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O Novo no Amor: Modalidades contemporâneas dos laços

Maria Wilma S. de Faria[1]

Gostaria de começar falando da alegria em estar ao lado das coordenadoras Liège Uchôa e Margarida Assad, duas colegas, companheiras de um percurso de uma vida de trabalho. Agradecer também a Ana Eliza, que acabo de conhecer e à Cassandra, por me permitir trazer algo da minha experiência.

Gostei muito do cartaz da atividade dessa noite que ilustra um band-aid com seus furinhos jogado entre pedras, nos remetendo a pensar sobre o quanto é árdua a clínica das toxicomanias, e de como cada sujeito vai sendo convocado a inventar sua maneira de lidar com a inexistência da relação sexual, com angústia, com sintoma, com a devastação, com o amor, e mesmo às vezes, tamponando, como fazem os toxicômanos, com o objeto-droga.

Nem sempre poderíamos pensar no Toxicômano em sua relação com o amor, a partir do aforismo proposto por Lacan: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo[2]”. Porquê aqui, o amor introduz a dimensão da falta e a possibilidade de um laço. É uma abordagem do amor em sua função de véu, fazendo suplência à inexistência da relação sexual. O impossível da relação sexual encontra seu limite e sua resposta, na ilusão de que essa relação existe pelo encontro amoroso, ilusão de que é possível fazer Um, de que é possível alguma complementariedade. Sabemos que há dois dizeres que não se recobrem, há dois que não se compreendem, algo que faz parte do mal entendido entre os sexos. Eis por que Lacan   diz é o “encontro, no parceiro, dos sintomas e dos afetos de tudo que marca em cada um o rastro de seu exílio da relação sexual[3]” o que provoca o amor, o que permite vestir o mais-de-gozar com uma pessoa.

Em oposto à essa concepção, lidamos na clínica das toxicomanias, com sujeitos nada afáveis à relação amorosa. Do amor, eles nada querem saber! Pelo contrário têm como marca enquanto sujeitos, o movimento de separação, de rechaço em relação ao social, ao Outro, incluindo aí o sexual, rompendo assim os laços. Geralmente ficam “casados” com a substância, solitários, muitas vezes em uma dimensão de resto, que se sustenta no excesso. Há a presença da dimensão autoerótica do gozo, que afasta o toxicômano não só da linguagem como da dimensão do amor. É dessa maneira que Miller[4]   adverte-nos do estatuto da droga como um objeto não causa de desejo, mas como causa de gozo. A droga “não é uma experiência de linguagem, mas ao contrário o que permite um curto-circuito sem mediação, uma modificação dos estados de consciência, a percepção de sensações novas, a perturbação de significações vividas do corpo e do mundo.  (…) a experiência toxicomaníaca justifica que se introduza o termo gozo para qualificar o que, nesse caso, se situa mais além do princípio do prazer, o que não está ligado a um temperamento da satisfação, mas, ao contrário, a um excesso, a uma exacerbação da satisfação que conflui com a pulsão de morte”.

Assim podemos deduzir o toxicômano como o paradigma de nossa época, alguém inserido não na lógica do amor com sua divisão, mas fazendo da droga seu parceiro exclusivo, seu objeto mais-de-gozar. Miller[5] afirma que vivemos sob a égide “da ditadura do mais-de-gozar”, onde se tem a “liberação do gozo” e onde o um-sozinho seria o standard pós-humano. É daí que Miller[6]  propõe a toxicomania como um anti-amor. “A toxicomania (…) é um anti-amor, pois prescinde do parceiro sexual e se concentra, se dedica ao parceiro (a)-sexuado do mais-de-gozar”. Eis a doutrina do amor onde o corpo sexuado é dispensado.

Uma vez isto posto, trago a vinheta de um caso clínico, onde podemos conversar sobre a questão do amor na toxicomania, o exílio na linguagem, e indagar quem é o parceiro do sujeito? Com quem o sujeito joga sua partida? A partir deste caso, investigamos como o analista pode fazer parceria com o ser falante marcado por uma impulsão, fazendo atos desvairados, passagens ao ato, numa vertente de excesso sem controle com o beber. Sintomas mudos que apontam a dimensão do “não penso” colocando o corpo em evidência e risco.

Joana me procura dizendo que sua vida mudou completamente após uma histerectomia: Nunca mais fui a mesma. A médica sem nunca a ter advertido, após a cirurgia para retirada de um cisto, lhe comunicou ter sido preciso extrair o útero e também seus dois ovários. Chora muito dizendo: Tiraram meu útero e ovários! Passei a não me sentir mais mulher. Há um vazio, um oco. Passei a ser um nada, um resto! Sempre fomos muito fogosas, sempre fomos muito femininas (se refere às mulheres da família). Menstruar fazia parte disso. Hoje tenho que tomar hormônio duas vezes por dia, e ainda por cima, às vezes, esqueço-me de tomar!” A partir desse fato, rompeu com o namorado, foi se afastando das pessoas, se isolando, entregue ao que chama uma depressão horrível: não tinha ânimo para mais nada.  Pois não entendia ter-lhe sido tirado tudo o que faz uma mulher existir.

