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Um Novo Tempo…

Sandra Conrado

Movidos pelo tema do XXIV Encontro Brasileiro da Escola Brasileira de Psicanálise em novembro de 2022: Analista: presente!, a Seção Nordeste/EBP nos dias 04 e 05 de novembro de 2022, deu a nota e tom desta presença puxando o fio do tempo com a pergunta: “E o analista em tempos da evaporação do Pai?

Evaporação do pai, cuja segregação resta como cicatriz, no entendimento de Lacan em “Nota sobre o pai” de 1968.[1]

Ampliamos essa pergunta abrindo três frentes de trabalho para pensar as cenas das quais o analista não pode recuar pelo efeito do que o tempo modificou, seja na cultura, na família ou na clínica. Despertar para o novo! “Um novo tempo, apesar dos castigos, apesar dos perigos, da força mais bruta”.[2] Canção de Ivan Lins tomada como aporte para dizer de nossas reflexões acerca da ordem de ferro que coloca no zênite da civilização o império do gozo em sua força mais bruta. Mas, “estamos na luta, estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas, pra sobreviver”. Em tempo do pai nas nuvens é preciso que o analista esteja “atento ao que se deixa de herança”, como aponta a música de Lins. Se há modificação na cultura é preciso segui-la, pois como objeto da psicanálise, o inconsciente acompanha o tempo em que se encontra inserido. Não em vão, Lacan adverte aos analistas que estejam à altura do espírito de seu tempo.[3]

Foi pensando nesse tempo, onde a palavra está em declínio e os objetos do mercado e da ciência impactaram a função do discurso – fazendo do gozo a via irredutível à simbolização do pai que orienta – que apostamos neste tema para uma Jornada de trabalhos. Uma tentativa de ouvir dos analistas que acolhem do impossível de dizer, as possibilidades de extrair algo mais legível do gozo mortificador. No formato de seminários preparatórios junto com a comissão científica ampliada, pudemos traçar linhas para costurar o tecido que recobre os sujeitos viventes nos espaços do mundo.

O primeiro espaço dedicou-se à discussão sobre a família hoje, a “família holófrase”, expressão de Eric Laurent, discutida por Daniel Roy que traz para a cena o gozo em jogo e a crise que a fundamenta. A plenária e as mesas simultâneas nos permitiram abrir uma boa discussão tomando como pontos centrais as algaravias do mal entendido na família atual, a agitação do real, cuja presença do analista serve como instrumento para tornar o gozo mais legível diante das indefinições das funções familiares. Pontos destacados nos trabalhos clínicos de Bibiana Poggi e Maria Eliane Baptista e fundamentado por Nohemi Brown, ao acrescentar no jogo do gozo, “o caráter opaco da família”. Frase de Laurent que Nohemi considera orientadora, pois que tratará de não reduzir a família em uma série de funções para a criança, mas para situar o falasser dela, com seu corpo que goza, que perturba e que está no centro dessa opacidade.

A segunda plenária nos deixou várias provocações a partir da proposta de como os analistas estão lendo as cidades, o mundo, os novos modos de segregação e o discurso de ódio. Com o tema em torno da hipermodernidade, o discurso analítico e as armadilhas do novo mal estar, foram discutidas questões como política, racismo e as novas formas de identidade e identificações, além da segregação e os laços socias na contemporaneidade. Cleyton Andrade e Glacy Gorski contribuíram com esse debate e nossa convidada Flávia Cera trouxe uma excelente elaboração a partir do tema “A palavra que fere e os discursos que matam”, para pensar sobre como os discursos dentro dos parâmetros democráticos se infiltram e atuam como política de destruição, passando pela linguagem. Servindo-se do discurso analítico, Flávia propõe algo para além do que a própria democracia impõe em seus coletivos e universalizações. Trata-se, para ela, do que se produz além da diferença e do que a experiência analítica privilegia: o tropeço, a falha, por onde o novo pode acontecer e no que isso pode nos ajudar a trabalhar as relações políticas.

