O estilo que faz Escola Késia Ramos (EBP/AMP) Esses tais artefatos que diriam minhas angústias,…
Tu Podes Saber
Cláudia Formiga[1]
“Tu podes saber”, que escolhemos como título desta I Jornada de Cartéis da Seção Nordeste, me ensejou uma reflexão sobre a relação entre Saber e Poder, tendo como pano de fundo a ideia de Lacan do cartel como órgão de base de sua Escola. Trata-se de um rápido sobrevôo que, provocada por esse título, me vi tentada a fazer sobre essa questão, que evidencia a importância da política do cartel na formação do analista.
Esse título nos foi inspirado pela frase que sub-intitula a revista Scilicet, criada por Lacan em 1968, com o objetivo de ampliar os leitores da psicanálise para além do círculo de sua Escola.
“Você pode saber o que pensa a Escola Freudiana de Paris”, que a revista Scilicet trouxe como estampa de capa em seu primeiro número, sintetiza e expressa o espírito que orienta a Escola de Lacan.
Cristiane Alberti, em seu artigo “Lacan, homem de revistas”,[2] discorre a respeito desse projeto de Lacan de difusão da psicanálise, e esclarece as razões de um endereçamento privilegiado dado por ele às revistas. Ela argumenta que essa escolha visava, por um lado, responder à atualidade de seu tempo, em uma época em que criar ou participar de uma revista representava um “ato inteiramente social”. E, por outro, que os textos curtos responderiam melhor ao movimento de Lacan, naquele momento, de desvencilhar a psicanálise do campo do inefável e do obscuro e de fazer da sua transmissão algo mais próximo ao campo da crítica e da produção científica. Segundo Alberti, “Essa mudança de endereçamento (a um novo leitor, para além do círculo de sua Escola) começou já em 1964. O interesse dos normalistas da época, além do público intelectual que afluia à Escola Normal Superior, modificou o foco do discurso, tornando-se ensino de Lacan.”[3]
Como sabemos, nesse momento Lacan se encontrava às voltas com as questões que o fizeram sair da IPA e criar a sua própria Escola, questões que ele descreveu extensamente em seu artigo “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, ressaltando o distanciamento entre o discurso analítico e o que, naquele momento, orientava a formação e a prática da psicanálise no âmbito da IPA.
Lacan se refere, nesse artigo, ao regime de saber vigente na IPA, em que o argumento de autoridade se apoiava no silêncio das “Suficiências”. A enfatuação dos analistas didatas, a ignorância crassa, o psicologismo analítico (todos esses, termos usados por Lacan para denunciar os deslizes na formação de analistas praticada pela IPA), que ocorria em total discordância com a radicalidade dos fenômenos descobertos por Freud e com os fundamentos da experiência analítica. Lacan observa “o paradoxo difícil de conceber de (que) numa comunidade cuja incumbência é manter um certo discurso (…) o silêncio impere”.[4]
Contrário a esse funcionamento da IPA, Lacan funda a sua Escola, cujo objetivo explicita desde o seu Ato de Fundação (1964) e o reafirma a cada nova formulação que fez (em 1967[5] e em 1980[6]), reiterando os seus objetivos e melhor precisando as razões de sua existência: a extensão da psicanálise e a formação do analista. Em sua proposta, Lacan esclarece que não só a Escola é o lugar onde se produz o trabalho responsável por zelar pela formação do analista, mas também que é desse trabalho que depende a continuidade da psicanálise no mundo.
Na Escola de Lacan, o desconforto causado pela ausência de um título vitalício (como o de analista didata, por exemplo) propicia a que um analista possa expor “as razões de sua clínica” e contribuir com um saber, sempre singular, que orienta a prática da psicanálise.
E desde esse início, Lacan é claro em atribuir ao dispositivo do cartel uma função de órgão de base de sua Escola. O cartel como meio para se produzir o trabalho necessário à sobrevivência da psicanálise, assim como para zelar pela formação do psicanalista, na medida em que visa uma elaboração provocada pelo real e não pela suposição de saber.
Rodrigo Lyra, colega da Seção Rio, em um texto que tem como título “A lucidez atual do cartel”[7], assinala muito bem esse aspecto, quando diz que o cartel passa a funcionar como uma espécie de “antídoto” à instalação do discurso do mestre que imperava na IPA. Nesse sentido, diz ele, “o cartel inscreve a Escola em um movimento permanente de elaboração em torno de um ponto de impossível, com o qual se depara qualquer um que empreenda uma busca por saber.”
A referência que fazemos, então, no título de nossa Jornada ao dístico da revista Scilicet se dirige a essa relação intrínseca que existe entre cartel e saber. O “Tu podes saber” entendido com um convite à cartelização, põe em cena o desejo, convoca ao engajamento à uma produção em nome próprio e descolado da mestria.
Em um artigo em que discute as crises no cartel[8], Bernardino Horne considera o saber como um elemento central na política do cartel. Citando Eric Laurent, Bernardino afirma que os vínculos entre o saber e o poder sempre ocuparam a reflexão de Lacan. Diz, ainda, que ao propor para sua Escola as formas institucionais que convinham ao discurso analítico – cartel e passe – Lacan teria encontrado uma forma de inscrever em ato essa reflexão.[9]
Em “A direção do Tratamento e os princípios de seu poder” vemos Lacan afirmar que “a impotência em sustentar autenticamente uma prática reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder”[10]. Tal como em uma análise, o desejo do analista está no extremo oposto à vontade de poder, podemos dizer que também o cartel ocupa um lugar de oposição ao poder, na estruturação da Escola.
Assim, podemos dizer que, na Escola de Lacan, o cartel articula a epistême e a política, ao convocar os analistas, no um a um, ao movimento contínuo de construção de uma rede de saber, mas também ao saber fazer com esse saber, que implica seguir em uma nova forma de laço com o trabalho de Escola.
A uma altura do seu texto, Bernardino lança a seguinte pergunta: qual a política do cartel? E diz que uma resposta de Lacan a essa pergunta é: “Tu podes saber, que preside a fundação da revista Scilicet, é a política do cartel”[11].
Sejam todo(a)s muito bem vindo(a)s! Que tenhamos todos uma Jornada animada e produtiva! Que possamos com vivo interesse acolher e discutir os temas da psicanálise, a partir das elaborações e questões dos cartelizantes que seguindo a recomendação de Lacan, hoje nos colocam “a céu aberto” os seus produtos de cartel. Vamos a eles?