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Das identificações ao amor mais digno: a política da psicanálise

Liége Uchoa

O ponto de partida do seminário “Os Divinos Detalhes”, de Jacques-Alain Miller, foi apresentar o detalhe como aquilo que admite o gozo condicionando a escolha do objeto amoroso e sexual. Algumas questões sobre o amor nos levam aos pequenos detalhes: o que é o amor? O que ensina a psicanálise sobre o amor? Em particular, o fato de que o parceiro está fundamentalmente indeterminado para o sujeito, e por essa indeterminação estrutural ele só pode encontrá-lo dando uma volta pela condição de amor[1].

Para tratar dessas questões que tem relação com o gozo, Miller nos indica a necessidade de um retorno a Freud, pois considera que até o momento, não está resolvido o justo lugar do conceito de gozo pensado por Lacan. Assim, ele nos apresenta as várias construções que Freud realizou para tratar desse tema e, por essas veredas freudianas foi articulando o pensamento de Lacan ao longo do seu seminário.

No capítulo X de “Os Divinos detalhes”, que vamos nos deter para tecer nossas reflexões, Miller apresenta o caminho que nos leva ao lugar do gozo na sua relação com a política e com o discurso, tentando responder a uma pergunta: como um sujeito passa ao coletivo?  Esse capítulo X está dividido em três partes: a política e a ética; multiplicidade de línguas; o dever e as pulsões. Pretendo articular essas três dimensões, tentando destacar os pontos que me pareceram mais relevantes por onde Miller tentou responder à indagação acima citada e, desse modo, por em evidência a especificidade da política da psicanálise.

Nesse capítulo, Miller vai contemplar uma parte do que tratou num colóquio sobre Lacan, nos Estados Unidos, com os acréscimos e reflexões já recolhidas do seu seminário. Nesse colóquio tinha a impressão de que nadava contra a maré, uma vez que a perspectiva da psicanálise na França era diferente da dos EUA, e sua transmissão, certamente, teria levantado questões sobre a política psicanalítica adotada por lá. Registra que não era sua intenção evocar nesse colóquio, as posições políticas dos psicanalistas, uma vez que na história da psicanálise sempre houve e há psicanalistas de esquerda e psicanalistas de direita, suas posições políticas só lhes dizem respeito. O mesmo não se pode dizer quando se trata da política da psicanálise que, segundo Miller, a partir de Lacan, deve ser pensada na relação com a ética.  Para a psicanálise, política e ética confluem[2].

É nessa perspectiva, segundo Miller, que Lacan inscreve a ação analítica e propõe que essa ação seja organizada em três planos, três maneiras de olhar essa ação: o plano da tática, da estratégia e da política. Na condução de uma análise, o nível de liberdade é maior no plano da tática- o campo onde a análise acontece, com as histórias e demandas do sujeito- aqui o analista tem toda a liberdade de improvisar, desde que ele subordine esse plano à sua estratégia, onde só vai poder atuar nos limites da transferência, é por isso que aqui sua margem de manobra é menor.  No plano da política, o plano dos fins, o que você quer com uma análise, a liberdade é menor ainda. Porque o que se quer com a análise é que o sujeito consinta com seu inconsciente e modifique a vida a partir desse encontro. O que vai operar é o desejo do analista ao pensar o inconsciente como subversão original na vida de um sujeito.  A partir da articulação entre esses três campos de ação do analista, Lacan define uma ética da psicanálise – diferenciando-a de uma ética do bem – e seus desdobramentos, tanto na clínica, quanto na política dos grupos analíticos, sua doutrina de formação, e na maneira que se posicionam na sociedade[3].

Aspectos que nos remetem a pensar qual seria a diferença entre ética e política, e situar melhor a particularidade da política da psicanálise.

