.

[10] TUDANCA, L. Abonados e desabonados. XI ENAPOL. Textos de orientação, 2023, p. 6.

[11] Ibid.

[12] Ibid.

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