O estilo que faz Escola Késia Ramos (EBP/AMP) Esses tais artefatos que diriam minhas angústias,…
E o Mais Um?[1]>
Cassandra Dias Farias
Aos 63 anos, após ser excomungado da Sociedade Francesa de Psicanálise, Lacan inaugura na história da psicanálise, uma nova perspectiva institucional, rompendo com o modelo das sociedades deixado por Freud e tomando como premissa, o conceito de Escola. Já às voltas com a elaboração do seu objeto a e à altura do seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – ele assume para si e tão somente, a oferta de uma formação para os psicanalistas.
“Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise, da qual garantirei, nos próximos quatro anos pelos quais nada no presente me proíbe de responder, pessoalmente a direção.”[2]
Na efervescência cultural dos anos 60, Lacan subverte a lógica predominante para a formação dos psicanalistas e funda sua Escola pautada em dois grandes pilares: o cartel e o passe. A experiência mostra suas crises, levando-o a dissolver a EFP em 15 de março de 1980, no hotel Pullman Saint Jacques onde, durante mais de uma hora, fala para uma audiência de oitocentas pessoas e apresenta um programa de refundação da Causa Freudiana.
D’écolage é um escrito produzido no bojo desse contexto de dissolução e encontra-se no site da Escola Brasileira de Psicanálise, como um dos textos norteadores para o trabalho com os cartéis. Tirar consequências da política de Lacan para a formação do analista, tendo em vista a função do Mais Um é o propósito dessa noite.
Qual a relação do Mais Um com essa política e qual a razão para que ocupe essa função a partir de uma relação decidida com esse campo fundado por Lacan? É a lógica que tentaremos acompanhar.
Inicialmente, trata-se de um trabalho de luto, de uma dissolução subjetiva, que não é evidente simplesmente pela constituição de um cartel, mas sim, a partir de uma posição subjetiva que requer uma descolagem.
Esse significante d’écolage utilizado por Lacan é muito feliz por condensar d’ecole, descolagem e decolagem. O corte na cola imaginária que constitui os grupos constitui a premissa fundamental onde se assenta a subversão que Lacan sustentou: um golpe certeiro na identificação, responsável por efeitos mutualistas e que velam o real em jogo na experiência analítica. “Pois a mola fundamental da operação analítica é a manutenção da distância entre o I e o a”.[3]
A destituição subjetiva operada pela queda das identificações e dos semblantes faz revelar a existência do objeto para o sujeito, em uma virada em que o saber sobre esse estranho objeto da satisfação pulsional. Um objeto que escapa ao campo das identificações, pois não se trata da ordem do universal, nem do coletivo. Reside nessa relação entre sujeito e objeto o que há de mais singular, fruto da diferença absoluta que marca o sujeito de uma maneira irredutível.
O analista, é aquele que ao ocupar o lugar de semblante, pode “fazer reinar o objeto a”[4] . Essa torção de perspectiva – do Outro ao objeto – tem consequências sobre a relação do sujeito com seu modo de gozo, ineliminável e singular. Percurso de uma análise orientada pelo real do gozo, que não pode ser todo dito, mas pode ser mostrado, manipulado, torcido, cingido, escrito.
Um saber fazer com o incurável de cada um que aponta para “a sombra espessa”[5]da passagem de analisante para analista. Direção colocada desde o início de uma experiência analítica orientada pelo real e que reverbera para toda a concepção lacaniana dos dispositivos institucionais, numa perspectiva moebiana.
O passo dado por Lacan em dissolver e refundar, não admite retrocessos. É preciso ir em frente, sob pena de: “Só encontraremos o grudar-se…onde eu menos fiz Escola…que cola”.[6] Para decolar, há que se descolar.