Para Miller, a distinção mais simples entre ética e política, é que a ética concerne ao Um, se dirige a um sujeito, ainda que haja vários, os toma um por um, enquanto a política é da ordem do coletivo, que nos tempos de hoje tomou a dimensão do “para todos”[4].  Segundo Miller, essa noção do “para todos” é uma noção moderna da política, o reino do universal presente nesse campo. É um novo estatuto da política, que Saint-Just[5] percebeu ao expressar que a felicidade seria uma ideia nova. Conforme Lacan, a felicidade tornara-se um fator de política, cuja perspectiva seria a de que “não poderia haver satisfação de ninguém fora da satisfação de todos”[6].  Sobre essa observação de Lacan, Miller já havia esclarecido numa passagem do capítulo IX do seu seminário: “Se queremos fundamentar a política de Lacan em uma base segura, talvez tenhamos que partir de que se trata de uma política que não pensa poder corrigir as consequências da castração, que é uma política que não pode vestir-se com os enfeites sedutores da justiça distributiva”[7], ou seja, não se deve usar levianamente esse ideal, embora, segundo Miller, seja indicado não exagerar sobre a desigualdade de sua distribuição.

A política do “para todos”, influencia a ética kantiana, uma ética moderna, que põe a ética tradicional, aquela do um a um, na trilha do universal ao enunciar o critério formal da moralidade que responde à exigência de uma legislação universal: Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.[8]

A modernidade, portanto, compreende uma mudança de discurso, implicou a substituição do discurso do mestre antigo, pelo chamado discurso científico. Hoje, a ciência, a técnica e a burocracia ocupam um espaço de primazia nos discursos.

Mas a pergunta psicanalítica que interessa no que concerne à política, é saber como se passa da análise do sujeito ao coletivo, ao que Freud chamou de psicologia das massas, ou seja, como se passa do Um para que este constitua um coletivo? Como justificar o pertencimento desse sujeito a um grupo?

A resposta apontada por Freud para esse caminho do sujeito ao coletivo, foi por meio da identificação, como aquilo que possibilita ao sujeito uma representação de si mesmo, a partir de um laço inaugural com o Outro.  Um processo estruturante da subjetividade que está na base do laço social.

É a partir do Outro que se organiza o campo das identificações. Uma identificação horizontal, que produz os iguais, cuja mola Freud encontrou em outra identificação, a vertical, relativa ao Outro. Este é o ponto de partida, segundo Miller[9], de uma reflexão psicanalítica sobre a política. Mas ele ressalta que esse esquema é mais complicado do que parece, e que não há apenas uma maneira de lê-lo. Outra forma de abordá-lo é acentuando o abismo existente entre o Um e o conjunto, ou seja, a solidão do sujeito. Mesmo que essa solidão seja encoberta pelo sentimento de que falamos a mesma língua, mas, segundo Miller, não se fala nunca a mesma língua, há uma multiplicidade de línguas. Por isso a necessidade de se distinguir linguagem e as línguas. A linguagem é o universal das línguas, uma estrutura que tem valor para todas as línguas.  A linguagem é a mesma para todo ser falante.  A língua, tem seus próprios equívocos, ambiguidades, tem suas próprias rimas, seus trocadilhos e musicalidade, trazendo a dimensão do gozo para o laço social, eis a descoberta de Lacan. Na última parte do seu ensino, ele falou de Lalíngua que seria o não-todo da linguagem, o que resulta para o sujeito do que vem da língua materna, o que foi depositado para um sujeito dos equívocos da sua língua, uma dimensão singular, sem o Outro. No seu último ensino, o Outro se encontra destituído. No lugar do Outro, que já se encontra deslocado, há um princípio de identidade totalmente diferente que é o corpo próprio, o Outro é o próprio corpo do sujeito[10].

Desse modo, se com Freud, temos como fundamento do laço social a lei e o traço de identificação ao pai da horda, em Totem e tabu, e depois ao líder, em Psicologia das Massas, com Lacan, há um novo regime do laço social, não a partir da identificação, mas a partir do gozo.

Segundo Laurent, o discurso político, o discurso do mestre, faz da identificação a chave da captura do sujeito[11].  Por isso o discurso do mestre atua de maneira inversa à psicanálise. A psicanálise parte das identificações para se dirigir ao núcleo de gozo que elas mascaram, vai contra as identificações do sujeito, por isso devolve a ele sua vacuidade primordial[12].

