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“Estar a sós”, solidão feminina.  Comentário ao filme Certas mulheres

Graciela Bessa

Começo agradecendo a Késia Ramos, coordenadora desta atividade Cinema e Psicanálise da Seção Nordeste, como também à diretoria desta Seção, o convite para comentar o filme Certas mulheres, escrito e dirigido por uma mulher, Kelly Reichardt. É um grande prazer estar aqui com todos vocês.

Confesso que o que me chamou a atenção ao assistir este filme pela primeira vez é que se trata de um filme dos detalhes, das entrelinhas, dos olhares que se encontram e se perdem.

Ele foi dirigido e escrito por Kelly Reichardt, baseado em contos da escritora Maile Meloy. O filme estreou em outubro de 2016 nos Estados Unidos, tendo sido indicado ao prêmio de melhor filme e melhor atriz, com Lily Gladstone, no Gotham Awards. Certas mulheres recebeu a premiação de melhor filme no London Film Festival; Lily Gladstone foi eleita melhor atriz coadjuvante no Los Angeles Film Critics; no New York Film Critics Circle, Michelle Williams foi eleita melhor atriz coadjuvante.

O jornalista e crítico de cinema Francisco Carbone diz o seguinte sobre esse filme:

Enquanto homem, por mais sensibilidade que tenha, jamais chegarei no alcance de leitura do feminino em todas as suas idiossincrasias. E se Kelly sempre teve sua visão focada em questões ligadas ao gênero a qual faz parte [sic], seu novo filme é quase que exclusivamente um produto de interesse prioritário feminino, com um jogo que o transporta exclusivamente para o simples e o mundano das relações femininas e seus desdobramentos.[1]

De modo rápido e apressado, podemos nos deixar enganar ao tomar esse filme por um viés feminista, denunciando o modo hostil com que os homens tratam uma mulher, mesmo que essa hostilidade surja de modo sutil. Na primeira história, por exemplo, um cliente só aceita o veredito do advogado consultado por ser um homem, pois sua advogada lhe dizia a mesma coisa durante oito meses, e ele não lhe dava crédito. Temos a demonstração de um velho clichê machista de ignorar a voz de uma mulher simplesmente porque é uma mulher. Na segunda história, uma mulher em uma cena com dois homens – seu marido e Albert, um velho morador da região – não é ouvida. É inquietante o modo como aquele senhor a ignora, e seu marido é conivente com a hostilidade. A terceira história acontece num encontro totalmente contingente entre duas mulheres. O encantamento da fazendeira pela professora e advogada Beth Travis, representada por Kristen Stewart. É uma história que se diferencia das outras: o encontro entre elas, o momento em que seus olhares se encontram. A crítica feminista à posição masculina de “garanhão” surge na figura do professor substituto que, ao se apresentar, não deixa de dizer que é um recém-divorciado, fala dirigida para a única jovem da sala.

No início desse semestre, precisamente entre 31 de março a 03 de abril de 2022, aconteceu o Congresso Mundial de Psicanálise da AMP, cujo tema foi “A mulher não existe”. Esse aforisma lacaniano “A mulher não existe” quer dizer que não há um universal que englobe todas as mulheres, que exista ao menos uma mulher que saiba sobre seu ser de mulher. Embora A mulher não exista, existem mulheres, uma a uma, cada uma em sua invenção, cada uma em sua versão de mulher. Isso quer dizer que as mulheres não fazem conjunto, que se referidas ao conjunto será sempre um conjunto aberto ao infinito. Ao chegar ao final do Congresso, tivemos a clareza de que o tema do feminino não se esgota, haverá sempre reticências, pois, quando se trata de dizer o indizível da mulher, há sempre um semidizer. É preciso sempre um esforço a mais.

O filme é composto por três histórias, aparentemente sem conexão uma com a outra, a não ser por pequenos detalhes. Elas se passam no estado de Montana e todas têm relação com a cidade de Livingston. O amante de Laura Wells, protagonista da primeira história, é o marido de Gina, da segunda história. Na terceira história, há dois elementos que fazem conexão com as anteriores: a advogada professora mora na cidade de Livingston e o olhar de Jamie dirigido à advogada Laura Wells quando ela chega a seu escritório, acompanhada de seu cachorro. À medida que formos avançando no comentário ao filme, perceberemos que há outros elementos que atravessam essas histórias.

