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Encontro de corpos[1]

Cassandra Dias Farias

Três anos após termos sido surpreendidos pelo imperativo do distanciamento, em que o contato entre os corpos passou a representar risco de vida; após termos que inventar formas de continuar produzindo, sustentando uma clínica, realizando atividades, seminários, cursos e jornadas através dos meios digitais; aprender a operar com plataformas, protocolos, dificuldades de acesso, o público na vida privada, enxurrada de lives, ausência de fronteiras que nos possibilitaram a participação em eventos nacionais e internacionais: a vida aconteceu diante das telas.

A Psicanálise teve que se reinventar, a Escola de Lacan foi encontrando a maneira para que o horror da pandemia não paralisasse os psicanalistas e sua formação. Mais do que nunca, foi preciso não recuar diante do real em jogo. Mais do que nunca foi preciso que a Associação Mundial de Psicanálise e suas sete Escolas segurassem com firmeza o leme para conduzir o barco pela longa tempestade. Uma Odisséia, como aquela enfrentada por Ulisses, na tragédia grega.

Os pilares sobre os quais a Psicanálise foi forjada por Freud foram abalados: sessões sem divã, realizadas no face a face intermediadas pelas telas – presença do objeto olhar entre analista e analisante – pagamentos via PIX retirando a materialidade desse objeto… e, nas atividades da Escola, o anonimato das câmeras fechadas. Omnivoyeurs, hiperconectados.

Um novo real. Conforme já anunciado por Jacques Alain Miller, em 2012: “Há uma grande desordem no real”[2].

“Eu diria que capitalismo e ciência se combinaram para fazer desaparecer a natureza e que o que resta do desvanecimento da natureza é o que chamamos de real, quer dizer, um resto, desordenado por estrutura”. [3]

Nunca experimentamos tanto a desordem no real quanto no início dos anos vinte desse século, com a escalada do vírus em progressão geométrica. Inimigo invisível e onipresente, mutatis mutandi, que seguiu seu traçado macabro, multiplicando as estatísticas de letalidade. Sustentado pelo avanço do fascismo no mundo e de discursos extremistas que forçaram os psicanalistas a declararem uma escolha: não há saída possível para a psicanálise fora da democracia.

E aqui chegamos. Sobreviventes desse apocalipse chamado COVID 19 e da ameaça do fascismo, que ainda paira sobre nós como uma sombra.

O cenário atual traz de volta o horror da guerra e os limites do simbólico em promover um pacto civilizatório frente à pulsão de morte. Freud, após ter atravessado duas guerras, termina os seus dias exilado de sua terra natal, fugindo do projeto obscurantista e delirante de extermínio de um povo sobre o outro. “O real é o que retorna sempre ao mesmo lugar. O acento deve ser colocado sobre o “retorna”.”[4] Estamos diante daquilo que retorna.

Em sua correspondência com Einstein, em 1932, Freud deixa clara a sua posição enquanto falasser político: “Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa”.[5]

Podemos acrescentar com Lacan, que profetizou a escalada do racismo: “Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando como um subdesenvolvido”[6].

No entanto, a segregação na ordem do dia se impõe e ameaça o pacto civilizatório, revelando o real descarnado e sem lei, uma vez que: “Una raza se constituye por el modo en que se transmiten por el orden de un discurso los lugares simbólicos”. [7]

O simbólico convulsiona e o real avança, sem lei, por entre a exuberância do imaginário. A subjetividade da época provoca os analistas a uma leitura daquilo que se passa nos corpos e na civilização.

A Escola Morcego, esse ser ambíguo, “que tem asas analíticas, como se diz, e patas sociais”[8], é o que nos faz chegar até aqui. A trazermos nossos corpos em novo movimento de retorno às cidades, sem prescindir das telas que vieram para ficar, mas procurando conduzir nosso barco pelo mundo digital e navegar em meio aos discursos que recortam os tempos sem perder de vista a radicalidade do que constitui o fazer analítico. “Eu sou aquele que digo que sou” é o grande slogan das pautas identitárias que desconhece a existência do inconsciente.

“Pero hay que decir que, para constituirse en analista, hay que estar muy mordido; mordido por Freud principalmente, es decir, creer en esa cosa absolutamente loca llamada inconsciente y que he tratado de traducir como el “sujeto supuesto saber”.[9]

Sejam quais forem as condições de navegação, é a Orientação Lacaniana que garante a Rosa dos Ventos, apontando a direção do coletivo de psicanalistas. O Uno da causa analítica.

É em nome dessa causa que se deu o trabalho em torno da III Jornada. Ao longo de seis meses, uma lógica foi sendo construída, norteada pela política do Uno e sua relação com o múltiplo no nosso território Nordeste. Buscando um movimento orgânico, de dentro para fora, a partir de cada passo dado no enlaçamento das transferências decididas em um trabalho de Escola.

São muitos os agradecimentos a serem feitos.  Mas vou concentrar em apenas um. No nome da Coordenadora Geral da III Jornada, Cláudia Formiga. Dela partirão as saudações a todos que compuseram esse corpo Jornada.

Mas, à Cláudia, que com seu desejo decidido e incansável, fez esse acontecimento ganhar vida e tornar-se possível, um agradecimento especial. Pela parceria cotidiana, pela comunicação diária – muitas e muitas vezes ao longo de um dia – pela sintonia, pelas elaborações e reflexões que possibilitaram ir encontrando a lógica de Escola e sua política, desde as pequenas até às grandes decisões. Para cada impasse, uma invenção encontrada. Buscando a leveza e o humor. Foi colocando o corpo na partida que Cláudia aceitou o desafio.

E me ensinou que a relação de um sujeito com a causa analítica chama para si um lugar que não recua diante do real em jogo, inclusive no coletivo dos psicanalistas. E que, uma vez sendo assim, uma Jornada se faz.

Portanto, sob as bênçãos do Leão do Norte, símbolo do povo pernambucano e dessa terra de frevo, maracatu e caboclinho, de tantas outras folias, de sotaque inconfundível, bolo de rolo – patrimônio imaterial de Pernambuco – de Chico Science e do movimento mangue beat, de Capiba, Alceu, Brennand e Kleber Mendonça, do Homem da Meia Noite e da Mulher do Dia e tantas mais referências de uma cultura tão rica, que a Seção Nordeste acolhe os corpos falantes na cidade do Recife para esses dois dias de trabalho, reafirmando a aposta na circulação do discurso analítico e sua transmissão em meio à loucura do mundo.

“Quando as teias da aranha se juntam, elas podem amarrar um leão”. Provérbio africano –  A confissão da leoa, Mia Couto.


[1] Fala da diretora geral da Seção Nordeste na mesa de abertura da III Jornada.
[2] MILLER, j.A. – O real no século XXI , Scilicet, p 23.
[3] Id ibid, p29.
[4] LACAN, J. – A Terceira, Opção Lacaniana 62, p 16
[5] FREUD, S. – Por que a guerra? P 241, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora.
[6] LACAN, J. Televisão, p 58 – JZE Editor
[7] MILLER, J. A. – Extimidad, p 57 – Paidós Editora
[8] MILLER, J. A – Questão de Escola: Proposta sobre a garantia, Opção Lacaniana online, número 23
[9] LACAN, J. –Intervencion Conclusiva en El Tribunal de la EFP en Deauville. 01/08/1978
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