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Existência e escrita do Um: novos arranjos contra o imperialismo do Universal

Elizabete Siqueira

A dimensão não segregativa da Psicanálise

A existência e a escrita do Um são sintagmas que aparecem em dois diferentes eixos de nossa Jornada. Tal presença produziu em mim o desejo de salientar a contraposição do ensino de Lacan em relação ao Universal e de como esse ensino fura antigos paradigmas segregativos. Meu objetivo é, portanto, frisar que a existência e o Um emancipam da ambição de universalidade do Mestre e que os dois são produtos da vocação não segregativa e não classificatória de Lacan, que aparece desde sua tese de doutorado (Lacan, 1987). Foi uma descoberta importante perceber que eles têm tudo a ver com a experiência analítica e com a política do inconsciente.

Desde que Lacan (1981), no seminário 20, introduziu o real como constituinte do falasser, pode-se dizer que não há um programa pré-estabelecido que organize a relação entre os sexos. Por isso, na última parte do seu ensino, ele foi além dos Ideais e do Nome-do-Pai, como metáfora da ordem simbólica, após observar que eles já não mais organizavam o laço social, segundo a norma androcêntrica, que já “não podia representar a trama das identidades sexuais, nunca fixas nem normativas” (Bassols, 2021, p.20). Vale, então, destacar que o Mal-estar, em nossos dias, não é também o mesmo de outrora. Hoje, mais do que nunca, impera sua forma cínica. Com isso, quero dizer que a fase atual, massificada horizontalmente e globalizada do capitalismo, é matriz da segregação generalizada, fomentadora da diluição da singularidade, na medida em que tem por base o rechaço do outro, sobretudo dos seus sinais de diferença e que a Psicanálise vai na contramão dessa corrente generalizante, buscando, por seu lado, salientar suas formas e seus efeitos.

Nossa era, como era de um capitalismo “hard”, por assim dizer, da ciência e da tecnologia, sustentado pela lógica da acumulação infinita, elevou o objeto ao zênite (Lacan, 2003a), infinitizou-o e o levou a passar à frente do Édipo e da Lei simbólica, organizados pelo falo. Essa elevação é o resultado da incapacidade da ordem fálica, para esclarecer, segundo as teorias queer (Fajnwaks, 2013), que nesse ponto concordam com a psicanálise de orientação lacaniana, o que é ser, por exemplo, um homem ou uma mulher. Uma das questões cruciais de nossos dias é como homens e mulheres podem se encontrar se a lei simbólica já não lhes diz, efetivamente, quase nada e o que predomina são os modos de gozar , mediante todos os recursos disponíveis no mercado de consumo. Essa questão coincide com os grandes apontamentos de Lacan em seu último ensino. Por isso, a clínica mudou. Tornou-se muito mais pragmática do que estruturalista e os conceitos, com essa mudança, muito mais promissores, desidealizados, e, como tal, realistas, na medida em que abrem espaço ao trabalho com a singularidade de cada sujeito. Ou seja,com o seu sinthoma, aqui entendido, como aquilo pelo qual existe no mundo e nele se faz reconhecer. É uma clínica que busca mais o que enlaça do que o sentido, já que não há outro acesso à realidade, para o falasser, que não passe pelo seu próprio real.

A inacessibilidade do dois, o Um e a existência

Um dos conceitos orientadores de nossa clínica atual é a inexistência da relação sexual (Lacan, 2012), efeito da barração do Outro, que tem como consequência “a impossibilidade da adequação de si para si e de si para o outro” (Biaggi-Chai, 2020, p.25), isto é, “ a relação sexual não existe” (Lacan, 2003, p.454). A anatomia não é o destino. Sabemos disso, desde que “Lacan introduziu o termo sexuação para indicar o elemento subjetivo de escolha” (Alberti, 2021, p.5) da forma de se situar perante o sexo e o gozo, ambos ligados à contingência do encontro, ao acaso, ao Real.

Nessa direção, enfatiza-se que é o conceito matemático da inacessibilidade do dois, que, de certa forma, serve a Lacan (2012) para embasar sua tese da não relação sexual, abordada no Seminário 19. Ali, diz ele: “é rigorosamente impossível considerar a cópula de dois corpos como formando um só” (p.122). Isso, porque fazer dois é impossível. Entre 1 e 2 há uma sequência infinita. Não é certo dizer, por exemplo, que 1+ ½+1/4 é igual a dois, mas, sim, que essa soma tende a dois sem nunca chegar a ele. O número tende a ser n, mas nunca vai ser n, se aproxima de n. Essa é a noção de limite em matemática (Berlinski, 2002).