A primeira história se inicia com uma paisagem sombria, árida. O silêncio é rompido pelo som de um trem de carga. É uma cena que evoca a solidão, que não se dissipa com os amantes. Ela ainda na cama, ele já se arrumando, trocam algumas palavras, e ele sai. Nenhuma palavra de amor, nenhuma jura de amor eterno, nenhuma promessa de um outro encontro, nem um gesto de carinho. Ela permanece no quarto, recostada na cama, absorta, com um olhar distante, aparentemente perdido. Nesse encontro está presente a sua solidão, que será marcada em vários momentos da história. Vale ressaltar que não é uma solidão sofrida, um estar só, que a lança para uma demanda de amor, mas um estar a sós.

O tema principal da história não acontece em torno do desencontro amoroso, mas entre uma advogada e um cliente que não aceita que não possa reivindicar o pagamento do seguro devido a um acidente de trabalho que o incapacitou a continuar trabalhando. Fuller é um personagem que se vitimiza, abalado, perdido, raivoso. O homem trabalhador, competente, tal como foi lembrado pelo xerife pelos serviços que fez, não existe mais. Se antes era um homem potente, agora não é mais. A falta está de seu lado, a qual ele vive como degradante. É um sujeito cuja dimensão da fala se encontra no campo da comunicação, endereçada ao Outro, visando reconhecimento e compreensão.

Ao longo da história, Fuller está sempre demandando a sua advogada que aceite um convite para um café, que possa vê-la para conversarem, nomeia a consulta ao outro advogado como um encontro, “então temos um encontro na sexta”. Seria Fuller um machista que não dá credibilidade ao que sua advogada lhe diz ao aceitar de pronto o veredito do outro advogado? Não digo que esse viés não esteja presente, mas há aí uma sutileza, um pequeno detalhe que não podemos deixar passar.

Fuller, ao não aceitar o veredito de Laura, pode prolongar durante oito meses os encontros com ela, pode ir ao seu escritório, falar-lhe e tentar arrancar dela uma palavra a mais. Não aceitar o veredito sustentava sua demanda de falar com ela. Depois que essa estratégia é desfeita pelo advogado, ele rende o vigia do Fórum e pede a presença dela. Como não consegue ler, devido ao acidente, ela vai ler os depoimentos que falavam sobre ele. É o depoimento de sua advogada, relatando o acordo que Fuller aceitou fazer com o empreiteiro, que o faz perceber que não há mais o que reivindicar ao Outro. É quando se responsabiliza pela sua escolha. Depois que é preso, ele envia uma carta para ela. Após algum tempo, Laura lhe faz uma visita na cadeia. Ele a questiona por que nunca respondeu a carta que lhe enviou. Não se trata mais de um homem com raiva, culpando o mundo pelo que lhe aconteceu. Há um consentimento com sua perda. Ele lhe diz: “Fique tranquila, está tudo bem. Eu seria preso de qualquer forma”. Agora, como não são mais possíveis os encontros, ele lhe demanda que escreva cartas, pode ser sobre qualquer coisa. Pouco importa o sentido que possa conter, mas que elas sejam escritas e cheguem a seu destinatário. Lacan, ao comentar o conto “A carta roubada”, de Edgar Alan Poe, nos propõe que para o destinatário a carta ocupa o lugar do ponto cego e com isso mantém a presença do que lhes escapa, e o que escapa é da ordem do significante. É o campo do sem-sentido que é evocado por Fuller ao demandar uma carta, “escreva qualquer coisa, não importa o quê”.

Suponho que a cena final da primeira história nos dê a chave de leitura para as duas passagens anteriores do filme: a aceitação rápida demais do veredito do advogado consultado e os longos oito meses em que ele ia regularmente conversar com sua advogada sobre sua situação. De acordo com Lacan[2], a carta produz um efeito de feminização naquele que está em posse dela; uma vez que é letra, sua importância não se reduz ao sentido que possa levar. Poderíamos pensar numa feminilização do personagem Fuller? O importante da carta/letra é que ela chegue ao destinatário.

No trabalho apresentado por Gabriela Grinbaum numa das plenárias do Congresso da AMP, ela colocava do lado das mulheres a fala e do lado dos homens o silêncio. Na primeira narrativa de Certas mulheres, o silêncio está do lado da personagem feminina. O amante termina, ela não se desespera: à noite está deitada no sofá com seu amigo fiel, assistindo a um programa de televisão. Uma mulher de poucas palavras, uma mulher que está a sós. A presença do seu olhar para o nada marca essa personagem. Com quem faz parceria? Fica claro que não é com o amante nem com seu cliente.

