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Ressonâncias da Primeira Preparatória à II Jornada da Seção Nordeste Eixo 1 -“Família Holófrase”: a crise como seu fundamento

Coordenadoras: Cristina Maia e Susane Zanotti
Por Sandra Conrado

 Na noite de 19 de julho de 2022, iniciamos nossas atividades de preparação para a Jornada anual da EBP-Seção Nordeste. As coordenadoras do Eixo 1, Cristina Maia e Susane Zanotti, contribuíram com as pontuações proposta pelo eixo, desdobrando-as com ponderações e questões acerca do tema.

Para conversar com as coordenadoras, as convidadas Ana Aparecida e Vania Ferreira, trouxeram várias contribuições, com reflexão e perguntas, provocando, assim, não só um debate produtivo com as coordenadoras, como também com o público, ali, presente.

Cristina Maia inicia a apresentação do tema, introduzindo a família como veículo do discurso que transmite os ideais, mas também as proibições e os significantes que circulam em torno de um nome. Do vivente que tem uma inscrição simbólica como sujeito introduzido no mundo como falta. Uma inscrição simbólica que possa dar valor de interpretação do que se é no discurso do Outro. Ponto que dará à criança, segundo Daniel Roy, a condição de decifrar as suas coordenadas como causa de desejo, mas também como dejeto do gozo de seus pais.

Como lugar de transmissão a família também propicia a restrição de gozo que, por outro lado, permanece como resto, muitas vezes vivido nas formas de segredo que encobre o impossível de dizer do gozo dos pais ou mesmo do mal-entendido do encontro sexual, do qual sempre se é produto. Como instituição, a família recobre esse impossível.

De Eric Laurent, Cristina recolhe que não há criança sem família, sem instituição, pois mesmo que seja ela abandonada, há a instituição da rua que a recebe. A rua, o abrigo, o orfanato. Ainda citando Laurent, Cristina nos diz: “onde não há mais família, ela sobrevive, apesar de tudo. É a família do Um sozinho”.

E a partir do Um sozinho vai introduzir na sua apresentação a questão que nos interessa a partir da premissa de Laurent, “a família moderna é uma holófrase”, que Daniel Roy cita no seu artigo “Pais exasperados – crianças terríveis”, destacando o valor do hífen como o que compacta, mas também separa, e que desafia o analista contemporâneo a dizer sobre isso, frente a um gozo opaco que se condensa na forma de S1.

Cristina nos fala ainda sobre a inconsistência da família moderna, das suas modificações, complexidades e particularidades e faz uso do termo compactação para nos deixar algumas questões pontuais para o trabalho do eixo.

–  Os lugares do pai, mãe e filho estão compactados? Eles estariam mal situados? O que se pode chamar família hoje?

– Não é a crise da família, mas a crise como fundamento da família. Isso pode situar o que o tema da II Jornada atribui em relação à evaporação do Pai?

– Para o analista se coloca a questão: como receber uma criança “terceirizada”, com o estigma de terrível (com bastantes aspas), quando a família em geral e a escola não sabem mais o que fazer, tamanha a opacidade de gozo?

Em tempos de evaporação do pai, a partir da complexidade das famílias holofrásicas, o que pode o analista, num espaço que só mostra o S1, de tão denso que é? Quais as dimensões da interpretação quando diz respeito à parentalidade, mas também a pensar no trabalho do analista em instituições, na clínica da filiação, na procriação assistida? E quais são os avanços das biotecnologias?

Susane Zanotti abre sua apresentação com dois contos de Luis Fernando Veríssimo: “Palavras” e “De Areia”. Do primeiro, destaca uma reflexão sobre o valor dos significantes (o S1 no jogo da palavra “mágica” proferida por uma criança que só repete a mesma), e o modo que estes afetam o corpo da criança, bem como a fragilidade do próprio registro simbólico. Do segundo, extrai a ideia trazida pelo conto para pensar uma analogia com o analista além da nostalgia do Nome-do-Pai. Tomando esse fio, faz referência a uma passagem do texto de Nohemi Brown, “Família Holófrase”, em que esta observa, num caso conduzido por Estela Solano, no qual foi possível operar um trabalho de abrir intervalos, cifrar a língua falada, marcado pelas algaravias do mal-entendido do qual se nasce.

Vânia Ferreira introduz seus comentários tomando a intersecção entre os pais e a criança quando, ali, adotava-se o desejo como orientador da falta e da nomeação. O que temos nos novos tempos é essa intersecção ocupada pelo gozo. O que se tinha como separação surge, hoje, como colagem, dando outra forma ao discurso do Outro e ao sintoma. A holófrase é esse não intervalo, em que o espaço para a construção de um saber, S2, fica fechado, produzindo apenas um gozo circulatório em torno de um S1 sozinho. A função do analista serve como furo nesse circuito, para que a criança possa, como não-toda, abrir-se para novos arranjos ou construir uma bricolagem. Um trabalho que possa buscar novos significantes e, assim, tornar o gozo mais legível.