Nosso terceiro eixo dedicou-se às elaborações sobre o analista e a subjetividade de nossa época, contemplando a diversidade dos sintomas e a prática analítica num tempo em que o psicanalista conta apenas com as cicatrizes do pai. O inconsciente transferencial, o amor mais digno como laço que o analista sustenta para responder os efeitos devastadores do gozo, são questões trazidas por Gisella Sette e Elizabete Siqueira. Nossa convidada, Heloisa Caldas, propõe em seu trabalho uma passagem “Do nome do Pai ao Pai do Nome”, resgatando do primeiro ensino de Lacan o Nome do Pai, metáfora que nomeia, para na forma de pai do nome, não mais tributário do significante, se apresentar como cifra de gozo, cicatriz do trauma, significante isolado e assemântico que dará lugar à invenção do sujeito. Ao perguntar sobre “o que é um Pai?”, diz que não se trata mais de um dispositivo simbólico supostamente generalizado nem de uma proliferação de semblantes que possam dar conta do simbólico. Sobre isso, Heloisa propõe pensarmos na pluralização do Nomes-do-Pai, concluindo que para Freud o pai sempre foi uma questão e que a contribuição que a psicanálise pode trazer sobre isso é a de que o pai, segundo um ideal que sirva “para todos” é uma ilusão.

Com Elisa Alvarenga, convidada de nossa Jornada, pudemos contar com momentos muito ricos. Além do lançamento do livro de sua autoria “Entre o gozo e o desejo: uma leitura do seminário A Angústia de Jacques Lacan”, desfrutamos de dois seminários com contribuições valiosas para o tema proposto pelos eixos da II Jornada.

O primeiro trouxe o tema família, segregação e sintoma: o lugar vazio do pai. Chamado por ela de trio lógico na condução de um fio que ela guiou em suas elaborações, as quais destacamos em um pequeno resumo.

A partir de Laurent, Elisa faz observar duas questões: (1) a crise da família levou Freud a inventar o complexo de Édipo e (2) com Lacan, Laurent chamou de “familiarismo delirante” a vontade de conservar as formas conhecidas da família a qualquer preço. Assim, tanto nas instituições como nas famílias, cabe ao analista resgatar a particularidade de cada uma contra o ideal: o lugar do pai deve permanecer vazio, como causa e não como ideal. O pai deve ser responsável pelo seu gozo, transmitir a castração e encarnar a posição de semblante contra o universal intolerante e segregativo. Ainda com Laurent, nos fala Elisa, uma família, para ser digna de respeito, é aquela na qual cada um encontra espaço para sua particularidade residual.

Retomando a questão trazida pelo eixo da família faz uma pergunta: como entender o percurso da crise como princípio organizador da família?

A partir da leitura de Daniel Roy por Nohemi Brown, continua Elisa, a família deve ser abordada a partir do real do gozo em jogo e não em qualquer ideal de família ou de comportamento, abrindo espaço não só para a particularidade de cada um, mas também para o irredutível do desejo. Ou ainda, nas palavras de Miquel Bassols, considerando a família como um aparelho de gozo, o analista pode favorecer a desfamiliarização do gozo a partir da particularidade de cada um. Hoje, o real do gozo reordena a família.

Sobre o eixo da segregação, Elisa nos diz que Lacan, em 1967, no seu texto sobre “O discurso universalizante da ciência”, já antecipava uma época em que, com a evaporação do pai e sob o empuxo à eliminação das diferenças, a segregação se tornaria dominante. A subjetividade da época, caracterizada pelo rechaço dos ideais e um empuxo ao gozo sem limites, encontraria numa nova lógica coletiva as saídas para o impossível da iteração humana?

Para além do pai como garantia ideal e limite ao gozo, como se coletivizam os sujeitos hoje? Sobre essa questão, Elisa nos oferece a Conferência proferida por Miller em Comandatuba, “Uma Fantasia”[4] quando aponta que o discurso analítico teria a mesma estrutura do discurso da civilização contemporânea, no qual o objeto a está em posição de comando, com a ressalva de que, no discurso analítico, os elementos estariam ordenados e o objeto a, em função de causa, divide o sujeito levando-o a produzir S1, permitindo-lhe atravessar o plano das identificações, separando-se delas.

Trata-se de uma lógica bastante complexa. Por quê? Pergunta Elisa ao nos falar que em meio ao declínio da função paterna, temos, não apenas o empuxo ao gozo, mas o ressurgimento de alguns ideais superegóicos bastante explorados pela atual política brasileira.