A segunda história também se inicia num cenário que evoca a solidão, o silêncio interrompido pelo barulho das águas do rio. Gina, interpretada por Michelle Williams, faz uma caminhada matinal nos arredores do local onde quer construir uma casa de campo. Nesta história, Gina é uma mulher que se apresenta mais obstinada pelo que quer, mantém seus posicionamentos, reclama do que lhe incomoda. Sua relação com a filha adolescente é tensa, e ela culpa o marido por fazê-la parecer como megera para a filha. Sua queixa do marido é que ele não facilita as coisas para ela, seja com a filha, seja com Albert, um velho morador da região que tem umas pedras da época da independência.

A relação mãe e filha é marcada por um descompasso: se a mãe diz para ela que não teve ninguém para lhe dizer as coisas, por isso teve que descobrir sozinha, a filha interroga a mãe sobre o porquê de lhe perguntar as coisas, uma vez que não acredita no que ela (a filha) lhe diz. Freud já apontava que a relação entre mãe e filha é marcada pelo ressentimento, pela decepção. Uma menina abandona a mãe como objeto de amor ao descobrir que a castração é condição da feminilidade, é o que faz com que dirija sua demanda de amor ao pai. Não mais apoiado na concepção de que a diferença sexual se divide em ter o falo e não ter o falo, Lacan, em “O aturdito”, diz que a relação mãe e filha pode estar marcada pela devastação, uma vez que a filha espera da mãe, como mulher, mais substância que do pai.[3] Isto quer dizer que há algo do feminino que não se resolve no campo do simbólico, no campo das identificações. A menina espera que, como mulher, sua mãe possa lhe dizer algo sobre essa satisfação que se experimenta no corpo e não se tem palavras para definir, explicar.

Um momento marcante na história é quando ela e o marido estão na casa de Albert para convencê-lo a vender as pedras da época da independência. De um lado, está Albert, que ignora as colocações de Gina, como se ela não estivesse ali; de outro, o marido, que não se posiciona frente à hostilidade daquele senhor. Mas Gina quer essas pedras e não irá ceder; ao contrário, mantém-se firme e encontra um momento em que ganha sua simpatia por um instante. Quando ele imita o canto das codornas e confessa como o interpreta, ela encontra aí uma brecha para também interpretar a resposta das codornas ao seu chamado. É desse jogo de pergunta, “como vai, como vai”, e de resposta, “estou bem, estou bem”, que Albert escuta, ao menos uma vez, o que Gina tem a dizer.

O desfecho dessa história é um encontro com amigos no local em que a casa será construída para comemorar as pedras doadas por Albert. Ela conseguiu, mas continua parceira de sua solidão. Na última cena, Gina está sentada na carroceria de seu carro tomando vinho, com o olhar para o nada que a rodeia. Ela não está só, várias pessoas estão presentes, mas está a sós.

Quem seria o parceiro dessa mulher? Não seria a filha, nem tampouco o marido. Seu parceiro é a solidão.

Na terceira história, a diretora nos impõe um cenário mais desolador: em pleno inverno, a paisagem coberta pela neve, uma fazenda cujos habitantes são os cavalos e um cachorro. É aí que se encontra Jamie, uma jovem mulher que, desde criança, cuida de cavalos. É um trabalho de inverno, é o que responde à advogada Beth Travis, quando lhe interroga sobre o que faz. Será que a relação de Jamie com a solidão é da mesma ordem que a de Laura Wells e Gina?

A história se desenrola a partir da contingência de um encontro, marcado por um equívoco homofônico entre os nomes de duas cidades. Certa noite, andando de carro pela cidadezinha perto da fazenda, Jamie observa que algumas pessoas estão entrando num colégio. Resolve entrar também e se senta numa sala de aula. Logo em seguida, entra Beth Travis, uma jovem advogada que, por medo de não conseguir pagar suas contas, aceita este emprego: dar aulas sobre o direito dos alunos.

Ao final da aula, Jamie lhe mostra onde pode comer algo antes de dirigir por várias horas até chegar à cidade onde mora e, às oito horas da manhã, começar a trabalhar num escritório como advogada.

