skip to Main Content

Os Laios de hoje em dia

Sandra Conrado

Em mais uma Noite de Biblioteca, discutimos a peça Último Édipo, dentro dessa atividade chamada pela nossa Comissão de Uma escrita em cena. Contamos com a presença de nossos convidados, Sandra Luna e Jorge Bweres, drataurgista e diretor, respectivamente, que nos presentearam com suas falas sobre todo esse processo de adaptação e direção de um trabalho que, como espectadora, tive o privilégio de assistir, em 2017, no Theatro Santa Roza, fundado em 1889, portanto, o mais antigo da nossa cidade, João Pessoa-PB.

Trago algumas pontuações para nossa conversa a partir das impressões que retirei da peça, juntando àquelas que vocês mesmos devem ter tirado também a partir do que assistiram no YouTube.

O significante “último” do título da peça marcava para mim, ali em 2017, um sentido ambíguo. “Último” carregava o sentido de derradeiro na lógica contemporânea de um Édipo não funciona mais? Ou “último” nos daria o tom de que há um novo Édipo, um Édipo atual, que funciona, mas com outras configurações?

A peça retrata o Édipo clássico de Sófocles e seus personagens: Édipo, Jocasta, Creonte, Tírésia e Laio, o rei morto. A trama gira em torno do assassinato de Laio e a descoberta trágica de que o autor do crime é seu filho Édipo, que, no ato desta descoberta, se desespera diante de tamanha desdita. Jocasta, prevendo a desgraça que viria ali se instalar, corre atrás de Édipo aos gritos de “NÃO, NÃO, NÃO”.

Na sequência,  um silêncio prenuncia a voz oracular: “nenhuma maldição divina paira sobre ti, Édipo. Apenas foste marcado pelas maldades das criaturas que te geraram”.

Édipo, de volta ao palco teatral, põe-se frente à plateia, simulando-a ao povo de Tebas para quem fala, pondo em seu discurso uma ruptura ao seu infortúnio construído pelo dramaturgo, no caso Sofócles, que lhe impôs o sacrifício de ser condenado para salvaguardar a sina imposta pelo Outro oracular: “matarás teu pai e tomará sua mãe como esposa”. Se de um lado há um oráculo que prevê um filho assassino, agora, este mesmo oráculo atual traz a marca de seu infortúnio como efeito e o preço de ser filho das criaturas que lhe geraram. Um novo Édipo, num novo desenho que surpreende os expectadores.

Édipo, empoderado pelo Outro oracular, assume um discurso vigoroso, convicto e repleto de determinações como cabe a um rei. Se a plateia aguardava o retorno de um rosto ensanguentando, ele anuncia:

“Não estou cego (…) Meus pés ainda me permitem ficar de pé” (…)” Que minha dor jamais volte a me fazer sacrificado”. “Eu não serei a cartada final e nem não serei bode expiatório de uma trama infame”. (…) “Eu matei um homem? Quem viu? Quem me acusa? Creonte, usurpador do trono? Tirésias, um charlatão?” (…) “Não vou arrancar meus olhos, mas as máscaras”. (…) “Chega de farsas! Danem-se!! O vilão dessa trama foi Laio que deu o filho para ser morto por capangas. Foi Laio quem tirou de Jocasta a sua cria”. (…) “Ele que julgava a humanidade por sua própria medida” (…) “Eu não matei, seu coração é que sucumbiu os excessos de sua arrogância” (…) “Eis o Último Édipo!”

Então, vamos partir do que nos ensina esta surpreendente peça teatral, produzida pelo grupo Lavoura, inspirada no livro A história Universal da Angústia[1] de Waldemar Solha, com direção de Jorge Bweres e dramaturgia de Sandra Luna, cujo significante “Último” nos transmite, longe da ideia de finitude, se assim posso dizer, uma continuidade, uma atualização que nos ajuda a pensar os novos modos da lógica edipiana hoje, e com os quais o psicanalista se orienta na clínica contemporânea. Um Édipo que já não conta mais com o Nome-do-Pai como agente que interdita nem opera mais na união da lei ao desejo.

Se até então Freud se serviu do mito de Édipo para nos transmitir a relação fantasmática da criança, via saber inconsciente/oracular: “matarás teu pai e tomará sua mãe como esposa”, e seu estatuto de sentimento de culpa pelo desejo (neurose); na peça, esse saber, vindo do campo do Outro oracular, retira Édipo dessa maldição, apontando outra face da história: é Laio quem decreta a morte do filho, jogando-lhe nas mãos de um servo que o abandona pendurado pelo pé em uma árvore.

