O estilo que faz Escola Késia Ramos (EBP/AMP) Esses tais artefatos que diriam minhas angústias,…
No caminho de toda fala, a opacidade do gozo
Cleyton Andrade (coordenador)
José Augusto Rocha, Melissa Barboza, Samuel Nantes
Todo falasser, no meio do caminho da cadeia significante, esbarra em uma pedra. Uma pedra que não se resume a um mero obstáculo. Uma pedra que não se dissolve no deciframento. Uma pedra… no meio do caminho.
Nos tempos da política da felicidade, do recrudescimento da extrema-direita e do fortalecimento da metrificação encampada pelas TCCs, parece não caber pedras no caminho. A fim de resistir aos imperativos de normatização, aos apelos da ciência e às políticas segregatórias, a psicanálise encontra seu caminho justamente no caminho das pedras.
Há algo nos dizeres de Lacan, afirma Jacques-Alain Miller[1], a certa altura, em seu curso Todo el mundo es loco, rebelde ao deciframento e à avaliação; algo que resiste e resta, tal qual uma repetida pedra no percurso de um poema – ou de uma fala.
Uma pedra: o objeto a
Miller[2] inicia El goce opaco del síntoma resgatando a interpretação lacaniana sobre o cogito cartesiano “penso, logo existo”, “onde penso, ali sou”. No entanto, para Lacan, a articulação entre ser e pensamento – dizer que só sou ali onde penso –, limita o sujeito a existir no nível da consciência, de modo que no seminário 15 ele havia dito de antemão: “jamais se é tão sólido no seu ser como quando não se pensa”[3].
Temos, então, o ensaio de uma mudança, pois as relações entre fala e sentido, ou mais precisamente, entre significante e significado, no primeiro ensino de Lacan, encontram um lugar diverso do que vai culminar no Ultimíssimo Lacan.
Tal mudança inicialmente se verifica na construção do objeto a – a pedra, como diz Miller[4], fazendo referência a um dos poemas mais conhecidos de Carlos Drummond[5] – um suplemento em relação ao significante. Ou seja, o objeto a é o que existe em todo caminho da fala e habita o corpo: “é o objeto no qual se condensa o gozo do corpo sob o efeito da fala. Ali o sujeito encontra o seu ser, mas fora do sentido”[6].
A dificuldade de todo corpo falante se encontra com o gozo, opaco e excessivo que a ele se apresenta. “No falasser, o gozo é sempre um real: não está tudo bem”[7]. O sentido é uma das formas onde o sentido gozado se encarna. Contudo, é só a partir a exclusão de sentido que nos aproximaríamos da dimensão do gozo opaco. Um gozo que inaugura, tal como afirma Jésus Santiago[8], uma compulsão à repetição ao indicar a impossibilidade de satisfação e apaziguamento, cuja marca, por excelência, é não obedecer ao Princípio do Prazer. O que se repete, em suma, não é o mesmo, não é o achado, é o circuito percorrido.
Esculpir a pedra
O fora de sentido seria, portanto, da ordem da ruptura com o pensamento e estaria na contramão do movimento de conquistas de deciframento do inconsciente; na contramão, então, do que Miller[9] chama de exaltação e excitação do sentido; na contramão, enfim, de encontrar e decifrar um sentido para as manifestações do inconsciente. Dito de outro modo, Lacan recusa o engodo da nitidez, do imperativo de tornar inteligível o que parecia estar ininteligível. Não se trata de uma hermenêutica para psicanálise.
Logo, se o que resta, insiste e repete, é indissolúvel, nos resta aprender com Drummond – fazer da pedra o próprio recurso do dizer, a esculpindo a partir da fala.