Por esse caminho, Elisa destaca o declínio da função paterna, característico da feminização do mundo, no seio do qual, o enfraquecimento dos ideais dá origem a múltiplos significantes mestres próprios à diversas comunidades de gozo que se manifestam por uma ordem de ferro, mas também pela errância e precariedade. Trata-se para Elisa, do que Jacques-Alain Miller reserva como produção de um certo número de fundamentalistas que tentam trazer o gozo de volta à ordem androcêntrica, mergulhados na desordem, no delírio e na raiva.

Sobre o eixo do analista na diversidade dos sintomas da época, podemos destacar, também, alguns pontos fundamentais trazidos por ela sobre a necessidade do analista   situar-se em uma época que inevitavelmente o afetará. Como nos fala, nossa prática se dá por um mundo embalado pelo discurso da ciência e do discurso capitalista, onde o regime do mais e do excesso atinge os corpos.  E pergunta: como esses discursos atingem os analistas e praticantes em sua clínica? Como o analista encara o mundo cada vez mais real e tomado pelo vazio da evaporação do pai?

Após a construção de um percurso em Lacan dos anos 50, 60 e 70, ou seja,  do Édipo freudiano ao declínio do Nome-do-Pai, Elisa assegura a importância da referência do inconsciente para a psicanálise, deixando uma questão fundamental para nossos tempos: nos casos, porém, em que a hipótese de foraclusão do Nome-do-Pai não nos permite abonar o sujeito ao inconsciente, assim como naqueles casos em que o enxame de S1 continua zumbindo e o significante não marca o corpo de maneira privilegiada, como fazer consistir o corpo e fazer existir o falasser?

No seu segundo seminário, Segregação e Novos Sintomas, nos falou sobre a presença do analista frente aos efeitos de segregação de gozo e do mal entendido da despatologização da clínica dos novos sintomas.

Os seminários de nossa convidada, Elisa Alvarenga, em sua proficuidade provocaram uma calorosa discussão, nos deixando a marca viva da presença do analista que não recua no tempo. No dizer da colega Gisella Sette, parceira na comissão cientifica e autora de um dos trabalhos da terceira plenária, “continuamos insistindo… e com ventos que sopram forte. E ao correrem, céleres, os tempos aceleram as civilizações…Hoje nos encontramos na época em que a inexistência do pai evaporado marca sua presença”.[5]

Nossos agradecimentos a Elisa Alvarenga pelas questões, elucidações a um tema tão desafiador, mas muito caro aos psicanalistas engajados no avanço da psicanálise. Aos autores dos trabalhos das mesas simultâneas e das plenárias, em especial, a Nohemi Brown, Flávia Cera e Heloisa Caldas que, entre tantas atribuições e funções junto ao XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, fizeram um intervalo em suas agendas para contribuir conosco em um momento tão precioso.

Estendo também os agradecimentos às colegas da comissão cientifica ampliada Cristina Maia, Susane Zanotti, Claudia Formiga, Margarida Assad, Anamaria Vasconcelos e Cassandra Dias pelo brilhante e dedicado trabalho aos eixos, tanto na realização dos seminários preparatórios como na construção dos temas tão alinhados à proposta da II Jornada.

À Cleide Pereira pela parceria e olhar atento aos detalhes de cada ponto em cada canto dessa II Jornada, numa coordenação vibrante, criativa e muito cuidadosa.

Aos que participaram e nos lançaram suas questões e comentários

A todos, até breve!!!


[1] LACAN, J. – (1968). Nota sobre o pai. Opção Lacaniana, n. 71, p. 7. 2015.
[2] Canção de Ivan Lins – https://www.letras.mus.br/ivan-lins/46444/
[3] LACAN, J.  – Função e Campo da fala e da linguagem, In: Escritos, Jorge Zahar Ed. p. 322, 1998
[4] MILLER, J. A. – Uma Fantasia, Opção Lacaniana, n. 42, p. 7. 2005.
[5] Sette, G – O Inconsciente a as novas subjetividades. Trabalho apresentado nessa II Jornada na terceira mesa plenária, em 05 de novembro de 2022.
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