A experiência de Escola consiste em estar advertido do efeito de cola, do grude das identificações que velam o que há de irredutível em cada um – a relação singular com o objeto – e as tentativas sempre precárias de subversão disso. Indo além do erro de Freud: “ter deixado os analistas sem recursos, sem outra necessidade além daquele de se sindicalizarem”. [7]
Os fenômenos de grupo, os interesses corporativistas, as disputas pela hierarquia, são intoxicações as quais os analistas não estão a salvo; Lacan colocou-se como inspiração para outro anseio, que lhe fez dar partida à Causa Freudiana, restaurando seu órgão de base, o cartel, que condensa toda essa lógica. A Causa Freudiana não é a Escola, é um campo, onde cada um terá a liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência deposita.
Ele nos apresenta a formalização aprimorada do seu órgão de base através de cinco pontos, em que destaco dois:
Segundo – a conjunção dos quatro se faz em torno do Mais um, que, se ele é qualquer um, deve ser alguém. Cabe a ele a tarefa de velar pelos efeitos internos à empreitada e de provocar nela a elaboração.
Quarto – não se espera nenhum progresso além daquele de uma exposição periódica, tanto dos resultados quanto das crises de trabalho.
O Mais um, para além de sua posição enquanto cartelizante, toma para si a função de velar por esse órgão de base frente ao empuxo sempre presente em um trabalho coletivo: formar um universal negando o que há de singular em cada um. A diferença precisa ser sustentada no que há de mais radical para que se produza uma elaboração. Como as mulheres, uma a uma.
Em que algo da descolagem em relação à identificação com o Mestre e o líder estariam em curso para esse que toma para si essa tarefa. O que implica, certamente, no trabalho de luto a que Lacan se refere, por ocasião da dissolução da EFP.
Não se esperar nenhum progresso também parece, a meu ver, uma disjunção importante a ser sustentada em relação aos discursos do mestre e da ciência. Tendo o objeto como agente e o saber no lugar da verdade, é o discurso do analista que comanda o trabalho de investigação em torno de uma questão que se diferencia de uma produção universitária ou a de um grupo de estudos onde a causa do desejo não encontra seu lugar.
No trabalho de cartel, pelo contrário, aquilo que move cada cartelizante no sentido do não saber é o que conta e isso diz respeito diretamente ao Mais um, que precisa destituir continuamente o empuxo ao discurso do Mestre, instaurando o vazio em torno do qual se pode produzir o objeto.
O Mais um como um oleiro, “a função artística talvez mais primitiva”[8] tratada por Lacan no seminário 7 – A ética da psicanálise – “E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo”. [9]
Como podem ver, é toda uma articulação que faz da função do Mais um, um fato de política. Articulado a uma doutrina, a um ensino que leva em conta o gozo de cada um e o feminino, tema que Lacan estava às voltas também, por ocasião da dissolução da sua Escola, no seminário 20.
Para a partida ou a decolagem da Causa Freudiana a partir dos anos 80 e apoiado na sua clínica, ele formula: “O gozo fálico é aquilo que consome o analisante”.[10]
É esse o embaraço fundamental, que faz com que para as mulheres – e não só para elas – “este gozo é um obstáculo para acasalá-las com o sexuado da outra espécie”. [11]
Para elas, a verdadeira satisfação situa-se na condição materna, nos diz Lacan, mas isso não garante que haja relação sexual, ratificada no real. Se a verdadeira satisfação é a fálica, por sua vez, ele nos apontou que há uma outra satisfação, não toda fálica, o gozo como tal sob a égide do ilimitado e do qual o falasser pode fazer um trânsito a partir de uma experiência analítica.
Deixando de ser consumido pelo gozo fálico a partir do que nos indica o gozo feminino. É com essa abertura que Lacan nos deixa, decolando a nave da Causa Freudiana para as grandes mudanças que estavam por vir, ao final do século XX e às portas do advento do cyber espaço, suas redes e algoritmos, dividindo as águas e fomentando novas identificações.
A raíz é a do mal entendido e disso Lacan não abre mão. E dessa pequena célula que é o cartel, órgão de base da sua Escola, centro de operações atravessado pelo furo, que uma práxis e uma política podem ecoar, sustentando a diferença radical em um coletivo que espera pelos resultados de uma elaboração singular trazida a céu aberto.