Vânia também coloca a importância de se conceituar a “Família Holófrase”, no sentido de compreender que nela não se encontra mais, como se tinha na família patriarcal, as funções bem definidas. O significante “holófrase”, que Lacan se serve para falar da psicose, do fenômeno psicossomático e da debilidade mental, traz uma pista da dificuldade em lidar com a metáfora paterna, e que faz consonância com o tema da II Jornada, na qual se pode pensar a evaporação do Nome-do-Pai. Este tema, também proposto por Lacan, pode ser recuperado para se pensar o que hoje, na família, não dá mais conta de fazer as simbolizações significantes ou as inscrições do simbólico.

Vânia nos fala que, na sua experiência clínica, muitas vezes as famílias precisam ser acolhidas – o pai, a mãe, a tia, os avós, a escola. Isso exige do analista, diz ela, um manejo diferenciado, delicado, para que, como diz Daniel Roy, algo possa passar pela operação de uma descompactação do S1.

Ana Aparecida introduz sua fala, colocando a criança em cena ao perguntar: que saber podemos recolher dela quando enfiadas nos enredos das mutações que a família apresenta? Os pais surgem como reféns, ora de uma ordem de ferro do capricho do desejo materno, ora guiados por um coach parental que, rastreando o seu disfuncionamento, trará soluções para as manifestações de desordem instaladas na família.

É entre o filho perfeito prometido pelo ideal e a criança terrível , que se instala a crise e Ana Aparecida extrai de Roy que essa crise se expressa em um tempo no qual “os objetos mais de gozar se tornaram autoridade e fundaram a lei de todas as formas de ideal”

Tomando as palavras de Marie-Hélène Brousse, que interroga se as crianças de 2021 recobrem ainda o homem como pai e a mulher como mãe, Ana Aparecida destaca a parentalidade, que, segundo Brousse, resta à criança se tornar o fundamento e não mais o efeito da família, cabendo a ela escolher seu lugar em uma diferença que se pluralizou.

Diante disso, destaca a importância do analista na sua escuta com a criança. Qual seja? A possibilidade de extração dos significantes que esta oferece, em seu valor singular, na busca de um espaço que entreabra a brecha da separação, permitindo a esta criança fazer do S1 um S2. Coloca também que a especificidade do analista está mais em apreender do que em supor saber. Apreensão da língua que se fala na família, sua gramática e vocabulário, longe de um modelo ideal e sem avaliação.

Desta forma, diz Ana Aparecida, é possível colocar a criança na lógica do não-todo e oferecer outros recursos, de modo que crianças, pais e mães não sejam dependentes das identificações familiares, do amor parental e filial, mesmo sabendo que não existe ser falante que não seja de uma família. Aqui, o trabalho com os pais se faz presente.

“Pais exasperados – Crianças Terríveis”, tema que Daniel Roy nos oferece como premissa da família hoje.

Ana Aparecida ressalta a pergunta: o que fazer com o hífen? Um equívoco que marca a família e que se situa contra a norma. É possível descompactar essa ordem que envolve pais e filhos fechados em apuros frente a um gozo feroz e sem mediação? Roy nos dá alguma bússola: de Freud, vermos as invenções que o inconsciente realiza frente ao mal-estar e, de Lacan, tentarmos usar a palavra para outro uso que não aquele para o qual é feita. Algo que se assemelha a um chiste, a uma poesia. Trabalho fino e delicado em meio ao imperativo que des-funciona.

Essas pontuações levantadas pelas colegas renderam uma conversa muito produtiva, com troca de ideias, tomadas na articulação afinada com o tema da II Jornada anual da EBP-Seção NE, que se propõe a discutir este ano a ação analítica em tempos de evaporação do Nome-do-Pai.  O Eixo I, “Família Holófrase”: a crise como seu fundamento, abriu nesta noite a participação do público que, atento ao tema, contribuiu com perguntas, comentários e deixou algumas provocações para se pensar a atuação do analista na família contemporânea, quando não se pode contar mais com as incidências do simbólico em sua base.

Seguem algumas:

– A importância de se tomar a holófrase, a partir de Lacan, visando o hieroglífico, o qual não comporta um deslizamento na cadeia. Neste sentido, o corpo inscreve um número. Qual seria a diferença dessa montagem holofrásica a um casal parental, que articula algo da ordem de uma parentalidade?

– Tomar como referência as “Duas Notas sobre a criança” de Lacan, o objeto a como fantasma materno e a criança enquanto sintoma do casal parental. Isso se sustenta na perspectiva da família holófrase?

– Diante do declínio do pai, da evaporação do pai nessa lógica do Édipo atual e da pluralização, o gozo da mãe passou a dominar? Como resguardar a família, se o gozo da mãe parece mais acentuado diante da evaporação do pai?

– Diante das questões diagnósticas hoje, como interrogar o que toca o corpo? Quando o S1 não se desloca e o corpo se agita, fica o gozo como discurso?