O espetáculo, por outro lado, não nos mostra dois Édipos, um clássico e um moderno, revela uma ruptura que se processa pelos efeitos que o tempo modificou no estatuto da função do pai. A peça teatral nos abre duas vias para pensarmos o mesmo mito e a torção da tirania que cega e cala um dizer, uma interpretação, um discurso que faz furo no trágico. Sandra Luna em sua adaptação nos transmite, também pela via do mito, como um filho pode responder ao pai nos tempos de hoje. Na sua dimensão de sujeito, Édipo mostra sua indignação frente a um pai fraco e decadente que sucumbiu ao preço de não saber, pela via da própria castração, receber o ódio desse filho.

Se Freud recorre ao mito de Édipo é para nos fazer entender a complexidade da relação simbólica, do sujeito e seus objetos primordiais e sua entrada no mal entendido da língua. Para Freud, o Complexo de Édipo diz de uma interdição e não de um incesto, de uma incompletude e não de uma plenitude, ficando o encontro desse objeto a cargo da fantasia. Para Freud, Édipo não dormiu com sua mãe, mas com uma mulher, Jocasta. Como objeto que satisfaria o homem na origem, a mãe é um objeto perdido e interditado pelo agente paterno que resguarda a criança de cair nessa falácia imaginária de encontro/plenitude.

Eis a problemática que a peça teatral nos coloca para pensarmos o Édipo, hoje. A leitura atualizada de Sandra Luna, sem ignorar o simbólico, coloca o pai em outro patamar, cuja função promove um furo no próprio simbólico.

Ponto curioso se quisermos nos servir, aqui hoje, da posição de Laio enquanto pai contemporâneo e que gostaria de trazer para nossa discussão. Como podemos falar do interdito de Laio sobre Édipo se seu primeiro gesto foi o de abandonar seu filho à sua própria sorte? Trata-se de um pai omisso frente à operação que confronta seu impossível na função de ser pai? O que ele limita? O que ele priva? Até onde o interesse de Laio iria senão o de se livrar da própria condição de pai morto? Como poderia um pai entrar no discurso da mãe se ele não se dá a ver a sua própria falta, capaz de tocar o desejo feminino?       No fim das contas é o próprio Édipo que toma esse lugar, pondo-se a serviço do saber do inconsciente: “dormirás com sua mãe”. Se no mito de Sófocles isso é possível, no próprio mito isso é trágico: gozo mortífero.

Se estamos na época do desencantamento do Nome-do-Pai, como nos diz Miller, é que o Outro, diz ele, já não tem como oferecer garantias, porque não passa de um semblante.[2]

Isso está na peça: Édipo se queixa de Laio na medida em que, como pai, há uma decadência, mas também um furo simbólico que, em desordem, pôs em risco a sua renuncia pulsional.

Do meu ponto de vista, é isso que essa escrita em cena nos revela: um Édipo, “O Último”, tomado pelo tempo dos novos imperativos que deixam as crianças em posições vulneráveis, onde o inconsciente real, opaco e sem sentido, já não encontra mais as ficções necessárias às construções metafóricas para dizer da subjetividade. Um tempo onde o pai não se dispõe mais aos equívocos de sua própria condição impossível de educar. “Laios” angustiados que apostam em suas funções desde que orientadas pelo saber da ciência e dos discursos pedagógicos que tentam oferecer fórmula prontas do que é ser um pai e do que é ser uma mãe, sem levar em conta o mal-entendido da própria condição de existência. Das mães que esperam de seus rebentos realizações que lhes faltaram, mas guiadas por uma ordem de ferro, de preferência aqui e agora, a exemplo de uma criança que recebi com sintoma de gagueira para poder tropeçar e fazer fenda no desejo materno de lhe tornar “um juiz para mandar em todo mundo”.

Em tempos de evaporação do pai, entendimento de Lacan em Nota sobre o pai[3], pudemos perceber que a aposta da psicanálise vai mais na direção de acolher os S1 sozinhos, já que o S2 (saber furado) escapou junto com pai contemporâneo. De qualquer forma, continuamos contando com as crianças – “Édipos” -, sejam como objeto, sejam como causa, porque elas vão interrogar, vão agitar e muitas vezes se disporem, ao preço de um gozo mortífero, romper com o pacto familiar.

Eis o novo Édipo, eis um sujeito que encontra no tropeço sua versão de pai, na dose do não-todo. “Último Édipo” na recusa da posição “de bode expiatório das tramas infames” e do “delírio familiar” que orienta os analistas no encontro com as crianças deste século: “as crianças-amo”, “imperativas”, “agressivas” e que neste mito, adaptado ao contemporâneo, revelam-se na fragilidade de um pai (Laio) assustado com o ódio imaginário do filho (Édipo).

Foi isso que consegui extrair dessa peça teatral e que trago para nossa conversa de hoje.


[1] SOLHA, W. J. História Universal as Angústia, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
[2] MILLER, J-A. El que no existe y sus comités de ética, com colaboração de Eric Laurent. Bueno Aires: Paidós, 2005, p.11
[3] LACAN, J. [1968] Nota sobre o pai. In: Opção Lacaniana 71, 2015, p 17.
Back To Top