O hábito de beber, que era comum em sua vida, foi desde então, se tornando constante, primeiro nos finais de semanas, depois também durante a semana. Isso passou a comprometer sua relação no trabalho, atrasos constantes, faltas, perdas de promoção. Passava os fins de semana no sofá da sala, assistindo TV, entrando em sites de relacionamento onde buscava desesperada uma parceria amorosa e bebendo até apagar (a- pagar). Passou a se sentir velha, indesejável e desprezada. Beber tornou-se então um consolo, um alívio e foi a forma encontrada também para tratar de uma insônia constante. Não havia remédios, pílulas que dessem conta de sua insônia, bebia para adormecer.

Na busca desenfreada por alguém passou a sair para a noite, ficando com qualquer um, indo parar na casa de homens que desconhecia, agradecida por alguém desejá-la. Colocava-se em situação de risco, pois não se lembrava de como ou quando chegava em casa, dirigindo alcoolizada.

No que diz à família, ela tinha a mesma profissão do pai. Com a mãe, uma relação conturbada. E assim a define: dona da verdade; me criticava e condenava em tudo. Não gosto dela, tem um papo ruim; nada era suficiente para apaziguar suas cobranças e seu olhar reprovador. Quando pequena, tinha certeza que a mãe tinha encontros clandestinos no consultório do dentista da família, uma vez que sozinha na sala de espera, escutava barulhos…  Em que pese isso, vale lembrar que fogosa, S1 que a define, é um traço que herda de sua mãe. Aqui, poderíamos indagar se não haveria um apelo, um endereçamento de Joana ao Outro, uma busca de se fazer existir enquanto mulher, tanto no campo do Outro familiar, quanto na busca insensata por uma parceria amorosa, o que, paradoxalmente terminava por deixa-la sozinha, apagada,  com a garrafa.

Assim proponho abrir o campo para uma conversa a partir de alguns pontos envolvendo o feminino, o uso de substâncias e o amor:

“A devastação, estruturalmente feminina, decorre da inexistência do significante d’A mulher e pode tomar a forma de um gozo sem limites, na vertente da pulsão de morte, ou do arrebatamento, êxtase, como o demonstram as místicas. Diante desse postulado, cabe a cada mulher encontrar o seu modo, singular, de fazer com a ausência do significante que a nomearia[7]“ .

O uso de drogas, nas mulheres, pode ser mais ou menos devastador dependendo da articulação que ocorre com a inscrição fálica. Para a mulher, como não há o falo que localiza o gozo em relação a um órgão específico no corpo, ela lança mão do amor como uma forma de localizar esse gozo. No caso de Joana estaríamos diante de um sujeito que tentava fazer existir A mulher toda, completa? A representação que ela tinha da mulher era um útero e dois ovários, representação cujo luto parece não ter sido elaborado. Ao mesmo tempo estava situada na identificação com a mãe “fogosa”. A devastação aparece quando, ao se deparar com a extração daquilo que imaginariamente, faz uma mulher existir, se entrega ao desvario do gozo lançando mão do álcool e da busca desenfreada por um parceiro.

Recorro a Miller quando afirma: “… O amor é o que poderia fazer mediação entre os um-sozinho.  (…) Quer dizer que o inconsciente não existe. O inconsciente primário não existe como saber. E para que se torne um saber, para fazê-lo existir como saber, é preciso o amor. Por essa razão, ao final de seu Seminário: Os Nomes do Pai, Lacan pôde dizer: uma psicanálise demanda amar o seu inconsciente[8]

Como tocar o gozo do corpo pela palavra? Como possibilitar que Joana ame seu inconsciente? Este parece o desafio com que deparam aqueles que lidam com a clínica das Toxicomanias, uma vez que, temos sujeitos cuja libido encontra-se fixada ao objeto droga e onde uma aderência pulsional à substância, tampona a inexistência da relação sexual. Há um real em jogo na relação que cada toxicômano estabelece com a substância.

Miller[9] , ensina que tanto a arte do bem-dizer como o saber ler o sintoma, estão do lado do analista, e é uma condição! Porém, ao longo da experiência analítica, trata de que ambos (tanto o bem-dizer como o saber ler) sejam transferidos para o campo do analisante. Para ele, o desejo do analista é o que move a operação analítica uma vez que “visa conduzir ao inconsciente” o que é uma experiência de linguagem! É também o desejo do analista que tenta inspirar o analisante a assumir a tarefa desse desejo.


[1] Membro da AMP e da EBP
[2] Lacan, J. O Seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro. Zahar Ed, 2005. P. 197.
[3] Lacan, J, O Seminário, livro 20 mais, ainda. Rio de Janeiro. Zahar Ed,1985.p.198.
[4] Miller, J.-A. Para uma investigação sobre o gozo autoerótico. Disponível em: http://pharmakondigital.com/para-uma-investigacao-sobre-o-gozo-autoerotico/
[5] MILLER, J. A. “Uma fantasia” In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Edições Eólia, São Paulo, n.42, fevereiro, 2005.p.13
[6] MILLER, J-A. (1997). “A teoria do parceiro”, In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p. 172.
[7]BESSA, Graciela. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte. Scriptum Livros, 2012.
[8] MILLER, J. A. “Uma fantasia” In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Edições Eólia, São Paulo, n.42, fevereiro, 2005. P.18
[9] MILLER, J-A. Ler um sintoma. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br
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