– Temos hoje as questões diagnósticas (TDAH, transtorno de oposição), e a gente se interroga: o que toca o corpo? Com a holófrase, o S1 não se desloca, o corpo se agita. Assim, passa-se a interrogar mais o gozo, enquanto discurso. Podemos pensar que estamos no território de lalíngua, não mais no mal-entendido da interpretação, mas um mal-entendido anterior, que toca o real do corpo?

– Dois aspectos para se pensar essa operação de separação que Lacan traz no seminário 11: ele fala dessa meia lua, dessa intersecção, e coloca a função do objeto a. Essa função de resíduo que um pai tenta sustentar, o qual não se transmite sem ser pela via do mal-entendido. Essa meia lua, pelo que está sendo discutido, está fechada a essa abertura, daí a noção de “Família Holófrase”, que Roy toma a partir de Laurent. Qual a função do analista nessa tentativa de abertura dessa meia lua? Recuperar essa dimensão de resíduo que é o objeto a, tanto como causa e objeto, quanto como resto dessa operação? Como esse resto que remete ao gozo pode servir ao que as próprias crianças estão pontuando no seu dizer? Parece que são as crianças que estão indicando esse caminho, são as crianças que vão trazendo esses significantes soltos. Isso é de grande preciosidade para a clínica.

– Qual é a função do analista hoje, quando ele segue as pistas que as próprias crianças dão com esses S1s isolados, como trouxe Susane com essa questão da palavra “mágica”? Serve a um outro tipo de invenção, a uma certa bricolagem? Não são mais as crianças psicóticas. Não dá mais para dizer, a partir das “duas notas sobre a criança”, que o objeto a do fantasma materno é psicose e que a verdade parental estaria mais do lado da neurose.

– Quando se diz “o analista em tempos da evaporação do pai”, estamos falando também de uma temporalidade. O que essa temporalidade de evaporação tem a ver com essa holófrase? Estamos vivendo uma sociedade holófrase, uma sociedade compactada e uma dificuldade, sem espaço para o desejo, para o novo e para uma invenção.

– O que poderia romper mais essa holófrase, senão a criança?  A criança é esse objeto que interroga, que traz o transtorno e que, muitas vezes, é ejetada por essas famílias. Famílias que não suportam o que a criança traz e que vão romper com aquele pacto familiar. A criança de hoje incomoda porque ela pode abrir uma brecha na holófrase. O que a criança tem a ver com o mundo holófrase? A crise na raiz do mundo, que é uma raiz que não é só social. O que o simbólico faz com esse impossível hoje?

– Partindo-se do pressuposto de que se sabe o que é uma família, o problema seria: interroga-se uma família holófrase? Pode-se situar a família como objeto político ou não? Quem toma a frente hoje, pelo menos no Brasil, para defender a família? Ela está em risco? Se ela não está, então, não precisa se sair em defesa dela. Isso não colocaria em questão para pensar a noção de família holófrase?

– Ao dizer que a família está em crise, a gente está dizendo o quê? Que a crise é um problema a ser solucionado ou é a sua própria condição?

Questões no Chat:

– A família, agora, para além dos fatos de discurso e linguagem, após a evaporação do pai, é fato de gozo? Holófrase – S1 sozinho?

– Nesse sentido, se nossa clínica aponta para as invenções (ou gambiarras), quais cuidados tomar para não alimentar o sintoma da contemporaneidade [de um mais-de-gozar na lógica do Um]?

As questões estão aí, abertas, aguardando outras palavras, outras perguntas que podem seguir nas discussões das preparatórias seguintes, mas também em forma de artigo. Escrevam, tragam suas perguntas, suas suposições a respeito das famílias contemporâneas. O tema desse eixo 1 está lançado e a bibliografia, incluindo alguns textos citados nessa noite, estão no site de nossa II Jornada.

Até a próxima!!!

Nordeste, 19 de julho de 2022


Referências
BROUSSE, Marie-Hélène – O Buraco Negro da diferença sexual, Cien Digital, No. 23, novembro/de 2019 http://ciendigital.com.br/index.php/2019/11/17/o-buraco-negro-da-diferenca-sexual/
BROWN, N – “Família Hoófrase” . Inédito
LAURENT. Institución del fantasma, fantasma de la institución. In: Hay un fin de analisis para los niños. 2º edición. Buenos Aires: Colección Diva, marzo de 2003
ROY, D. Pais exasperados – crianças terríveisn https://institut-enfant.fr/wp content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.
__    Quatro perspectivas sobre a diferença sexual, Cien Digital, No. 23, novembro/de 2019 http://ciendigital.com.br/index.php/2019/11/17/o-buraco-negro-da-diferenca-sexual/
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Ironias do tempo. Organização: Adriana Falcão e Isabel Falcão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. Se vc quiser colocar as páginas especificamente das duas crônicas: De areia (p. 103-104). Palavra (p. 175-176).
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