As duas vão à lanchonete e conversam; ou melhor, Beth fala sobre sua vida, seus medos, inseguranças, enquanto Jamie a ouve sem a interromper. É nesta história que a presença do olhar é mais fulgurante. Em seu olhar, é possível testemunhar a paixão que passa a nutrir pela professora. Essa cena se repete enquanto Beth vai até a cidade dar aula.

No dia em que chega como de costume para ouvir sua professora advogada, de modo desconcertante, ela percebe que Beth não irá mais. Na iminência de nunca mais vê-la, pega o carro e começa a dirigir. Chega a Livingston ainda noite. Ao andar pela cidade, encontra alguns lugares com placas de escritório de advocacia e, ao amanhecer, vai em busca de Beth. Ao encontrá-la, o que foi um encontro se descobre marcado pelo desencontro. Beth se mostra desconcertada com a presença de Jamie procurando por ela. Não há nada a ser encontrado, o silêncio se faz presente entre as duas. Jamie retorna para a solidão de sua fazenda.

Ao encontrar a jovem advogada, Jamie por um tempo pensou que seria possível operar uma passagem do “estar a sós” para um “estar a sós com” pela via do amor. Ou seja, fazer representar sua solidão no campo do Outro.

É um filme que abraça a causa feminista? Não. Pensá-lo sob essa perspectiva é reduzir aquilo que ele aborda com tanta sutileza e beleza, em seus divinos detalhes. Em qualquer história, em qualquer diálogo, em qualquer encontro entre os personagens, o que se faz presente é a impossibilidade da comunicação, são os limites do simbólico. O próprio cenário em que as histórias acontecem apontam para isso. É um filme que apresenta, de modo poético, a não-relação, a não-relação sexual em sua forma mais radical através da solidão. Não é um sentimento de solidão, uma queixa de estar só.

Miquel Bassols[4] faz uma diferença entre o estar só e o estar a sós. A solidão representada pelo estar só, uma solidão enquanto sentimento, da qual o sujeito se queixa, aponta para o fato de que ele está confrontado ao insuportável do que lhe é mais próximo, o insuportável de sua verdadeira parceria, essa presença do objeto que é uma presença que não pode ser negativizada. Diferente do estar a sós, uma solidão mais radical sem representação possível no lugar do Outro e que pode levar o sujeito a uma satisfação em sua solidão. O estar a sós, segundo Bassols, é um modo de renunciar à solidão que não tem outro horizonte que o autoerotismo da pulsão. Temos aqui uma solidão não como fim, mas como meio para outra coisa. Ou seja, a solidão como meio para aceder a essa zona de extimidade que é o Outro gozo, um meio para obter um gozo suplementar. Nada perturba essas três mulheres em seu silêncio, tudo é calma.

Lacan, no seminário Mais, ainda, diz que a mulher parece estar muito mais a sós na medida em que está mais em relação direta com a radical alteridade de seu gozo.[5] Miquel Bassols nos esclarece que se trata aí de uma solidão que não sabemos nada sobre ela, uma solidão que é ruptura de saber, que se apresenta quando o sujeito se confronta com o gozo feminino, esse gozo sem representação significante, mais além do falo.[6]

Termino este meu comentário com uma passagem do texto “O aturdito” que atravessa essas três histórias, demonstrando em cada uma de suas personagens uma satisfação em sua solidão: “[…] mesmo que se satisfaça a exigência do amor, o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira”[7].


[1] CARBONE, Francisco. O olhar desmontado. Cineplayers, 16 out. 2016. Disponível em: https://www.cineplayers.com/criticas/certas-mulheres. Acesso em: 03 abril 2022.
[2] LACAN, J. O seminário sobre “A carta roubada”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 13-68.
[3] LACAN, J. O aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 448-497.
[4] BASSOLS, M. Soledades. Desescrits de psicoanàlisi italiana, 16 nov. 2009. Disponível em: http://miquelbassols.blogspot.com/search?q=soledades+II. Acesso em: 06 abril 2022.
[5]  LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
[6] BASSOLS, M. Soledades. Desescrits de psicoanàlisi italiana, 16 nov. 2009. Disponível em: http://miquelbassols.blogspot.com/search?q=soledades+II. Acesso em: 06 abril 2022.
[7] LACAN, 2003, op. cit., p. 467.
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