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Comentários sobre o filme Girl

Ondina Machado

Girl é um filme comovente. Trata da luta de Lara para se livrar da “pequena diferença”[1] que se apresenta como uma mancha na sua bela imagem de mulher. Ela vive o desencontro entre a sua identidade de gênero e sua imagem. Ela sabe que o falo é “o significado maior, global”[2] na partilha dos sexos. Encarado dessa maneira o órgão passa a ser significante, aquele significante que significa o sujeito para outro significante. É justamente por isso que ela o rejeita. A cirurgia de redesignação de gênero, então, daria conta de extirpar a mancha em sua imagem, o apêndice incômodo que nega sua identidade. Mas nem todos vivem essa radicalidade.

Alguns sujeitos trans encontram outros caminhos para fazer com que sua identidade de gênero seja reconhecida pelo Outro: modificam seu modo de vestir, requisitam um nome social que contemple sua identidade, usam o pronome de acordo. São providências que pode fornecer o reconhecimento pelo Outro, tão ansiado, daquilo que já é para ele uma verdade sobre seu ser.

São muitos os caminhos, cada um faz o seu:

  • O uso de uma peça do vestuário feminino possibilitou, para um determinado sujeito, a construção identitária almejada. Ao chegar em casa, corre para o espelho para ver-se mulher.
  • Para outro, foi necessário um segundo passo. A vestimenta masculina e o nome social não foram suficientes para harmonizar seu corpo e sua identidade. O tratamento hormonal trouxe-lhe, além da imagem, o sentimento de ter um corpo.
  • Um terceiro precisou recorrer à cirurgia, não sem antes fazer um trabalho de elaboração de sua identidade de gênero, percorrer os labirintos das identificações, trilhar as vias dos S1 do desejo do Outro. O resultado da cirurgia veio, então, confirmar um sentimento íntimo que o acompanhava desde muito jovem.

Cada época tem seu mal-estar, o fenômeno trans é o mal-estar da nossa cultura, como nos indica Jacques-Alain Miller[3]. Contudo, para além do fenômeno cultural, há o sofrimento de cada um desses sujeitos que buscam dar sentido a sua existência sexual criando arranjos singulares. Para Lacan, o gênero é um efeito de discurso, o que quer dizer que cada um pode se nomear como queira, levando em conta que toda nomeação depende de significantes que estão no Outro. Então, não basta nomear-se, há um trabalho simbólico a ser feito, a interpretação que cada um dá ao encontro do significante com o seu corpo.

Aqui comentaremos o trabalho feito por Lara, esclarecendo que o filme está baseado em uma história real. Tomaremos Lara nessa interseção entre o personagem e o sujeito.

A pequena grande diferença

Lara faz parte de uma minoria que só aumenta. O descompasso da imagem corporal com a identidade de gênero não é nenhuma novidade. A novidade está na possibilidade tecnológica que torna possível essa adequação, isso sim é o próprio de nossos tempos. A chamada ‘epidemia trans’ está diretamente ligada ao discurso científico que, não só oferece, mas também incentiva as modificações corporais.

No caso de Lara, o gênero como discurso não deu conta da angústia de portar, no real do corpo, aquilo que o discurso sexual toma como o universal do sexo masculino. Forçar pela cirurgia o reconhecimento do discurso sexual é, segundo Lacan, um erro[4]. Não que ele condene a cirurgia, mas enfatiza, que havendo ou não cirurgia, um trabalho simbólico é necessário. Algumas vezes, nessa construção/elaboração, uma solução identitária aparece. Da mesma maneira que o uso de calcinhas não encerra a questão sexual do primeiro sujeito que apresentei acima, o tratamento hormonal também não resolve para o segundo e, tampouco, a cirurgia elimina a angústia do terceiro.

O discurso sexual é a interpretação que o social faz do corpo anatômico. Sob o ponto de vista pessoal, o dado anatômico não é suficiente; o sujeito precisa consentir com a denominação vinda do Outro social. E esse consentimento não é um mero dizer Sim!, é também um trabalho de integrar, o tanto que seja possível, o modo singular daquele sujeito ser aquilo que no Outro tem aquela denominação. Ou seja, ninguém é homem, mulher, cis, trans, homo, hetero e todas as demais possibilidades de designação de gênero da mesma maneira.

Para a psicanálise, o gênero é um acontecimento de discurso, já o gozo é um acontecimento de corpo. Além deles, temos o discurso do amor, aquele que tenta fazer existir a relação sexual, ou pelo menos serve de semblante à relação que “não há”. Entendendo que não se trata de que não haja a relação sexual, mas que o que há é a “não relação”, nesse caso, não há relação entre o gênero e gozo, por exemplo, ou entre gênero e objeto, enfim. Na medida em que o “não há” vale para todos, todos nós temos algo de trans. Não na intensidade do sofrimento dos que se veem compelidos a transicionar, mas todos nós vivemos a experiência de uma certa inadequação. Para Lacan, o discurso do amor é a maneira singular como cada um dá conta do “não há”.

A verdadeira mulher

No caso de Lara há uma dificuldade a mais no desencontro que vive entre identidade e imagem que diz respeito a sua vocação e seu desejo de ser bailarina clássica. Mesmo com a puberdade de menino inibida, ela não deixa de ter um corpo atlético. O desafio é enorme. A cena em que ela vê as meninas rebolando ao som de um Rap dá a dimensão do fosso que se abre entre o seu corpo e o ideal de um corpo de mulher.

Aí aparece outra questão: o que é uma mulher? Há uma essência de mulher?

Hoje correu nas redes sociais uma tira da Laerte em frente ao espelho se maquiando e uma voz que grita: “Você nunca será uma mulher de verdade”. Laerte pára de se maquiar e com aquele gesto que lhe é característico dos braços apoiados na perna e virados para fora do corpo diz: gente, e agora?

É um deboche, evidentemente. O que é “uma mulher de verdade”? Existe isso? Alguns reduzem a mulher à uma vagina e, assim, defendem políticas públicas voltadas às “mulheres com vagina”. Seria o mesmo que fazer a equivalência entre o homem e o pênis.

Bem, vejam que já voltamos ao início de nossa conversa, portanto é hora de parar, não sem antes concordar com Miller quando diz que em relação ao gênero, “todo mundo perde o norte”[5].


[1] LACAN, J. O seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p.16.
[2] Ibid., p.19.
[3] MILLER, J.-A. 2021, ano trans. Em: Lacan quotidien, n. 928, de abril de 2021. Acesso: https://lacanquotidien.fr/blog/2021/04/lacan-quotidien-n-928/
[4] LACAN, 2012, p. 17.
[5] Miller, 2021.
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