Nesse sentido, pensar no laço social, não a partir da comunicação, mas a partir do gozo, não passa pelo lugar do Outro, como queria Freud. O gozo não é do Outro, enquanto a linguagem e o desejo o são. Deste modo, o problema político, segundo Miller, não é simplesmente como se chega a falar a mesma língua que o Outro, mas sim, como o gozo passa ao Outro[13]. Porque, se cada um responde somente a seu próprio fantasma, se cada um não fala mais que sua própria língua, como pode ser que uma multidão faça Um? Por isso, não basta dizer que o laço social se fundamenta no sacrifício do gozo, é preciso dizer também para onde vai a mais-valia, isso que Lacan tornou homólogo ao mais-de-gozar, esse gozo que resta depois da operação da castração, o objeto a, resto do que foi suprimido, e que tem efeitos na civilização.

Sobre isso, Miller vai dizer o que já fora anunciado por Freud : “no mesmo lugar de onde se enuncia o dever, se acumula o gozo”[14]. Há renúncia das pulsões, porém esse gozo aparentemente anulado não fica perdido, pelo contrário, ele está concentrado no ponto do Ideal, uma verdade política verificada pela psicanálise. Miller esclarece essa passagem dizendo: “não se trata da fórmula do Ideal do eu como pacificante- do fim do Édipo, diria eu – mas o que Freud diferencia como supereu”[15]. O supereu, não é somente o que exige que se renuncie ao gozo, é também o lugar onde o gozo se acumula, ele se acumula no mesmo lugar onde se requer seu sacrifício. Este é o sentido do que Lacan formulou em “Kant com Sade”.  Lacan demonstra que a exigência libidinal da pulsão está presente no imperativo moral.  Onde o dever se impõe, diz ainda Miller, sempre encontramos, nesse lugar, o que se chama corrupção[16]. Uma das formas de recuperar o gozo perdido, o mais-de-gozar.

Para concluir a partir desse ponto, tentando ainda responder como uma multidão pode fazer Um, diria que a via do amor como um semblante que propicia um tratamento possível do real, pode abrir saídas e soluções a isso que resta da castração, o mais-de-gozar, recusando a proposta obscena e feroz do imperativo superegóico: Goza! As saídas oferecidas pelo discurso capitalista foracluem o amor ao dificultar que o sujeito se oriente no universo da falta, e pelo consumo, promete o objeto perdido.

Por isso o amor, ao permitir o circuito da pulsão ao redor do objeto a, torna-se isca para o gozo que anima o corpo[17], sem os semblantes cativos das identificações universais, que são segregativos. É essa via do amor que permite ao sujeito uma solução mais digna, porque implica um reconhecimento radical da alteridade do Outro, amando o Outro em seu gozo[18]. Um detalhe a ser inventado por cada sujeito, para além da castração. Aquilo que o passe nos ensina no final de uma análise: através do amor, construir um saber-fazer com o feminino.


[1] Miller, J.-A. Los divinos detalles. Buenos Aires: Paidós, 2010. P.17
[2] Miller, J.-A. Ibid., p. 205
[3] Miller, J.-A. Ibid., p. 206
[4] Miller, J.-A. Ibid., p. 208
[5] Pensador e político revolucionário francês.
[6] Lacan, J. (1997). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. P.350
[7] Miller, J.-A. Ibid., p. 188. Tradução nossa
[8] Imperativo categórico da filosofia kantiana, segundo a qual toda pessoa tem o dever de agir de tal maneira que o princípio de sua conduta possa ser o princípio de uma legislação universal.
[9] Miller, J.-A. Ibid., p. 210
[10] Ventura, Oscar. Disponível em: http://revistaarteira.com.br/index.php/identidade.
[11] Laurent, Erick.  O traumatismo do final da política das identidades. In Opção Lacaniana online, nova série, ano 9, nº 25 e 26, março/julho, 2018. p.2
[12] Laurent, Erick.  Ibid., p.2
[13] Miller, J.-A. Ibid., p.216
[14] Miller, J.-A. Ibid., p.224
[15] Miller, J.-A. Ibid., p.225
[16] Miller, J.-A. Ibid., p.225
[17] Caldas, Heloisa. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/pdf/artigos/HECOamor.pdf.
[18] Brodsky, Graciela. Disponível em: http://x-enapol.org/pt/portfolio-items/um-amor-mais-digno/
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