Lacan se utiliza dessa inacessibilidade matemática para articular a existência do Um com a não-relação sexual. Para ele “a pretexto de o corpo ser uma das formas do Um […] é rigorosamente impossível considerar a cópula de dois corpos como formando um só” (Lacan, 2012, p. 122). Com isso Lacan está nos insinuando que o corpo é uma das formas do Um, porque o corpo é o lugar de um gozo que sonha com o infinito, ou seja, da pulsão e de seu solilóquio, que fala sozinha para dizer “Há um” (Lacan, 2012, p. 132), portanto, o Um é separado do dois na relação sexual que não existe e isso introduz o Real, haja vista que o gozo é gozo do corpo próprio, gozo do Um. É nessa mesma direção que seguem as afirmações de que “não há diálogo” (p.125) e de que  “nunca se viu diálogo levar à coisa alguma” (p.126) e de que  na associação livre, que não tem nada de livre porque advinda do Um, é este que se tem de fazer falar.

Lacan (2012, p.30) avança ao propor que o Um nem sempre tem o mesmo sentido. Existe o sentido do Um que nomeia o conjunto vazio que é dois como ordinal, e, também, que há um caráter bífido do Um, que é diferente do Ser (estado permanente), que o ser é sempre Um, mas que o Um não sabe ser como o ser.  Nesse contexto, serviu-se dos vários sentidos do Um para mostrar como o Um se contrapõe ao império do Universal e de como foi daí que pôde deduzir  a função da Existência (Lacan, 2012, p.130) esta nascida do “mais fugidio do enunciável”, que tem a ver com a economia libidinal de cada Um.

Ora, aprendemos que é precisamente com a proposição da existência que Lacan (2012, p.135) vai mais além de Aristóteles e os particulares, quando ousou enunciar algo que patentemente falta à referida lógica (p.135): fez incidir a negação sobre o quantificador universal. A consequência foi a proposição da existência como aquilo que singulariza, que funda o sujeito como Um que fala e, como tal, fura o Universal e com ele a norma fálica.

A lógica não-toda

Lacan (1981) formaliza a lógica não-toda, no Seminário 20 mais, ainda, fora do Universal fálico e a partir do gozo feminino que recebe o estatuto de gozo como tal que fura o Todo. Elas não podem formar um conjunto fechado, universalizável e, em sendo assim, só podem ser contadas uma a uma, atestando com isso a existência de Um que diz não ao Universal. Elas não se “paratodizam” (Lacan, 2003, p. 466), logo, por se fundarem não-todas, nenhuma delas é Toda e só podem “ser tomadas uma a uma, cada nome de mulher valendo, em si mesmo, cumprindo a função de letra” ( Baptista & Monteiro,2021) como tão bem nos ensinaram Baptista e Monteiro, na apresentação do eixo 1 de nossa jornada. Vale ainda esclarecer que a dedução da lógica do Não-todo permitiu a Lacan deduzir o Um e a existência, bem como esclarecer o fato de que embora se conjuguem não se sobrepõem. Com isso quero dizer que o não-todo é um conjunto aberto, que não se fecha, e que mais se aparenta à série. É sem lei e, como tal, se perfila um a um, não se podendo prever qual será o termo seguinte. Por ser assim, não dá lugar a nenhuma exceção, que constitua um Universal, já que cada Um é uma exceção per se. Essa é outra e novíssima lógica com estofo e fôlego para estar à altura da Época, de modo a poder “acolher as mudanças na sociedade, de maneira subversiva, sem deixar de questioná-las” (Ansermet & Meseguer, 2021, p. 82).

Na Clínica, se aparecem sujeitos, que se afirmam do lugar do Todo fálico, moldados pelo discurso capitalista que torna os ideais contabilizáveis, abole a subjetividade e com ela a responsabilidade pelo modo de gozar próprio; eles aludem a um campo de “inquietante estranheza” (Freud, 1919-1976) de regimes de enunciações que dizem respeito a nichos ideológicos que cristalizam segregações e são protótipos de imposturas mentirosas e inquietantes, calcadas no “bem”, mas, que, na verdade, estão a serviço do Mestre, cujo único objetivo, segundo Lacan (1992, p.11) é “arrebatar do escravo sua função no plano do saber”, em outras palavras, explorar, evidenciando que é uma lógica segregativa e , como tal, distinta da proposta do psicanalista.  Aqui, uma pergunta se nos impõe: o que um psicanalista teria a fazer com Isso? Pode-se pensar no papel da interpretação que seria desinflar, interrogar, furar esse tipo de discurso, cujo objetivo é ocultar a origem e a temporalidade dos seus movimentos associativos, para não deixar aparecer o singular da enunciação que deixaria a descoberto tal intenção segregativa. Como nos indica Laia (2009) foi cada vez mais decisivo para Lacan fazer tal significante aparecer. Isso porque os senhores escamoteiam suas intenções mortíferas. Por isso, Lacan (2003b) nos convida, com a perspectiva do discurso analítico, a fazer face à proliferação de tais exceções, mas não pela via da variação infinita, que criaria novos universais, e sim a partir de outra referência, a do Um. O que Lacan (1992) procurou nos mostrar foi que por trás dos slogans e palavras de ordem há um S1 de dominação escondido e que por isso tem valor interpretar a Cultura para fazê-lo aparecer (Laia, 2009), a fim de oferecer ao sujeito a possibilidade de encontrar um saber-fazer-com esse mal-estar, ao invés de aceitá-lo como natural.

O sujeito é Um que fala

Lacan (2003b, p.480) diz que “recorrer ao não-toda, ao ahomenosum [hommoinsun], aos impasses da lógica é mostrar as saídas da Mundanidade”. Isso pode ser lido como ligado à mordacidade de Lacan em relação às promessas libertadoras do liberalismo político e outras enganações como o direito de ir e vir. Pelo contrário, sempre apostou na economia de cada subjetividade, articulada ao regime pulsional de cada Um.

A Psicanálise de orientação lacaniana já sabe que nenhum discurso é imutável, porque foi o que nos ensinou Lacan (2003b), no texto antes referido. A estrutura de um discurso é modificável por cortes, por isso, qualquer discurso do tipo “eu a verdade falo”, cuja finalidade única é excluir, precisa ser furado pelo real, a fim de descolá-lo das ficções, sejam elas políticas, jurídicas ou de qualquer natureza asfixiante, para “produzir uma outra fixão [fixion] do real, ou seja, do impossível” (Lacan, 2003b, p.480), posto que toda verdade é, em si mesma, mentirosa. É de bom alvitre introduzir a dimensão interrogativa no coração do imperialismo Universal do Mestre, a saber, ali onde houver o projeto de um fechamento no Todo poder da debilidade institucionalizada que favoreça regimes totalitaristas e fascistas em sua essência.

Pode-se, então, sugerir que, no ensaio poético-político o  Aturdito (Lacan, 2003b), o destaque dado por Lacan à existência se opõe ao Universal cínico que busca foracluir a existência e o Um. O Universal busca desacreditar o singular “a se compreender com todos seus equívocos, o da originalidade, singular único, indestrutível. Isso se chama negligenciar, ignorar o real”, nos ensina Biaggi-Chai (2020, p.26). Real, aqui, entendido como o que da realidade individual escapa à simbolização, acrescenta a autora referida. Lacan (1981) insiste sobre a existência do corpo pulsional e seu gozo sempre escapando do imperialismo do significante e do Todo simbólico. Não querer saber nada disso, ou seja, não querer saber nada do Real, implicará em seu retorno (Lacan, 1985) sob formas sempre imprevisíveis e incalculáveis. Por isso, a Psicanálise defende para cada Um, uma vida o mais próximo do que lhe seja possível, em termos de ser e de fazer. Lacan chama sinthoma (2007, p.15) a esse possível de cada Um e Biaggi-Chai (2020, p.27) o entende como “a resposta singular ao mistério do homem”. Isso vai na contramão do Universal, na medida em que autoriza a nele se inscrever de forma não segregativa. Não esqueçamos que segundo Lacan (2003b, p.480) “o normal é mais uma norma masculina [mâle]”. Por isso mesmo, Biaggi-Chai (2020, p.27) sublinha que a Psicanálise defende que um sujeito possa “saber-fazer-consigo mesmo… isso abrindo a porta de um pragmatismo aceitável”. Donde se pode deduzir que o Inconsciente seria o destino político do regime de gozo de cada Um, por não perder de vista a economia libidinal, condição de possibilidade para que uma invenção seja possível para lidar com esse gozo, haja vista que uma análise não visa produzir epifanias, mas, sim, invenções, ou seja, algo que permita lidar com o gozo de forma diferente da repetição.

Pelo que foi exposto, creio poder concluir com Lacan (1966-67[2008], p. 350)  que: 1º) “ o inconsciente é a política”. É a política com a, no feminino, sob o regime do não-toda que não perde de vista o regime libidinal de cada Um, política do sinthoma, e não que o inconsciente é o político porque teria valor de proposição universal; 2º) que a Psicanálise, na medida em que esclarece o Mal-estar na civilização, sob a ótica do regime pulsional de cada Um, propõe saídas, nada desprezíveis, sim, mas nunca soluções, para aqueles que decidem nela apostar, fazendo-os passar pelos labirintos da fala, ou seja, pelo Outro, porque  “uma vez o Um estabelecido surgirá necessariamente o Outro” (Hasembalg-Coriabinu, 2016, p. 27).  Porém como nos ensinou Lacan, lido por Chai, de forma não segregativa, ou seja, sem passar para o fatalismo do supereu e seu imperativo de gozo, mas cuidando para que o não simbolizado do gozo, não retorne no Real, pois afinal o Real é sem lei, e esse retorno tentaria impor o imperativo do supereu sob a forma de sintomas e passagens ao ato mortíferas em sua grande maioria. Enfim, é lidando com esse não simbolizado, é dando um lugar a esse real sem lei, que verificaremos, em contraposição ao Universal do Mestre, o quanto o que é bom para Um não é necessariamente bom para outro Um e isso tem a ver com o Novo amor, promessa do discurso analítico, que tenta fazer um trabalho não segregativo com o resto inassimilável de gozo de cada um,  única forma de não se passar a “uma deriva em direção ao pior, colorida de cinismo”( Miller, 2021, p.42).


Referências bibliográficas:
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Baptista, M.E & Monteiro, C. (2021). Argumento Eixo 1, s/p.
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